Sancionada pelo pelo presidente da República no final de setembro, a Lei Sansão já nasce envolta em polêmicas
Por Ton Paulo
Lei Sansão endureceu pena para quem maltratar cães e gatos | Foto: Reprodução/Internet
Ativistas, protetores de animais e líderes de Organizações Não Governamentais (ONGs), assim como amantes de pets em geral, comemoraram, no final do mês de setembro, a sanção por parte do presidente da República, Jair Bolsonaro, da Lei nº 14.064 de 2020, mais conhecida como Lei Sansão, em homenagem ao pitbull que teve as duas patas traseiras decepadas pelo dono, em Minas Gerais. A assinatura da nova lei ocorreu durante uma solenidade, no dia 29, no Palácio do Planalto, e contou com a presença de ministros, autoridades e, claro, dos beneficiados pela lei: cachorros.
Segundo um levantamento de 2019 realizado pelo Instituto Pet Brasil, o Brasil tem cerca de 140 milhões de pets, entre cães, gatos, peixes, aves e répteis e pequenos mamíferos. A maioria é de cachorros (54,2 milhões) e felinos (23,9 milhões), num total de 78,1 milhões de animais, e serão esses os maiores beneficiados pela nova lei.
Houve uma intensa campanha nas redes sociais até que Bolsonaro decidisse, finalmente, assinar o endurecimento de pena para quem maltratar cães e gatos. A conhecida militante pelos direitos dos animais, Luisa Mell, criadora do Instituto Luisa Mell, voltado para resgate e adoção de animais, chegou a mobilizar uma grande corrente virtual pedindo para que o presidente aprovasse a mudança – e deu certo.
Na solenidade de assinatura da lei, Bolsonaro chegou a falar sobre a importância de proteção dos animais. “Quem não demonstra amor por um animal, como um cão, por exemplo, não pode demonstrar amor, no meu entender, por quase nada nessa vida”. Contudo, apesar de significar um avanço no que tange aos direitos dos animais, a lei, que mal nasceu, já enfrenta uma série de críticas, principalmente por seu caráter considerado “excludente”.
Jair Bolsonaro em solenidade de sanção da Lei nº 14.064 | Foto: Carolina Antunes/PR
Na prática, a Lei nº 14.064 altera a Lei nº 9.605 de 12 de fevereiro de 1998, de crimes ambientais. Especificamente, a nova norma acrescenta o parágrafo 1-A ao artigo 32, que trata da punição da prática de ato de abuso e maus-tratos contra animais. O parágrafo em questão determina o aumento da pena de reclusão para quem comete crimes contra cães e gatos. A partir de agora, quem maltratar essas duas espécies pode pegar de 2 a 5 anos de reclusão, além de multa e proibição de guarda dos bichinhos.
O autor dos maus-tratos, com a Lei Sansão, passará a ser investigado e não mais liberado após assinatura de termo circunstanciado, como era o padrão antes da alteração. Além disso, o transgressor passa a ter o crime incluído em sua ficha policial. No entanto, enquanto para alguns a aprovação da norma representa uma efetiva vitória a favor dos animais no Brasil, para outros, se trata de uma mudança “discrepante e desproporcional” que deve beneficiar um tipo específico de animal quanto deixa casos semelhantes de maus-tratos (ou até piores) à margem do interesse público.
Para delegado do Meio Ambiente, lei deveria ser mais abrangente
Titular da Delegacia Estadual de Repressão a Crimes Contra o Meio Ambiente (Dema), o delegado Luziano Carvalho é um que chama a atenção para o caráter parcial que a Lei Sansão teria.
Luziano, que atua em recuperação de nascentes e proteção de animais e do meio ambiente desde 1999, diz que também considera a aprovação da lei um avanço na questão de proteção aos direitos dos animais, mas que ela falha ao deixar de fora animais não domesticados que, segundo ele, “não tem protetores”.
Conforme o artigo 29 da Lei de Crimes Ambientais, aquele que “matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida” pode pegar punição de 6 meses a 1 ano de reclusão, aumentada até o triplo, se o crime decorrer do exercício de caça profissional. Para o delegado, há discrepância dessa pena para a definida recentemente, de até 5 anos, para quem maltratar cães e gatos.
Conforme o delegado, além da caça predatória, há problemas envolvendo animais silvestres de igual gravidade em relação a maus-tratos a cães e gatos e cita a principal causa de morte dos bichos que vivem nas matas.
“Com essa lei, você deixa os animais silvestres de fora, e eu falo tanto dessa questão de animal silvestre porque esses, parece, são os animais que não têm protetores. Atropelamento, por exemplo, é o que mais mata animais no Brasil. A minha crítica, e talvez nem seja crítica, é mais uma observação, é que você exclui os outros animais [com a lei sancionada]”, diz.
Delegado Luziano Carvalho, titular da Dema | Foto: Fábio Costa/Jornal Opção
De acordo com estimativas do Centro Brasileiro de Estudos em Ecologia de Estradas (CBEE), mais de 15 animais morrem nas estradas brasileiras a cada segundo. Diariamente, devem morrer mais de 1,3 milhões de animais e ao final de um ano, até 475 milhões de animais selvagens são atropelados no Brasil.
Ainda de acordo com Luziano, além da falta de abrangência da Lei Sansão, uma vez que as mudanças atingem somente cães e gatos, há, também, o que ele chama de “desproporcionalidade” em relação a outros crimes ambientais. O delegado usa como exemplo a pena prevista no código penal para quem “provocar incêndio em mata ou floresta” e dá o alerta: há uma necessidade de revisão geral das leis.
“Esses incêndios que você está vendo aí, a pena é de 4 anos. Nós poderíamos fazer uma revisão, então, da lei de crimes ambientais. É um discussão muito grande, tem um apelo da mídia mas o justo parece que não está sendo observado”, pontua.
Luziano levanta, ainda, outros pontos da Lei Sansão que, para ele, deveriam ter sido melhor pensados. Um deles é a restrição da guarda de animais prevista na lei que, conforme Luziano, não esclarece as espécies e o tempo de proibição. A questão leva ainda a outro problema que, de acordo com o delegado, é um dos maiores: a falta de abrigos para os animais que forem tirados dos donos autores de maus-tratos. “Nós vamos pegar o animal e vamos levar para onde? Cadê o hospital para o tratamento? Como será feito?”, questiona Luziano.
O titular da Dema afirma que é inútil a aprovação de mais leis sem que elas sejam acompanhadas do principal fator de proteção aos animais: a conscientização. “Leis não resolvem o problema. Leis, para serem eficazes, precisam ter a consciência cívica da população. Pensa-se que criou uma lei e agora resolve o problema, mas não é assim”, conclui.
Avanço x discrepância
Assim como o delegado Luziano Carvalho, o advogado Petterson Arraes, especialista e atuante nas áreas Cível, Ambiental e Agronegócio, também afirma enxergar na aprovação da Lei Sansão uma conquista na defesa dos direitos dos animais. Entretanto, tal qual o titular da Dema, Arraes considera que há uma desproporção da pena determinada, dessa vez, em relação a crimes cometidos contra pessoas.
Para o advogado, o parágrafo 1-A do artigo 32 da Lei. 9.605 “veio mais para aquele tipo de violência que, muitas das vezes, se vê contra cães e gatos e que normalmente não acontece numa fazenda contra outros animais”. Porém, conforme Arraes, quando pesada na balança junto com penas previstas atualmente para crimes como agressão a um indivíduo, a punição possível de 5 anos de reclusão é discrepante.
Petterson Arraes, advogado das áreas Cível e Ambiental | Foto: Arquivo pessoal
“Você pode olhar, por exemplo, o Código Penal. O artigo 129 trata da lesão corporal contra humanos. O caput do artigo diz que a pena é de três meses a um ano, se você bater em alguém. Se for de natureza grave, o parágrafo primeiro diz que é reclusão é de um a cinco anos. Se você bater num cão ou gato, é de dois a cinco anos”, compara.
Arraes afirma que não ver a pena para maus-tratos contra cães e gatos como injusta, mas que, “além dela, é preciso reformar todo o Código Penal para que vejamos punição para quem comete todos os tipos de crime”.
O advogado usa, ainda, outro exemplo de crime considerado grave mas que, mesmo assim, possui pena de reclusão prevista inferior a de maus-tratos contra caninos e felinos. “O crime de abandono de incapaz [como crianças, idosos e indivíduos com deficiência] está no artigo 133 está do Código Penal. A pena é detenção de seis meses a três anos. Olha a discrepância disso”, destaca.
Para Arraes, o aumento de pena sancionado pelo presidente da República “veio para agregar, melhorar, ao colocar esse parágrafo 1-A”. Todavia, conforme o advogado, além dessa nova norma “muito ainda tem que ser feito”. “Tem que fazer uma reforma mais ampla na legislação penal para que as penas dos demais crimes sejam devidamente atualizadas, para diminuir essa impunidade que, infelizmente, nós vemos por aí”, finaliza.
Passo importante, diz fundadora de ONG
Com 16 anos de existência, a ONG Recanto Anjos Peludos, localizada no Parque Itamarati, em Aparecida de Goiânia, nasceu com o objetivo de resgatar e abrigar cães e gatos abandonados ou vítimas de maus-tratos. A instituição sem fins lucrativos se mantém somente com doações de solidários da causa e, atualmente, abriga cerca de 600 animais. A fundadora do projeto, Lucíula Cascão, 46, também falou sobre a aprovação da Lei Sansão.
Lucíula, que também é candidata a vereadora de Goiânia pelo PSD, atua em prol da causa animal há quase 40 anos. Para a gestora do Recanto Anjos Peludos, a aprovação da Lei nº 14.064 foi um marco no histórico de luta em defesa dos animais. “Um passo muito importante, porque mostra para o Brasil inteiro que a causa animal está evoluindo’, celebra.
Porém, Lucíula também compartilha da visão do delegado Luziano Carvalho ao afirmar que os efeitos da Lei Sansão deveria ser estendidos a animais de toda e qualquer espécie. “A punica falha que eu achei. Deveria expandir para todos os animais que são maltratados, judiados. mesmo assim significou um avanço”, relata.
Lucíula Cascão, ativista e candidata | Foto: Reprodução/PSD
A ativista e candidata revela que é vista por muitas pessoas como uma protetora apenas de cães e gatos, o que, segundo ela, não corresponde à realidade. “Eu sou protetora dos animais, não só de cachorro e gato. O cachorro e o gato são domesticados, são mais vulneráveis. Agora, a gente deve lutar para incluir outros animais, porque eles também precisam. Eles também têm uma família, que é a natureza”, diz.
Para Lucíula, a solução para o problema de maus-tratos de animais está na conscientização e na criação de órgãos para a fiscalização do cumprimento das leis que protegem os bichinhos. “Precisamos de uma educação social, para esclarecer para a população que animais não são coisas, são vidas, e elas merecem respeito”, diz.
“Deveria ter uma delegacia especializada em crimes contra animais domésticos, para que a gente tivesse um apoio efetivo legal de fiscalização conosco. Hoje a Polícia Militar já faz isso, graças a Deus, eles já estão atendendo, estão participando. Porém, deveria ter uma delegacia especializada também, para que as pessoas começassem a respeitar mais”, arremata.
Especialistas veem 'discrepância' em nova lei que pune maus-tratos contra animais - Jornal Opção