Familiares, amigos e alunos buscam a inocência do educador Fernando Henrique dos Santos, que foi sentenciado a oito anos de prisão
- Sentença registra fala de policial testemunha que não condiz com o depoimento
- Única vítima que viu “familiaridade” na voz apresentou três versões do roubo
- Réu confesso, motorista do caminhão afirma que Fernando é inocente
Em setembro do ano passado, Fernando Henrique dos Santos, um jovem negro de 26 anos e sem nenhuma passagem pela polícia, foi condenado a oito anos de prisão (regime fechado) pelos crimes de roubo e formação de quadrilha. Fernando, que é professor de educação física e educador num projeto social na zona sul de São Paulo, foi acusado de participar de um assalto a um caminhão da empresa Philip Morris no município de São Caetano do Sul, no dia 30 de outubro de 2019.
Refém do assalto, uma única vítima conta que ficou no banco de trás de um carro com uma sacola cobrindo a cabeça enquanto os bandidos conversavam “no viva- voz”, foi quando “sentiu familiaridade com a voz” de Fernando, que atualmente cumpre a pena no Centro de Detenção Provisória de São Bernardo do Campo (Grande SP).
Após reconhecimento por foto, a mesma vítima apontou também Igor dos Santos, 26 anos, como cúmplice do roubo – ele também foi condenado e pegou nove anos de prisão. Além de Fernando e Igor, outros seis indivíduos não identificados teriam participado do assalto.
Segundo os autos do processo, todos os acusados estavam em companhia do motorista do caminhão roubado da Philip Morris, que de vítima virou réu depois de ter confessado envolvimento no crime. O motorista do caminhão, no entanto, disse não conhecer nem Fernando nem Igor e afirmou que eles não tiveram participação no assalto.
A investigação
Após sete meses em prisão preventiva, o juiz Pedro Corrêa Liao condenou Fernando na primeira audiência do caso. Segundo o advogado de defesa, Wilton Machado (atualmente fora do caso), não havia nada no processo que justificasse a condenação. “Não tem materialidade, não tem autoria, não tem reconhecimento, não tem perícia. Houve o reconhecimento de uma voz [pela vítima/testemunha protegida], que não foi reconhecida em juízo. Eu não consigo responder por que o juiz condenou o Fernando ou por que o Ministério Público se convenceu da participação dele [no roubo], disse em entrevista à Agência Pública.
Apesar da formação em educação física, Fernando trabalhava como motolink (escolta de moto) para a empresa Golden Sat, prestadora de serviço da Philip Morris. “Na noite antes de ser preso, o Fernando foi até o mercado e fez uma compra pequena para uma família que estava precisando bastante. Ele é muito preocupado em relação a não faltar nada pra ninguém. Às vezes ele pegava dinheiro emprestado, até mesmo pra eu fazer entrevista [de emprego]”, diz Juliana dos Santos, 27 anos, esposa de Fernando.
A educadora Cristina Maria, 43 anos, mãe de Fernando, conta que o filho “nunca precisou um real de ninguém, porque desde os 14 anos trabalha”. Ela diz que nunca imaginou passar por essa situação. “Eu criei meus filhos na periferia, sim. Mas dentro da honestidade, ganhando o pão de cada dia.”
Segundo o processo, a vítima protegida identificada nos autos pelas iniciais A. P. G. O., que também é motolink na empresa Golden Sat, apresentou três versões sobre o roubo ocorrido no dia 30 de outubro de 2019. No primeiro depoimento, ainda no dia do assalto, nada foi registrado sobre ligações telefônicas ou reconhecimento de voz; a testemunha relatou apenas ter visto uma tatuagem em um dos acusados quando estava no banco traseiro do carro como refém.
bro de 2019, A. P. G. O. foi por conta própria até o 2° DP de São Bernardo do Campo e acrescentou à versão inicial nova informação de que os assaltantes “tinham um aparelho de telefonia móvel por onde estabeleciam comunicação com pelo menos duas pessoas distintas”.
No mesmo depoimento, diz ter ouvido os assaltantes atenderem o telefone no viva- voz, momento em que teria então percebido “familiaridade com uma voz masculina” que falava com eles, mas naquele momento não soube afirmar a autoria. Posteriormente, a vítima relatou que, “ao ouvir um áudio no grupo de WhatsApp dos colaboradores [da empresa]”, teria identificado a voz de Fernando.
A partir dessa informação, a política vasculhou a rede social do professor. Encontraram, na condição de amigo virtual, o perfil de Igor dos Santos, o outro acusado. Quando a fotografia foi apresentada à vítima, Igor foi reconhecido, “sem sombra de dúvidas”, como sendo o indivíduo que “saiu do veículo sedan de cor preta, ordenando que ele [A. P. G. O.] entrasse no mesmo e ainda restringindo a sua liberdade utilizando-se de uma pistola cromada”.
Igor, que já tem uma condenação de cinco anos por tráfico de entorpecentes em 2017, conta que “esse primeiro BO [Boletim de Ocorrência]” ele assume, mas o segundo “não tem nem como, porque sou inocente”. Igor afirma que estava em Ribeirão Preto no dia do crime. “Eu estava trabalhando numa barbearia em Ribeirão Preto [interior de São Paulo] na época. Estou há quase três anos sem ir a São Paulo.” Na audiência, Rafael Matias de Freitas, ex-patrão de Igor, confirmou o álibi de Igor, de que no dia do assalto o acusado estava trabalhando para ele na barbearia em Ribeirão Preto.
Sobre a amizade com Fernando, Igor explica que não tem relação de proximidade. “Quando conheci o Fernando, eu tinha uns 12 anos de idade. Eu morava no mesmo bairro que ele, em São Paulo. Mas tinha muito tempo que eu não o via. No final de 2018, no Ano-Novo, ele veio aqui [Ribeirão Preto] na casa de um parente. Depois disso, nunca mais ouvi falar dele e nem falei com ele. Nunca nem trocamos mensagens.”
Mesmo reconhecido por foto, durante a audiência virtual, a vítima A. P. G. O. não foi capaz de reconhecer novamente Igor como o assaltante que o rendeu. Conforme consta na sentença, “a imagem não permitia a perfeita visualização da face do réu”
Em 2019, o defensor público do Estado de São Paulo Rodrigo Ferreira Ruiz Calejon atuou no caso de um réu condenado a seis anos de reclusão em regime fechado, acusado de roubo por uma vítima que também fez o reconhecimento por voz. “Após analisar o processo, cheguei à conclusão que a pessoa tinha sido processada e condenada só com base no suposto reconhecimento por voz. Eu defendi pelo princípio in dubio pro reo, que define a presunção de inocência. Não havia elemento suficiente para tirar a liberdade de uma pessoa só com base na voz dela”, contou. Após o pedido de revisão criminal, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) absolveu o acusado.
Para Calejon, em casos em que é necessário reconhecimento por voz são fundamentais outros elementos que ligam o réu ao crime. “Quando a Justiça não tem como fazer uma perícia na gravação, resta, pelas normas do processo penal brasileiro, garantidas pela Constituição, provar outras questões, por outras circunstâncias”, diz. O defensor exemplifica: “Se eu não consigo fazer uma perícia na voz da pessoa, mas identifico um sinal característico da voz dela. Ou alguém consegue provar que fez uma ligação que durou tantos minutos e tem uma gravação que dura tantos minutos também. Ou tem testemunhas que estavam presentes [no momento da ligação]. É muito discutível”, afirma o defensor.
No caso de Fernando, os elementos apontados na Justiça como uma característica da voz foi a percepção, segundo a vítima A. P. G. O. de “um certo ‘cacoete’ na fala do Fernando Henrique, que sempre falava ‘pai’ no final de suas falas”. Além disso, o juiz Pedro Corrêa Liao apontou dificuldade de dicção de Fernando durante a audiência. Situação, segundo o magistrado, que “não pode ser explicada somente pelo nervosismo como foi sugerido pela defesa”.
Segundo a psicóloga Lilian Stein, que há décadas pesquisa e atua na área da psicologia do testemunho, a memória dos seres humanos é “fantástica”, mas não tem a objetividade de uma máquina fotográfica. “A memória não se preserva intacta. Ela pode ir perdendo nitidez com o tempo, mesmo para eventos intensos como um assalto, um estupro. Além dessa perda de informações com o passar do tempo, também não congelo a minha memória para aquele assalto ou estupro que fui vítima, ou que fui testemunha. Eu converso com outras pessoas, as pessoas me fazem perguntas, eu vejo filmes na televisão, leio notícias de jornal sobre outros assaltos. A minha memória foi feita para aprender, então essas informações vão interferindo [nas lembranças]”, avalia.
Para Calejon, “o Direito não é matemático, ele depende de interpretação, depende do entendimento de todo mundo que participa. O juiz, naquele processo original, entendeu que aquilo era o suficiente. A gente não concordou, foi brigando, foi lutando, e a gente convenceu finalmente o Tribunal de Justiça que aquilo estava errado”, diz. Segundo ele, “quando a gente se depara com essas injustiças, tem que lutar”.
Versões e contradições
A. P. G. O. disse, no seu terceiro depoimento, que, quando os acusados conversavam no viva-voz durante o assalto, percebeu “que eles citavam detalhes do sistema de monitoramento e segurança da Philip Morris”.
A. P. G. O. não identifica os acusados, mas a sentença do juiz Pedro Corrêa Liao atribui os fatos a Fernando. “Durante toda a empreitada criminosa, o acusado Fernando Henrique, funcionário da empresa Golden Sat, conhecedor do sistema de monitoramento e de segurança, trocava áudio e telefonemas, no sistema ‘viva voz’ com os roubadores para o sucesso da empreitada criminosa”, registra a sentença.
No entanto, a ocorrência do assalto foi registrada às 9h20, com comunicação do roubo, às 11h26. No processo, os extratos das contas de consumo do número de celular apreendido com Fernando, fornecidas em juízo pela operadora Nextel, indicam que entre 8h19 e 12h15 Fernando ligou duas vezes para o motorista da transportadora, que faria a escolta no dia (8h19 e 8h36), para o padrasto, Edinaldo (8h39), e para o seu supervisor na Philip Morris (8h54, repetindo as chamadas às 10h13, 10h17, 12h e 12h15). Não consta nos autos nenhuma ligação além das citadas acima. A defesa alega que, em quesito de materialidade, não há nada que prove de forma cabal que Fernando estivesse falando com os assaltantes no carro.
A sentença diz ainda que Fernando “tinha acesso às rotas de entrega das mercadorias, assim como dos procedimentos que deveriam ser tomados em caso de furto ou roubo”. A reportagem entrou em contato com a empresa Golden Sat, que em resposta informou que “as informações requeridas encontram-se descritas no Boletim de Ocorrência n°1.531/2019 e na ação penal”.
Mas as informações de rota, região e escala dos funcionários na data do assalto não constam nos autos. O próprio juiz Pedro Corrêa Liao solicitou à empresa Golden Sat o “trajeto realizado” pelo ex-funcionário Fernando Henrique. Na resposta, “por via de regra sistêmica, o histórico de posições permanece guardado em data center pelo período de 60 dias, passado esse período o histórico é apagado automaticamente”. A situação indica, ainda segundo a defesa, que não há como provar que Fernando teve acesso à rota que o caminhão faria no dia do assalto.
A reportagem conseguiu contato com um ex-funcionário da empresa Golden Sat, motolink como Fernando. *Darci (o nome foi trocado a pedido do entrevistado, que prefere não se identificar) narrou como é o cotidiano de quem faz o acompanhamento de cargas com motocicleta. Sobre as rotas, ele diz que apenas os motoristas da empresa que são escoltados sabem a informação. “Nós nem sabemos qual é o motorista que vamos acompanhar. No dia anterior sai a escala, entre 16h30 e 18h, no máximo. No dia seguinte, vamos até a porta da empresa, e uns 15 minutos antes sai a placa do carro que vamos acompanhar. Não temos contato algum com o motorista, muito menos sabemos da rota. É ele [motorista] que sabe o caminho. A gente só acompanha, mantém uma distância segura para sacar alguma atitude suspeita”, explica.
Sentença registra informação diferente do que relatou policial testemunha
Na sentença que condenou Fernando, outro registro chama atenção. José Arai, policial civil que foi a testemunha que atuou na diligência de busca e apreensão, teria afirmado que “Fernando Henrique confessou participação na empreitada criminosa”. Porém, no relatório obtido pela reportagem assinado por Arai e pelo investigador Cassio Vieira Saez, em 24 de janeiro, o registro de busca e apreensão, tanto no endereço da casa em que a mãe de Fernando reside quanto na casa dele, registra que “nada de ilícito ou suspeito foi encontrado”.
Segundo o advogado Wilton Machado, durante a sua audiência o policial testemunha não disse o que consta na sentença. “Esse policial só foi fazer o cumprimento do mandado de prisão. Ele não dá esta informação em juízo. Se pegar o vídeo do testemunho dele, essa informação não é dada. Ele não fala isso. Porque realmente não aconteceu. O Fernando não confessou. Ele sequer entendeu por que estava sendo preso”, diz o advogado.
A Pública obteve o registro em vídeo do depoimento do policial civil José Arai. Nele, quando indagado sobre a sua atuação no caso, Arai responde: “Só participei do mandado de prisão e de busca e apreensão”. No mesmo vídeo, a defesa ainda questiona se Arai participou das oitivas dos acusados: “Não. Eu só participei do momento da prisão”, diz. Em nenhum momento Arai afirma que Fernando confessou a participação “na empreitada criminosa”, como consta na sentença. Ao final do vídeo, Arai diz “sim” quando perguntando sobre a confissão do motorista, réu confesso, que está ao lado de Fernando Henrique no vídeo.
A reportagem entrou em contato com o TJ-SP para buscar a versão do juiz Pedro Corrêa Liao, mas o órgão respondeu que “O Tribunal de Justiça não se manifesta sobre questão jurisdicional”. Segundo o tribunal, “os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e o seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe à parte a interposição dos recursos previstos na legislação vigente”.
“Dói o dobro”
Sem condições de pagar por uma defesa particular, a família de Fernando recorreu à Defensoria Pública, que em parceria com a OAB nomeou o advogado Renato Penzo para apresentar as razões da apelação na segunda instância. “Estamos tentando a absolvição do Fernando com base na falta de provas, principalmente de prova cabal. Simplesmente ele está preso somente por causa do testemunho da testemunha protegida e que no depoimento se contradiz. Mesmo assim, ele foi condenado, somente com essa prova. A gente sempre acredita no princípio do in dubio pro reo. A partir do momento que você tem provas que elas não são cabais, deveria sempre [prevalecer] o princípio da presunção de inocência”, afirma.
Familiares, amigos e os alunos do projeto social de futebol do Jardim Bandeirantes, zona sul de São Paulo, para quem o professor Fernando é “inspiração”, continuam inconformados com a condenação.
Impactados com a situação do professor, ao menos 12 adolescentes e jovens se reuniram nos bancos de concreto na entrada do campo da Comunidade durante uma visita da reportagem.
Eles gravaram vídeos nas suas redes sociais denunciando a prisão de Fernando como injusta e pediram a liberdade do professor. Ao ser questionado por que se prontificou em gravar o vídeo em defesa do educador, Willian Bastos Pereira, de 16 anos, disse: “Porque ele é uma pessoa muito boa e não merece passar por essa injustiça. Ele estava no dia a dia com a gente. Saía mais cedo da faculdade para dar treino para nós. Com sol ou com chuva, ele estava presente. Não deixava na mão. Quando era aniversário de alguém, fazia festa-surpresa”.
Para Ícaro Mateus, 18 anos, quando atuava no projeto antes de ser preso, Fernando era um “incentivador de sonhos”. “Ele sempre me apoiava para eu não desistir dos sonhos, pra correr atrás. Dizia que eu jogo bem, falava que qualquer clube que eu entrasse ia conseguir subir na vida. Eu nunca levei pra frente, mas ele sempre me incentivava. Ele está fazendo muita falta no nosso projeto.”
Ícaro diz que não acreditou quando soube da prisão do professor, devido ao exemplo de honestidade que enxerga nele. “Teve um dia que a gente perdeu um celular aqui dentro do campo. Ele achou e devolveu. Ele não gosta de pegar nada das pessoas, é um cara honesto.”
O professor de educação física e amigo Anderson Fagner, 30 anos, também é voluntário há três anos nas aulas e nos treinos de futebol para as cerca de 120 crianças do Jardim Bandeirantes. Para Anderson, a prisão de Fernando impactou os alunos. “Eles estão muito chateados, porque ele sempre foi visto como espelho para molecada. Eles não acreditam que ele está passando por isso”, conta.
Alunos e professor de futebol no campo onde Fernando Henrique dava treinos na comunidade do Jardim Bandeirantes, zona sul de São Paulo
Anderson atribui o fato de ter conseguido finalizar a faculdade graças ao incentivo de Fernando. “É uma pessoa que sempre me incentivou e me ajudou muito. Eu pensei em desistir da faculdade umas quatro vezes e ele não deixou”, afirma. “Fiquei devendo a faculdade, não tinha dinheiro para pagar, ia colocar a minha moto para vender. Ele não deixou e falou que iria me ajudar pagar a faculdade e me ajudou. Ele fez coisas que minha família nunca faria por mim. Eu coloco minha mão no fogo por ele.”
Juliana diz que Fernando está pagando “um preço alto”. Segundo a esposa, ele está muito abatido. “Um rapaz que foi solto, mas esteve na mesma cela com ele, falou que o Fernando estava com as mãos e o corpo cheio de bolhas, que estava com sarna humana e todo machucado. Ele está um pouco melhor porque nós mandamos remédios, sabonete. Nós corremos atrás. A gente até fala que, se o Fernando fosse culpado, ia doer, mas a gente sabia que ele estava pagando pelo que fez. Mas ele não fez e dói o dobro.”
Jovem negro e sem antecedentes foi condenado por “familiaridade” na voz - Agência Pública
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