Uma história de 60 mil anos
Escrito por Juliana Winkel
O solo brasileiro esconde tesouros surpreendentes. Histórias de antes da história escrita, que explicam as origens dos povos da América e são comparáveis, em importância, aos principais achados arqueológicos do Velho Mundo. Heranças que ainda estamos decifrando e aprendendo a preservar.
Quando desembarcou no Brasil em 1825, o dinamarquês Peter Lund se surpreendeu com o que encontrou. Estudioso de botânica e zoologia, o médico e naturalista viu no País - que ainda aprendia o que era identidade - o pano de fundo para grandes pesquisas. Se a Nação era jovem, a terra que a sustentava poderia abrigar histórias mais antigas que o solo das metrópoles europeias.
Estabeleceu-se por aqui em definitivo em 1832. Passou a esquadrinhar a região de Lagoa Santa, Minas Gerais, em busca de vestígios do passado. Explorou mais de 200 grutas, descobriu cerca de 12 mil fósseis. E o grande achado: um cemitério com 30 esqueletos humanos, ao lado de ossos de mamíferos da chamada megafauna. Eram animais de dimensões bem maiores que as atuais, como os gliptodontes (tatus de cerca de um metro de altura), as macrauquênias (herbívoros semelhantes a lhamas com trombas) e preguiças de até seis metros de comprimento e cinco toneladas.
O Homem da Lagoa Santa, como foi batizado aquele fóssil humano, ajudou a reescrever um importante período da pré-história brasileira. Os achados sugeriam que tenha sido contemporâneo desses animais de grandes dimensões, que, por muito tempo, acreditou-se que estivessem extintos quando surgiram as populações humanas.
A teoria de Lund só seria confirmada mais de um século depois, em 2002, com base em análises de datação das ossadas. Para o dinamarquês, porém, nunca restaram dúvidas. Considerado o pai da paleontologia brasileira, foi aqui que morreu, em 1880.
África, nossa avozinha
Análises de fósseis indicam que o homem surgiu na África há cerca de 7 milhões de anos. De lá, espalhou-se pelo mundo.
Parece charada: antes dos portugueses, os índios. Mas, e antes dos índios?
Mesmo depois da passagem de Peter Lund por Lagoa Santa no século 19, a região guardava grandes surpresas. De lá para cá, foram extraídos restos de aproximadamente 250 esqueletos humanos. Na década de 1970 foi encontrado um crânio feminino de cerca de 11.500 anos.A descoberta mostrou que a região já era habitada muito antes do que se imaginava, e pôs em xeque as teorias até então mais aceitas sobre o povoamento do homem nas Américas, que consideravam uma migração única partindo da Europa e atravessando o Estreito de Bering, chegando ao Brasil através da América do Norte.
Em 1998, técnicas de reconstituição permitiram vislumbrar a face da jovem encontrada em Lagoa Santa. Tinha aproximadamente 20 anos, olhos arredondados, nariz largo. Batizada de Luzia - referência abrasileirada a Lucy, fóssil de mais de 3 milhões de anos encontrado na Tanzânia em 1974 -, é considerada, até o momento, a primeira brasileira.
A reconstituição da face de Luzia lembra os aborígenes da Austrália e os negros da África - bem diferente dos indígenas que nos acostumamos a imaginar como os primeiros moradores destas terras. A descoberta deu força à hipótese, até então polêmica, de que o continente tenha sido ocupado não por uma, mas por diversas correntes migratórias, vindas inclusive por terra na última Idade do Gelo, durante a baixa do nível dos mares. O grupo de Luzia teria habitado o sul da China e sudeste da Ásia e migrado para a América e para a Oceania há cerca de 11 mil anos.
Apesar das contribuições de Lagoa Santa para o quebra-cabeça da ocupação das Américas, a polêmica continua. No México, foram descobertas pegadas humanas que podem ter sido feitas há 40 mil anos. Outros vestígios, encontrados no sítio arqueológico da Serra da Capivara, no Piauí, podem remontar a 60 mil anos. A caça ao tesouro está apenas começando.
Pistas inusitadas
Além de ossadas, outros vestígios encontrados na região de Lagoa Santa contam os hábitos dos antigos habitantes do Brasil. Machados trabalhados e outros artefatos mostram que eles viviam na Idade da Pedra Polida (entre 12 mil e 4 mil anos antes de Cristo).
A caça e a coleta de alimentos também eram praticadas - como mostram os restos de fogueiras e coprólitos (fezes pré-históricas fossilizadas), que indicam o tipo de alimentação da época: frutos, folhas e raízes, além de carne, quando havia caça.
Na chapada do Aaripe, o maior sítio de peixes fósseis
A Chapada do Araripe, no Ceará, abriga tesouros que conjugam importância e poesia. Maior sítio arqueológico em registro de peixes fósseis do mundo, suas rochas de cerca de 110 milhões de anos conservam animais nos quais é possível pesquisar células musculares e aparelhos digestivos com as últimas refeições. Foi também o primeiro lugar no mundo onde surgiram flores, datadas do período Cretáceo - quando as placas continentais do Brasil e da África ainda se separavam. Incrustadas em rochas, as plantas fósseis são exemplares que deram origem aos vegetais com flores atuais.
A região, que serviu de campo de estudos para a concepção de alguns dos animais mostrados no filme Jurassic Park, de Steven Spielberg, abriga o Parque dos Pterossauros, a quatro quilômetros de Santana do Cariri. Ali são expostas réplicas artísticas desses animais voadores que possuíam até cinco metros de envergadura. De todos os exemplares fósseis dessa ave já achados no mundo, um terço está na Chapada do Araripe. Ao lado de dinossauros de cerca de três metros de altura e oito de comprimento, disputaram espaço na região que corresponde aos Estados do Ceará, Pernambuco e Piauí há cerca de 100 milhões de anos.
Em 2006 foi aprovado pela Unesco um projeto para transformar a área de pesquisas arqueológicas da chapada no primeiro geopark da América - uma região de turismo científico e ecológico que propicia o crescimento auto-sustentado da população. O parque abrange 5 mil quilômetros, oito municípios e nove sítios de observação.
Arqueologia no quintal
A quantidade e qualidade dos vestígios arqueológicos na Chapada do Araripe surpreende. Pode-se achar material pré-histórico no quintal de casa. As rochas contendo fósseis são utilizadas até mesmo para a confecção de pisos e revestimentos para paredes e muros. Não raro, vê-se rochas com peixinhos decorando paredes de casas e construções na região.
Marajoaras foram embora sem deixar pistas
Entre os anos 400 e 1.300 da era cristã, a Ilha de Marajó abrigou uma das civilizações mais desenvolvidas de seu tempo. Os marajoaras, como foram denominados, viviam em uma sociedade dividida por classes sociais, praticavam a agricultura - cujas bases eram a mandioca e o arroz-bravo - e viviam em aldeias populosas, verdadeiras cidades com até 10 mil moradores. Um sofisticado sistema de aterros protegia-os dos alagamentos periódicos na ilha. A cerâmica marajoara, com seus padrões de decoração sofisticados, é o traço mais conhecido dessa civilização. Transformou-se em símbolo da região.
O desenho mais comum é o da serpente, representada por espirais. Está presente principalmente em peças sacras e urnas funerárias, onde eram enterrados os membros da elite. Alguns deles traziam o crânio deformado propositalmente, por meio de faixas amarradas à cabeça desde o nascimento - prática de status comum também em algumas culturas andinas.
O desaparecimento dos marajoaras, por volta de 1.300, é ainda misterioso. Quando chegaram, os portugueses encontraram o território habitado por índios aruaques.
Biquini de barro?
Mais de mil anos antes do biquíni, as marajoaras já usavam tangas feitas de barro. Eram presas ao corpo por meio de cordões. Podem ter sido usadas como roupas de festa, exclusivas da elite, ou mesmo como vestimenta diária, já que algumas foram encontradas com os furos gastos, o que indica uso frequente.
Stonehenge brasileiro
A 16 quilômetros da cidade de Calçoene, no Amapá, foi descoberto um possível observatório astronômico do Brasil pré-colonial. O monumento é formado por 127 blocos de granito em intervalos regulares. Com cerca de 2 mil anos de idade, marcava provavelmente a chegada do solstício de inverno. O mistério está sobretudo na tecnologia usada para cortar e transportar as enormes pedras.
Santa Catarina abriga os maiores sambaquis do mundo
O sul do Brasil é uma das principais áreas a registrar a existência dos sambaquis, formações pré-históricas compostas da fossilização de conchas, moluscos, ossos humanos e animais. Sambaquis fluviais e marítimos já abrigavam grupos humanos há cerca de 9 mil anos, em algumas regiões do país. Mas é no litoral de Santa Catarina que estão os maiores sambaquis do mundo, com centenas de metros de extensão e aproximadamente 5 mil anos de idade. No interior dessas formações foram encontrados vestígios de fogueiras e instrumentos cortantes, além de ossos de peixes, répteis e baleias - sinais da existência de grupos de caçadores e coletores de alimentos.
O povo dos sambaquis já produzia artefatos em pedra polida, como mostram os instrumentos de caça, ornamentos e esculturas representando animais. Bons nadadores e remadores, tinham em média 1,60 metro de altura. Ainda não se sabe como esses grupos desapareceram. A hipótese mais aceita é de que tenham sido eliminados ou aculturados pelos tupis, há cerca de mil anos.
Brasil: terra de fenícios?
Um dos mistérios que permanece sem resposta diz respeito a uma possível passagem dos fenícios pelo Brasil, muito antes da chegada dos portugueses. Alguns estudiosos afirmam que esse povo de exímios navegadores chegou à América por volta do século 12 antes de Cristo, deixando referências na civilização e mesmo na construção do vocabulário usado por nações indígenas brasileiras. A hipótese ganha força com o achado de supostas inscrições em diversos lugares do Brasil - a mais famosa delas na Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro, que abrigaria o túmulo de um rei fenício. A veracidade desses vestígios ainda é duvidosa. O que se pode dizer é que a civilização fenícia concorre também como formadora das raízes brasileiras.
Serra da Capivara desbanca velhas teorias
Se Luzia continua sendo destaque da passagem humana pelo continente, outros vestígios intrigam os pesquisadores e abrem caminho para conclusões ainda mais espantosas. Os olhos de arqueólogos se voltam agora para a região de São Raimundo Nonato, no Parque Nacional da Serra da Capivara, Piauí. Naquela área de caatinga, há 9 mil anos, havia floresta amazônica e mata atlântica. Algumas espécies daqueles tempos ainda estão por lá, junto à maior concentração de pinturas rupestres do País: mais de 30 mil, com cerca de 15 mil anos.
E o mais surpreendente: a região abriga ossadas de animais e vestígios humanos que remontam a 60 mil anos. O avanço das pesquisas nessa direção muda o eixo de pensamento a respeito das migrações para as Américas. “A hipótese é de que as mais antigas vieram da África para o nordeste do Brasil”, afirma a presidente da Fundação Museu do Homem Americano, Niéde Guidon.
A teoria de que as primeiras migrações tenham 40 mil anos a mais do que o imaginado, e de que o homem teria vindo por rotas diferentes das comumente aceitas, era defendida por Niéde há quase 30 anos. Finalmente, análises feitas em 2006 por Emílio Fogaça, da Universidade Católica de Goiás, e Eric Boëda, da Universidade de Paris - um dos maiores especialistas do mundo em tecnologia lítica pré-histórica -, mostraram que Niéde estava certa. As ferramentas de pedra descobertas em São Raimundo Nonato foram realmente feitas por humanos e têm entre 33 mil e 58 mil anos. São, portanto, os vestígios mais antigos de ocupação da América.
A constatação, uma vitória de um grupo de pesquisadores brasileiros, era até então desprezada pela comunidade internacional. Niéde, que há três décadas desenvolve pesquisas na região, destaca o desafio de preservar uma área extensa. “As principais dificuldades são a limitação dos recursos e a velocidade de destruição dos sítios.”
Mais do que simplesmente desvendar mistérios, a missão dos pesquisadores da Serra da Capivara e de todos os arqueólogos que revolvem nossas raízes é também sensibilizar a população e as autoridades sobre um trabalho que pode esclarecer muito sobre os rumos da nossa civilização e nossas ligações com o ambiente. Um esforço sem fronteiras em busca de quem somos, capaz de trazer informações fartas que apontem para onde vamos.
Na trilha do tesouro
Alguns dos lugares que guardam pistas sobre os antigos inquilinos destas terras:
Museu Nacional do Rio de Janeiro
Abriga algumas estrelas da arqueologia nacional. Além do crânio de Luzia, expõe o maior dinossauro encontrado no Brasil, o Maxakalisaurus topai, de 13 metros de comprimento, nove toneladas e 80 milhões de anos. Também estão ali peças marajoaras e fotos de Marc Ferrez que retratam os trabalhos da Comissão Geológica do Império, em 1875.
Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham)
Fica em São Raimundo Nonato, no Piauí. Milhares de pinturas rupestres entre 10 e 100 mil anos de idade, além de reconstituições do ambiente pré-histórico, são mostradas com a ajuda de guias especializados. O museu baseia-se nos resultados de três décadas de pesquisas realizadas na região do Parque Nacional da Serra da Capivara.
Museu de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri
Reúne, em Santana do Cariri, Ceará, mais de 5 mil peças. Entre elas, 750 fósseis coletados na região - incluindo partes de pterossauros.
Museu da Lapinha
Fica em Lagoa Santa, Minas Gerais. Das cerca de 2.600 peças, entre ossadas e objetos dos homens pré-históricos, o destaque está no único esqueleto humano adulto completo encontrado no Brasil. Além dele, há uma flecha feita de nefrita, mineral inexistente por aqui - o que sugere que o objeto tenha sido passado de pai para filho durante a migração dos grupos para a América do Sul ao longo de anos.
DNA do Homem de Lagoa Santa
já foi extraído dos ossos.
Ney Soares Filho Repórter - Fonte:HOJE EM DIA
A análise do DNA das ossadas pré-históricas mais antigas da região de Lagoa Santa, contemporâneas de Luzia, poderá ser a chave para esclarecer o surgimento do homem americano e o próprio desenvolvimento das raças humanas. A pesquisadora da UFMG Juliana Alves da Silva, que faz doutorado em biologia molecular, está trabalhando com algumas dessas ossadas no Instituto Max Planck, em Leipzig, na Alemanha, precursor dos estudos de antropologia molecular, e já conseguiu a primeira façanha: extraiu fragmentos de DNA desses ossos e iniciou o seu sequenciamento, ou seja, a identificação das bases formadoras de sua estrutura molecular.
A informação foi dada por sua orientadora, a bioquímica Vânia Ferreira Prado, PhD em Biologia Molecular. A captura do DNA de ossos pré-históricos é dificílima porque, após a morte, a tendência é que as enzimas das células quebrem suas sequências moleculares, fazendo-as desaparecer.
Identificando-se o código genético desses negróides pré-históricos, será possível saber se eles contribuíram na formação de alguns povos americanos. O estudo é minucioso e poderá levar meses ou até anos. Vânia Prado integra a equipe do geneticista Sérgio Danilo Pena que faz estudos sobre a formação genética dos povos americanos, asiáticos e africanos. Esses estudos estão sendo feitos por cientistas de vários países com povos nativos de várias partes do mundo.
Os estudos tomam como base o DNA mitocondrial que é transmitido unicamente pela mãe ao filho. E o cromossomo Y, que só o pai transmite. Enquanto os cromossomos dos gametas do pai e da mãe se recombinam na formação do embrião do filho, o DNA mitocondrial não sofre recombinação, e o cromossomo Y se recombina pouco. Como não sofre recombinação, o DNA mitocondrial é o mesmo nos vários grupos humanos há milhares de anos.
"Já se descobriu que o DNAs mitocondriais mais antigos estão na África, o que corrobora a teoria de que o Homo sapiens surgiu lá", explica Vânia Prado. Os DNAs mitocondriais asiáticos são os mais antigos depois dos africanos. Da Ásia, o homem teria se espalhado para os demais continentes, sofrendo diferenciações, resultantes de mutações, após milhares de anos convivendo com outros ambientes, climas e alimentações. As mutações estão presentes no DNA mitocondrial, o que permite verificar quando, em que populações e de que regiões elas ocorreram.
Índios descendem de mongóis
As análises do DNA dos vários grupos humanos, segundo Vânia Prado, já permite verificar que, depois que os primeiros homens africanos, negróides, se instalaram na Ásia, parte deles passou por um processo de mongolização, gerando a raça amarela. Antes disso, no entanto, esses negróides empreenderam um processo de migração, com parte rumando para a Oceania e, ao que tudo indica, outra parte seguindo para a América. "Se as datações que foram feitas estiverem certas, esses negróides chegaram à Austrália há cerca de 30 mil anos", informa a pesquisadora.
Esses estudos vão de encontro à tese do antropólogo Walter Neves, de que os negros chegaram às Américas e ao Brasil, antes dos mongolóides, dos quais descenderam os índios. Que os povos indígenas americanos descendem dos mongolóides, não resta mais dúvida. "O código genético dos índios americanos é semelhante ao dos povos nativos asiáticos", confirma Vânia Prado. No entanto, os homens pré-históricos de Lagoa Santa têm características antropomórficas bastante diferenciadas dos índios americanos e próximas dos aborígines australianos.
A tese de Walter Neves é de que esses brasileiros pré-históricos e os aborígenes australianos, se originaram de um mesmo povo negróide, que habitou o Sul da China e Sudeste da Ásia, antes de migrar para a Oceania e para a América. Outros pesquisadores, ainda na primeira metade do século, já haviam encontrado indícios não só antropológicos, mas também culturais da influência dos nativos australianos na formação de alguns povos indígenas da América do Sul.
O principal desses pesquisadores foi o francês Paul Rivet, que dirigiu o Museu do Homem de Paris, na década de 20. O uso da zarabatana, por exemplo, comum na Oceania, é uma característica de algumas tribos sul-americanas, e não existe entre mongóis ou índios norte-americanos. As evidências levaram Rivet a formular uma teoria da migração dos aborígenes australianos diretamente para a América do Sul, em embarcações, fazendo escala nas Ilhas Polinésias, que ficam no Pacífico, a meio caminho dos dois continentes.
"Essa teoria não se sustenta, porque a ocupação da Polinésia somente se deu há cerca de 2.000 anos, e os aborígenes australianos não dominavam a tecnologia de navegação em mar aberto", explica Walter Neves.
Extinção ainda é misteriosa
O desaparecimento da raça negróide que habitou a região de Lagoa Santa e o relacionamento (ou não) dela com os mongolóides que vieram a seguir e dominaram o continente são mistérios que a Ciência ainda tenta desvendar. Na verdade, entre as ossadas dos chamados "homens de Lagoa Santa", somente as mais antigas, com idade entre 11.500 e 8.000 possuem características negróides, como explica Walter Neves. As mais recentes, com menos de 8.000 anos, já apresentam características mangolóides.
O pioneiro das descobertas dessas ossadas humanas, foi o naturalista dinamarquês Peter Lund (veja o box abaixo), que se radicou em Lagoa Santa na década de 1830. Ele encontrou grande número de fósseis humanos e de animais pré-históricos já extintos nas cavernas da região. O maciço calcário do carste de Lagoa Santa favorece a fossilização das ossadas.
Segundo a arqueóloga Rosângela Albano, que dirige o Centro de Arqueologia Annette Laming Emperaire (é o nome da arqueóloga francesa que coordenou junto com André Prous a missão franco-brasileira que descobriu o crânio de Luzia, em 1975), Lund descobriu cerca de 70 ossadas humanas, a maioria das quais enviadas para o museu de Copenhague. Neste século, muitas outras ossadas foram encontradas por pesquisadores brasileiros e de outros países.
De acordo com Albano, o número de negróides encontrados é bem menor do que o de mongolóides, o que seria uma indicação que os primeiros chegaram aqui em número bem inferior. Porém, para Walter Neves, não há como fazer deduções sobre essas densidades populacionais. Ele lembra que o fato de os negróides serem de um período anterior torna mais difícil localizar seus vestígios.
Para Neves, a possibilidade de inter-relacionamento entre os dois grupos realmente existe. Pesquisas tentando essa comprovação em povos nativos da Patagônia já estão sendo feitas por ele. Mas a chave para uma comprovação definitiva deverá ser mesmo o DNA desses negróides. Uma das tribos atuais que poderia ter influência dos negróides pré-históricos, devido às características antropomórficas, segundo Vânia Prado, é a Maxacali. No entanto, ressalta ela, o DNA desse povo já está "contaminado", devido à miscigenação.
Peter Lund foi o grande pioneiro
Naturalista dinamarquês, Peter Wilhelm Lund nasceu em Copenhague, no dia 14 de junho de 1801. Formado em letras e medicina em 1818, preferiu a zoologia e a botânica. Mas ficou conhecido pelo trabalho realizado na primeira metade do século XIX na região de Lagoa Santa, em Minas Gerais.
Lund visitou o Brasil pela primeira vez em 1825. Residiu no estado do Rio de Janeiro, onde organizou coleções botânicas e ictiológicas. Retornou à Europa cinco anos depois, onde exibiu o resultado de suas pesquisas na França e na Itália.
De volta ao Brasil em 1833, percorreu outros estados, estudando a flora e a fauna locais. Notabilizou-se porém da existência de fósseis nas cavernas da região de Lagoa Santa, na bacia do Rio das Velhas. O doutor Lund, como ficou conhecido, percorreu quase 200 cavernas e identificou 115 espécies de mamíferos. Descobriu até ossos humanos misturados com ossos de animais, aproximadamente da mesma época. Empreendeu estudos detalhados dos fósseis humanos, resultando na definição das características do chamado "Homem de Lagoa Santa".
Naquela cidade, Lund escreve a história da época pleistocênica do Quaternário Brasileiro. Prova a predominância no Brasil dos dentados, alguns de forma gigantesca. A partir de 1835, suas pesquisas passaram a ser subvencionadas pela Sociedade de Ciências de Copenhague. Lund, que acabou reconhecido como o pai da paleontologia brasileira, organizou coleções botânicas, zoológicas e geológicas, divulgando na Europa as riquezas no Brasil.
Em 5 de maio de 1880, o naturalista dinamarquês morreu na própria cidade de Lagoa Santa, que adotara como sua terra.
Mutações teriam gerado negróides
Apesar do reconhecimento de que os "homens de Lagoa Santa" mais antigos tinham características diferentes dos povos indígenas americanos (pelo menos da maioria deles), depois que a teoria da migração australiana, via mar, diretamente para a América do Sul caiu em descrédito, a Ciência passou a considerar, até recentemente, que a ocupação do continente americano se deu em função de uma única grande migração de mongolóides oriundos da Ásia Central.
As diferenças desses homens pré-históricos mineiros em relação ao restante dos povos nativos americanos, passou a ter como explicação possível diferenciações provocadas pelo isolamento na região durante séculos e séculos.
"Já se percebia que essa era uma população muito antiga e que possuía características diferentes dos indígenas atuais, que têm nítida descendência mongolóide. Mas antes imaginava-se que seria uma variação do grupo mongolóide, que teria sofrido uma diferenciação física por processo evolutivo, com mutações ao longo de milhares de anos", explica a bioantropóloga do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, Cláudia Rodrigues.
Segundo ela, o trabalho do antropólogo Walter Neves, da USP, é inovador porque ele fez comparações das características físicas de Luzia com as de várias outras populações humanas, chegando à semelhança com os aborígines australianos. Além disso, destaca ela, também não haviam ainda sido levantados indícios de uma outra migração da Ásia para a América, anterior à dos mongolóides, por um povo mais antigo do que aquele, utilizando o mesmo caminho, qual seja o Estrito de Bering.
Cocô fóssil e preguiça gigante
Além de ossadas, os arqueólogos têm encontrado na região de Lagoa Santa uma série de outros vestígios dos homens pré-históricos que habitaram o lugar e que ajudam a compreender seus hábitos. É fácil verificar que eles se encontravam na Idade da Pedra Polida, observando seus machados, alguns bem trabalhados, que deveriam servir a rituais (veja foto ao lado), segundo Rosângela Albano.
Mas eles também usavam a pedra lascada, para fazer pontas de lanças. Outros vestígios que ajudam a verificar que esses homens eram coletores e que também caçavam, eventualmente, são restos de fogueiras e de alimentos, e os coprólitos (fezes), que são cocôs pré-históricos fossilizados, como se vê noutra das fotos em detalhe ao lado. A análise desses coprólitos, por exemplo, permite estudar que tipo de alimentação tinham - basicamente frutos, folhas e raízes, além de alguma carne, quando conseguiam caça.
A luta pela sobrevivência envolvia ainda o convívio com grandes animais, como o gliptodonte, um imenso tatu de cerca de um metro de altura; a preguiça gigante, que podia ter mais de três metros quando apoiada sobre as patas traseiras; e o tigre-dente-de-sabre. Em contrapartida, os cavalos que habitavam a região eram pequenos, menores que um cachorro pastor alemão, como atestam ossos achados pelo próprio Peter Lund, ainda no século passado, numa gruta em Matosinhos, que ele batizou de Lapa dos Cavalos. De acordo com Rosângela Albano, Lund foi o primeiro a encontrar ossos de cavalos pré-históricos na América. Um desses ossos pode ser visto no Centro de Arqueologia de Lagoa Santa.
Museu expõe uma ossada completa
As grutas da região de Lagoa Santa surpreendem pela quantidade de achados arqueológicos e paleontológicos que se fazem lá. E um grande acervo desse achados está no Museu da Lapinha, criado há 28 anos pelo arqueólogo amador húngaro, Mihaly Banyai, de 80 anos, 37 deles morando em Lagoa Santa. Banyai conseguiu reunir cerca de 2.600 peças, entre ossadas de animais, vários crânios e outros ossos humanos, além de uma série de objetos dos homens pré-históricos.
Mas o principal achado, foi o de um conjunto de quatro ossadas humanas, localizadas na Lapa do Acácio, em 1987. Trata-se de uma ossada - a única completa já encontrada, segundo Banyai - de um homem adulto , além de uma mulher, um ancião e uma quarta ossada bastante fragmentada, que não deu para identificar bem.
Todo o conjunto foi acondicionado dentro de uma caixa cheia de terra da própria gruta, tapada com vidro, e com os esqueletos na mesma posição em que foram achados por Banyai. O que mais chama a atenção, porém, é uma ponta de flecha feita de nefrita , um mineral inexistente no Brasil, que estava enterrada junto das ossadas. Segundo Banyai, o local mais próximo onde se acha este tipo de mineral é na Guatemala, na América Central.
Isso faz supor que o objeto tenha passado de pai para filho, durante a migração do homem pré-histórico da América Central para a do Sul, ao longo de muitos e muitos anos. E que tenha sido enterrada como parte de um ritual em homenagem aos mortos, como é comum em inúmeros povos primitivos e, inclusive, tribos indígenas brasileiras.
Riqueza da região
A região do Carste de Lagoa Santa é tão rica em sítios arqueológicos que, muitas vezes, os vestígios dos homens pré-históricos são achados por acaso e no quintal de casa. A arqueóloga Rosângela Albano encontrou na porta da cozinha de sua casa, no distrito de Lajinha de Fora, um sítio cerâmico, com vasilhas de barro, pontas de flecha de pedra lascada e outros instrumentos. O húngaro Mihaly Banyai, de 80 anos, criador do Museu da Lajinha, atribui mais importância ao grupo de quatro ossadas humanas que encontrou em 1987, na Lapa do Acácio, do que ao crânio de Luzia. Primeiro porque um dos esqueletos está completo; e também porque tratava-se de uma sepultura, enquanto Luzia foi, provavelmente, carreada para a Lapa Vermelha pela água.
Além do Carste de Lagoa Santa, outro importante sítio arqueológico existente em Minas é o Vale do Peruaçu, em Januária, Norte de Minas. Na região, recentemente, o Governo instituiu, por decreto, o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu. São dezenas de grandes grutas, onde se encontram ricos painéis em pintura rupestre, ossadas e objetos humanos pré-históricos.
Para a reconstrução do rosto de Luzia, a equipe de Richard Neave, especialista em reconstituição facial, fez minuciosos exames do crânio, utilizando tomografias computadorizadas. O crânio foi refeito em material sintético e o rosto esculpido em argila. Para modelar o queixo e as bochechas, foram utilizadas camadas de massa que variaram de 15 a 20 milímetros.
Os fósseis dos mais antigos antepassados do homem datam de cerca de 4 milhões de anos. Eram hominídeos, do gênero Ardipithecus. Depois surgiram os Australopithecus. O primeiro representante do gênero humano foi o Homo rudolfensis, há 1,8 milhão de anos. O Homo sapiens arcaico surgiu há 500.000 anos. E o homem moderno, há cerca de 50 mil anos.
As análises de DNA de povos nativos de todo o mundo indicam que o homem surgiu na África. De lá, ele teria inicialmente migrado para a Ásia, de onde se espalhou por todos os continentes. De acordo com os novos ambientes, climas e tipos de alimentação em cada região, as populações humanas foram sofrendo mutações, originando as diversas raças que temos hoje.
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