"Infância e juventude na Vila Verônica em Teófilo Otoni-MG"

 HISTÓRIA

"Infância e juventude na Vila Verônica em Teófilo Otoni-MG"

História de: Walter Teófilo Rocha Garrocho
Autor: Walter Teófilo Rocha Garrocho
Publicado em: 18/11/2009

HISTÓRIA COMPLETA

Sou neto de um ex-tropeiro e sitiante, Teófilo Rocha, natural de Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, e de uma imigrante polonesa - que veio do Estado de Santa Catarina - cujo nome era Bronislawa Zalazik. Sou filho de Tim Garrocho (ex-preso politico) e Laura Júlia (Dudula). Nasci praticamente na zona rural, em uma chácara de nome Lindóia ou Grota da Verônica, uma vez que todos conheciam a minha avó como "Dona Verônica". Eu, meus irmãos e as crianças da redondeza tivemos, em relação a espaço e natureza, uma infância feliz. Felicidade que foi brutalmente interrompida pela ditadura militar, que nos trouxe e vem trazendo, ao longo da existência, sequelas irreversíveis. Ainda hoje me lembro, com saudade, do velho Rio Santo Marcolino, que ficava após a Igrejinha Nossa Senhora dos Pobres, onde eu, meus irmãos e a molecada do lugar tirávamos nossos mergulhos nas águas límpidas e sem poluição. Perto do Rio Santo Marcolino havia um campinho de futebol que tinha o nome de "Campo do Zé Ramiro", porque meu grande amigo José Ramiro Geoking e sua turma do morro da Igrejinha Nossa Senhora dos Pobres não saiam das pelada de futebol realizadas naquele campinho. Vez ou outra vinha time de futebol dos bairros de Teófilo Otoni jogar contra o time da Vila Verônica. Era disputa acirrada, principalmente contra o time da Vila Barreiros que tinha Humberto Barbosa (Lelé), um craque no meio de campo. E, mesmo assim, era difícil nosso time da Vila Verônica perder um jogo. A molecada era boa de bola, tinha amor ao bairro, a torcida era fiel, havia união. Nessa época minha avó ainda era viva. Tínhamos muitas criações de porcos, cabras, vacas e até cavalos. É difícil acreditar, mas minha avó criava mais ou menos uns trinta cachorros. Cansei-me de ver muita gente descendo o morro do nosso velho casarão na maior correria, e a cachorrada latindo. Quando pegavam, era um Deus-nos-acuda. mordiam pernas, bundas e braços. Tinha que dar banho com água de sal. Minha Avó e Maria Bonfim (Dinha) cuidavam da vítima atacada. A cachorrada ficava perto rosnando e querendo atacar de novo. Era preciso muita coragem e um bom porrete para subir o morro do nosso velho casarão, dizem até hoje os mais antigos. Minha avó, por ser de origem polonesa, falava meio enrolado. Era uma mistura de português e alemão. Todo dia tirava leite de vaca e cabras. Trabalhava muito, muito mesmo. E foi tirando leite de uma cabras que ela sofreu derrame cerebral e nunca mais andou, ficando longos anos em cadeira de rodas, até o seu falecimento. Eu sempre digo a meus amigos que sou filho de um socialista casado com uma burguesa. Meu pai é filho de um operário comerciante, Antonio (Ioiô) Garrocho, casado com Inês Amado Garrocho. Minha mãe é filha única de um pequeno sitiante com uma imigrante polonesa. Sempre teve gestos finos, elegante no andar e falar. Seus parentes ainda moram no Rio de Janeiro e em Santa Catarina. Naquela época, todos os parentes da minha mãe pareciam conservadores em suas tradições. Um dos primos da minha mãe, o Carlos Teófilo de Souza e Melo, chegou a participar do inicio da construção do metrô no Rio de Janeiro e foi também presidente da Portobras do Brasil, no governo José Sarney, em 1985. Uma das tias da minha mãe foi diretora do famoso colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Os tios se tornaram militares do exército. Um deles era meu padrinho de batismo, o Capitão Rocha. Já o outro se tornou General do Exército. Cheguei a conhecê-lo, morando na Rua das Laranjeiras, em bairro nobre da cidade do Rio de Janeiro. Parece que eles "não comiam no mesmo prato do meu pai", ou seja, não gostavam muito do jeito socialista do meu pai e de suas ideias meio malucas, segundo o General Manoel Mendes Pereira, padrinho da minha mãe. Meu pai sempre foi meio avesso a comportamentos nobres. Se desse vontade, poderíamos comer até com as mãos. Ao contrário da minha mãe, que até guardanapos colocava na mesa no almoço e no jantar. Havia divergências entre ele e minha mãe quanto à nossa criação. Minha mãe era rígida, de cipó na mão para corrigir, e muito pontual. Meu pai não era ligado a detalhes e falava que "menino é igual passarinho, tinha que criar solto". Quando as primeiras casas começaram a surgir na Vila Verônica, que eu gostava e gosto de chamar "Vila Verônica de todos os povos", tudo era muito humilde. Meu pai doava pequenos terrenos e o povo - em sua maioria - era oriundo da zona rural e de pequenos povoados. A maioria não era muito letrada e todos eram muito humildes até no falar. Havia apelidos muito engraçados como: Maria Rabo de Galo, Fedegoso, Chupa-Coco, Augusto Meladinha, Ari Foba, Maria Xarope e uma outra Maria Comunista que, na certa, devia ser companheira de lutas sociais do meu pai. Convivi muitos anos com todos eles. Fui e ainda sou amigo dos seus filhos. Tinha muita coisa interessante naquele povo. E uma das tradições que não esqueço era quando morria alguém, parente ou não. Eles passavam a noite bebendo, cantando e chorando. Diziam que era para "espantar os espiritos ruíns". Havia também muita reza de terço, Menino Jesus no Natal, quadrilhas com fogueiras e a tradicional Folia de Reis no final de ano. A diversidade de crenças era visível. Havia centros de Umbanda, e os evangélicos começavam a chegar através de seus missionários. No lado católico, Dona Chiquinha Otoni comandava a igreja e os fiéis, programava muita festa e reza para o povo. Ela perdia a postura quando alguém não se comportava ou bebia muita pinga. Puxava a orelha de muito marmanjo. Um fato interessante, que chamava minha atenção, era que todo ano realizavam duas festas na Igrejinha Nossa Senhora dos Pobres. Uma para os ricos e outra para os pobres (ou seja, para o pessoal do bairro). Os organizadores diziam que não. Mas era divertido. O proletariado da Vila Verônica (e da redondeza) não tinha a menor cerimônia em pagar e entrar na festa dos ricos. Meu pai Tim Garrocho, socialista que era, até financiava a turma dos pobres a participar da festa dos ricos, e se possível com um breve protesto na entrada. No alto da Vila Verônica, as casinhas iam se multiplicando e, a cada dia, mais pessoas procuravam meu pai. Ele ajudava a todos e dizia sempre que "gente é igual formiga", se desse o terreno eles faziam a casa. Quando meu pai foi preso pela ditadura militar, uma das primeiras coisas que eles fizeram foi tirar fotografias das casinhas no alto do morro. Segundo os agentes do DOPS, aquilo era uma foma de comunismo. Só que meu pai pensava diferente e sempre dizia para nós e ao povo que "terra não tem dono, terra é de Deus e, já que somos filhos de Deus, é nosso direito ter um pedaço de terra, nem que seja para fazer um pequeno barraco". Frequentei algum tempo os clubes de jovens da Vila Verônica. Eram formados pela igreja Católica e dirigidos pelo meu amigo - o inteligente Jaime Matos (Jaiminho) - e sua esposa, a professora Amélia. Cheguei a ser presidente de clube de jovens nos anos setenta. As reuniões eram no antigo seminário e, junto conosco, participava uma freira de caridade de origem italiana que se chamava Arcângela, muito amável e inteligente. Muitas vezes, nos meus questionamentos interiores, eu desabafava tentando que ela me explicasse o porquê da prisão do meu pai pela ditadura militar, sendo que o mesmo era um homem justo. Por mais que ela tentasse, com palavras de conforto espiritual, eu não conseguia entender. Até hoje, sinto não tê-la ajudado mais no seu valioso trabalho social que realizou em prol de comunidades carentes como o Alto do Eucalipto e Vila Verônica em Teófilo Otoni, tendo em vista que abandonei as reuniões de jovens. Tudo aconteceu por um motivo que marcou minha vida e me deixou decepcionado. A irmã Arcângela havia pedido a mim que fizesse um cartaz para colocar no clube de jovens. As palavras deveriam ser bíblicas. Segundo ela, o bispo da cidade viria visitar-nos e, para ela e os mais ligados à Igreja católica, seria uma honra. Pensando na prisão do meu pai, no sofrimento que eu, minha mãe e meus irmãos estávamos passando e já entendendo algo sobre o que era aquele regime autoritário dos militares, fiz um grande cartaz com os seguintes dizeres bíblicos: "Os meus bois são a justiça, e a minha campina a verdade". O bispo chegou, olhou, disse que estava tudo muito bonitinho, tudo certinho e que estávamos de parabéns. Mas aquele cartaz que eu havia feito não poderia ficar ali, porque traria problemas para a igreja. Fiquei magoado com aquela autoridade da Igreja Católica e tenho a a impressão de que aquela freira italiana também ficou. Segundo a tal autoridade, aquele não era o momento para mensagens como aquela que fiz. No momento, lembrei-me da música "Prá não dizer não falei das flores", de Geraldo Wandré, que diz: "Vem, vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer". Durante anos, fiquei sem voltar àquele local e, vez ou outra, pelas ruas do bairro, encontrava a Irmã Acângela que me dizia, com um olhar de saudade das minhas ideias: "Volta, Teófilo, a tua campina é a verdade". Muitas vezes, nos meus eternos questionamentos interiores, tentava responder ao pedido de volta da Freira Arcângela, do Jaime Matos e esposa Amélia, e até mesmo do meu amigo Padre Giovani, dizendo para mim mesmo que: "Caminhos há muitos, vários, nenhum escolhido. Estou vivendo quase todos, caindo, sujando, tentando levantar. Desta esfera de desencontros passarei. Talvez hoje não, amanhã talvez sentirei uma força estranha, quase invisivel. Estou confuso, preciso clarear minha mente para ver e sentir o brilho de um poder superior que se aproxima do meu ser. Ainda sou fraco, não consigo me levantar; Deus, tende misericórdia de mim, dai-me forças para levantar". (História enviada em novembro de 2009)

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