Relatos de tortura durante a ditatura militar são variações de um roteiro macabro

 

postado em 24/03/2014 00:12 / atualizado em 24/03/2014 07:59
Prédio do antigo Dops, em Belo Horizonte, cenário de horror para os presos polítcos mineiros
(foto: Cristina Horta/EM/D.A Press)

Mineira de Uberaba, Maria Madalena Prata Soares, uma das 1.843 vítimas de tortura no país durante a ditadura militar, lembra perfeitamente do dia em que foi presa. Era 23 de outubro de 1973. Ela foi levada, grávida, junto de um dos filhos, na época com 3 anos, para o Colégio Militar, em Belo Horizonte, e depois para o Dops de São Paulo. Durante os cinco dias em que seu filho esteve com ela, foi poupada das torturas físicas, mas não das psicológicas. “Diziam que iriam agredi-lo. Um dia penduraram ele na janela e ameaçaram jogar lá em baixo. Era um terror. Ele não entendia o que acontecia e achava que se a gente mudasse a cama da cela de local os guardas não iam nos achar e a gente podia fugir”, conta. Assim que ele saiu da prisão, entregue aos avós, começaram os suplícios, conta Madá, como é conhecida a ex-militante , que foi casada com José Carlos da Matta Machado. O companheiro de Madá foi morto em 1973 pelo regime militar, hoje nome de rua em Belo Horizonte, que antes se chamava chamava Dan Mitrione, torturador norte-americano que veio para o Brasil ensinar "métodos modernos de interrogatório" para os militares.


De detalhes da tortura ela diz não se recordar. Anos de terapia, segundo ela, ajudaram a não ficar remoendo tudo que passou e a tentar esquecer a violência. “Não fico pensando muito, nem tentando lembrar dos detalhes. Mas quem passa por isso que eu e tantos outros passamos não consegue apagar tudo. Mesmo quando estamos rindo tem sempre uma dor por trás”, disse Madá, que conversou com a reportagem no dia em que José Carlos faria 68 anos, se não tivesse sido assassinado.

Mas quem lê o depoimento de Madá nos arquivos do Brasil Nunca Mais não se esquece. Um de seus primeiros interrogatórios começou às 8h da manhã e só terminou na madrugada do dia seguinte. Ela levou choques, surras de palmatória que deixaram seu corpo roxo, com feridas cheias de pus, e de tanto apanhar perdeu o filho. Deprimida com a violência e com a notícia da morte do marido, era vigiada de perto pelos seus algozes para evitar que atentasse contra a vida. Mas ao contrário de muitas outras mulheres, Madá conseguiu ao menos resgatar o corpo do marido.

Mesma sorte não tiveram os familiares do pernambucano Ramires Maranhão do Valle, militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário desaparecido durante a ditadura militar, aos 23 anos, no Rio de Janeiro. “Meu avô Francisco tem 95 anos e está sendo torturado a cada dia que passa, pois não tem informações sobre o paradeiro de seu filho. O meu sonho é que tenha ainda em vida, mas como sou brasileiro, não tenho muito esperança quanto a isso”, comenta Carlos Beltrão do Valle, historiador, sobrinho de Ramires. Há 40 anos a família trava uma luta constante para tentar localizar o corpo de Ramires, que faz parte da relação dos 147 presos políticos desaparecidos durante a ditadura. “Todas as informações que tivemos sobre o paradeiro do meu tio foram fruto de muito trabalho investigativo de meu pai, Romildo Maranhão do Valle, junto do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro”, afirma Carlos, crítico da atuação da Comissão Nacional da Verdade e da não abertura de todos os arquivos sobre o regime militar.

Informações obtidas pela família indicam que o corpo de Ramires foi carbonizado e enterrado em uma cova rasa e clandestina no Cemitério de Ricardo de Albuquerque, no Rio de Janeiro, localizada na década de 90, junto de outras pessoas não identificadas. “Como não foi possível a identificação das ossadas, por estarem entre mais de duas mil, elas foram acondicionadas em um memorial, que foi inaugurado em 11 de dezembro de 2011, quase 20 anos após serem localizadas. Não só seus corpos foram negados aos familiares, mas também suas histórias à sociedade”, comenta Beltrão, autor de uma tese de mestrado que defende a transformação dos locais de tortura em museus para a preservação da memória dos tempos da ditadura. “No Brasil, só realizamos a reparação financeira, que deveria ser o final do processo. Os corpos continuam desaparecidos e os torturadores comemorando o golpe todo ano.”

Inquéritos

O Brasil Nunca Mais foi um projeto desenvolvido nos anos 1980, sob a coordenação de dom Paulo Evaristo Arns e do reverendo James Wright, com apoio financeiro do Conselho Mundial de Igrejas (CMI). Aproveitando-se de uma brecha da lei, que permitia que os advogados de defesa dos presos políticos tirassem, no prazo de 24h, cópia dos inquéritos, foram reproduzidos integralmente os processos de 710 presos, hoje uma das principais fontes de informação de pesquisas sobre o regime militar. Temendo repressão, a íntegra desse material foi remetida para Genebra, na Suíça, sede do CMI, e só retornou ao Brasil em 2011, onde foi totalmente digitalizado e hoje pode ser consultado no endereço www. bnmdigital.mpf.mp.br. Foi desse arquivo que foram retirados os depoimentos e os relatos sobre as formas de tortura, os locais e os torturadores.
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