Priscilla Toscano afirma que a ação realizada em 2016 foi um manifesto artístico-político contra tudo o que Bolsonaro representa
Tudo nesta vida envolve política. A política também permeia a arte, como a intervenção urbana de Priscilla Toscano, 36 anos, a artista que no dia 23 de abril de 2016 cuspiu, urinou e defecou num cartaz com a foto de Jair Bolsonaro, que na época ainda era deputado federal do país. Estaria ela prevendo que um dia seria ele a tossir e defecar em todos nós?
Quatro anos depois deste episódio, a Priscilla afirma que recebeu ameaças graves, passou por mudanças de visual e também de endereços, enfrentou os seus haters e não se intimidou. Em vez disso, ela deu continuidade em outras performances e alcançou projeção internacional com convites para se apresentar em diversos países, além de estar atualmente concluindo um mestrado acadêmico justamente focado na pesquisa de performances e intervenções urbanas.
Leia abaixo a sua entrevista completa e assista ao vídeo com a polêmica performance chamada Máfia, realizada uma única vez no Vão do Masp, em São Paulo.
A performance
Máfia foi uma intervenção artística que realizei com o grupo Desvio Coletivo no Vão do Masp em 2016. A ação foi um manifesto político criativo que aconteceu no auge do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Para quem não se lembra, a sessão foi comandada por Eduardo Cunha, que meses depois foi preso durante uma ação da Lava Jato acusado de ter recebido US$ 5 milhões de propina em contratos da Petrobras.
Entre os discursos inflamados dos deputados, a parte que mais me chocou foi a homenagem feita por Bolsonaro a um torturador dentro do plenário do Congresso Nacional. “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim”, disse ele.
Diante daquele absurdo político no qual o Bolsonaro não saiu algemado do congresso por quebra de decoro parlamentar ao homenagear um torturador, nós planejamos uma ação artística para expressar repúdio ao seu ato e também aos muitos outros deputados que votaram a favor do impeachment, com discursos recheados de “Em nome de Deus e pela honra da família brasileira”, sendo que 40 deles eram réus em crimes relacionados a corrupção e muitos apareceram meses depois da lista de delação da Odebrecht, uma das maiores investigações do país que revelou mais de R$1 bilhão em propinas.
Cada integrante do meu grupo escolheu uma foto de um político diferente e nós estendemos todos os cartazes como se fossem obras expostas no museu. Durante as duas horas da realização da performance, eu permaneci cuspindo na mesma imagem, a fotografia do então deputado federal Jair Bolsonaro. Em determinado momento, passamos a convidar o público que passava pela avenida Paulista para participar também cuspindo nessas imagens, dando sentido à exposição interativa. Dezenas de pessoas entraram no jogo e cuspiram junto com os artistas envolvidos na intervenção. Foi aí que uma mulher transeunte que vinha observando ativamente a exposição, cuspindo de imagem em imagem, parou diante de mim e disse que cuspir era pouco para interagir com a “obra Jair Bolsonaro”. Então, eu decidi que além de cuspir, eu deveria acrescentar outra ação que estivesse de acordo com o pedido do público e ainda utilizasse a metáfora como forma de linguagem. Como eu estava usando um vestido, tirei a calcinha sem obviamente expor as minhas genitais, me agachei sobre a imagem, urinei e em seguida defequei. Sim, eu realizei essa ação com a intenção de causar um choque na percepção de parte da população que, aparentemente anestesiada, parecia encarar com naturalidade posições políticas que são inaceitáveis, como uma homenagem à tortura dentro do plenário. Naquela época, eu não poderia imaginar que o fato de uma mulher defecar em público poderia ser mais chocante do que aquela atitude do Bolsonaro.
Atualmente, eu percebo que essa parcela da população não se chocou com o elogio ao torturador, pois de fato essas pessoas não veem nenhum problema neste tipo de conduta e, por isso mesmo, elas o elegeram como presidente. E elas teriam elegido o Ustra também se ele ainda estivesse vivo e fosse candidato. É por isso que as falas atuais do Bolsonaro já não me surpreendem mais, nem mesmo quando ele minimiza uma pandemia a chamando de “gripezinha”. Pra quem homenageou um torturador, o atual “E daí?” diante das milhares de mortes causadas pelo Covid-19 apenas evidencia o discurso genocida do atual presidente do país.
Ameaças, intimação na polícia e decisão judicial
Eu acredito que a opinião pública ficou tão escandalizada com minha performance devido a dois motivos. O primeiro é o fato de eu ser mulher e o segundo é o fato da minha ação ter acontecido em um espaço público. Eu fui condenada pelo “tribunal da internet” e vejo que essa desaprovação está apoiada na construção histórica de um ideal de mulher doce e delicada que pertence somente ao lar e não tem o direito de exibir-se em local público, afinal, este sempre foi o espaço dos homens. Basta observarmos que, após a realização da minha ação, eu passei a receber inúmeras mensagens não somente com insultos, mas também com ameaças a minha integridade física e psicológica, quase em sua integralidade, de caráter machista e misógino.
O tom violento das ameaças me fizeram trocar de endereço, mudar radicalmente o visual e também a interromper as aulas de teatro que eu ministrava. Além disso, houve a tentativa de criminalização da minha performance, uma vez que fui indevidamente denunciada pelo suposto crime de ato obsceno. Na época, eu fui intimada a comparecer na Polícia Civil junto com meu advogado, o Dr. Gustavo Polido, e declarei no meu depoimento que no dia 23 de abril de 2016 eu urinei e defequei, sim, na imagem de um deputado federal que elogiou um torturador da ditadura militar. No final, ficou comprovado perante a Lei que não houve ato obsceno na minha ação, mas sim o uso da metáfora artística expressada como manifesto político.
Reconhecimento internacional
Nos últimos anos eu alcancei algumas conquistas muito significativas na minha carreira profissional e uma delas é ver o meu trabalho inserido no circuito internacional. De certa forma, a gradativa escassez de recursos de políticas de fomento a arte e cultura no Brasil faz com que nós, artistas, procuremos oportunidades fora do país. Eu trabalho com performances e intervenções urbanas há mais de 12 anos e graças a essa insistência passei a receber convites para apresentações em diferentes festivais de arte na Europa e na Ásia, seja com o meu trabalho solo como performer, ou também com o grupo que dirijo, o Desvio Coletivo.
Tenho muito orgulho de ter representado o Brasil em circuitos importantes como o Festival D’Aurillac, que ocorre há mais de 30 anos na França, sendo considerado o maior festival de artes de rua da Europa. Recentemente, também me apresentei em festivais de arte em Portugal, Bélgica, Taiwan, Malásia e na Coréia do Sul, sendo que neste último nós, do Desvio Coletivo, fomos os primeiros brasileiros a serem convidados para este evento.
Tive a alegria de circular por esses e outros festivais que fomentam um amplo espaço para as artes urbanas, ao contrário da realidade que infelizmente assola o Brasil.
Relação entre política, arte e ocupação das ruas
Existe aquela máxima que diz que “toda arte é política”, mas ainda assim percebo que dentro do meio artístico há alguns que preferem não misturar ambos os assuntos. Na minha opinião, isso é retrógrado e cafona. Acho um discurso extremamente cômodo e egoísta que visa não perder o patrocinador, a bilheteria, os contratos, as amizades, contatos com a curadoria, ou até mesmo perder os seguidores nas redes sociais.
Quando fiz a performance Máfia, em 2016, muitos artistas se voltaram contra mim ou simplesmente se afastaram, mesmo os que eu considerava amigos próximos. Eu estava sendo perseguida, agredida, ameaçada e não pude contar com o apoio deles com o argumento de que eles não queriam se envolver com política. E essa foi a parte mais difícil de enfrentar. Pude experimentar o amargor traduzido perfeitamente por Martin Luther King quando ele diz “no final, não nos lembraremos das palavras dos nossos inimigos, mas do silêncio dos nossos amigos”. Mas sendo otimista, percebo que esse comportamento tem mudado atualmente. Vejo a classe artística muito mais disposta a sair da zona de conforto e a enfrentar as atrocidades vindas do atual governo, vide a nota de repúdio assinada por mais de 500 artistas revoltados com a atual Secretária de Cultura e ex-atriz Regina Duarte, que durante uma recente entrevista a CNN Brasil celebrou o período da ditadura militar e ainda minimizou as milhares de mortes das vítimas brasileiras da pandemia.
“Hoje eu cagaria novamente e com mais vontade”
Performance não é novela, não é cinema e nem teatro. E ela não almeja o mesmo tipo de sucesso. O sucesso de uma performance se dá pelo seu grau inflamável, quando cai feito uma bomba, quando incomoda, quando provoca, quando causa reflexão e ação. Eu acho que nada atesta mais o fracasso de uma arte cênica do que sua irrelevância. A apresentação de Máfia foi marcante por transgredir sistemas morais, institucionais e sociais. Minha escolha foi certeira, pois transformei merda em metáfora. Usei a merda como símbolo de denúncia de um horror: os mortos e torturados pelo regime da ditadura. Até entendo que uma parcela da população não consiga lidar com essa metáfora, aliás, acho que deve ser difícil entender qualquer tipo de metáfora quando se acredita que a Terra seja plana ou que a Cloroquina seja uma possível solução pra atual pandemia. Quem olha para a minha performance e só consegue enxergar uma mulher defecando na rua, com certeza vive numa escuridão intelectual. Atualmente, infelizmente, algumas pessoas sentem orgulho da sua proporia ignorância.
Aliás, o verbo “defecar” é uma palavra muito suave para o nojo que o fascismo representa. Sejamos sinceros com nossa vontade em escrachar o fascismo e vamos assumir a visceralidade linguística da expressão “cagar”. A palavra cagar me parece muito mais honesta para nos referirmos a tal vergonha. Por que deveríamos ser educados com o fascismo quando o que ele faz é nos afundar em um mar de bosta? Portanto, eu caguei. E naquela época eu não caguei na imagem de um deputado federal. Eu nunca quis cagar na imagem de um deputado federal. Eu, baseada na liberdade de expressão e me utilizando da figura representativa, caguei na imagem da apologia à tortura. Caguei na imagem do machismo. Caguei na imagem do racismo. Na imagem do desrespeito aos índios. No preconceito a toda comunidade LGBTQ+ e a repressão das diferentes formas de amar. Nunca tive intenção e nem teria de violar a honra ou a imagem de qualquer pessoa, a intenção sempre foi, e ainda é, de livre manifestação de pensamento crítico, ainda que utilizando-se de imagens, analogias e percepções cognitivas decorrentes do momento político vivido à época em que ocorre a manifestação artística. E hoje eu cagaria novamente e com mais vontade. Porque hoje eu não cagaria na imagem de um presidente. Hoje eu cagaria na imagem da morte. Cagaria na imagem de um capataz que coloca seu povo como refém de uma pandemia e também do seu autoritarismo.
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