Plataformas facilitam a compra e a venda de artefatos nazistas no Brasil

 Estudantes de jornalismo monitoraram por mais de um ano sites em que são vendidos objetos ligados a Hitler e ao Holocausto

Comercialização de objetos do período nazista, sobretudo de filatelia e numismática, são comuns. (Foto: da equipe de reportagem)


(Reportagem feita sob a supervisão do professor Helton Costa, do curso de Jornalismo da UniSecal, em Ponta Grossa, no Paraná.)

No Brasil, é fácil comprar e vender artefatos nazistas e outros objetos associados ao massacre de judeus na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

É possível encontrar na web uniformes completos, plaquetas de identificação, facas da chamada “juventude hitlerista”, selos, buttons, moedas e bandeiras nazistas. São produtos com valores de R$ 5 a R$ 90 mil.

Existem até canecas estampadas com o rótulo do inseticida Zyklon B, o veneno usado nas câmaras de gás dos campos de extermínio.

Caneca com rótulo do veneno usado em câmaras de gás na Segunda Guerra Mundial, à venda no Mercado Livre. (Reprodução)

Ter um objeto histórico – ou memorabilia – não é crime. Porém, de acordo com autoridades consultadas pela reportagem, quando há apologia ou divulgação do nazismo, o comerciante pode ir para a cadeia.

De acordo com a lei 7.716/89, é crime punível com multa e até dois anos de cadeia “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”.

Polícia Civil

“Um ponto importante é que esse determinado objeto ou símbolo precisa ter como finalidade a ‘divulgação do nazismo’”, diz o delegado Maurício Souza da Luz, da Polícia Civil de Ponta Grossa. “Pode ocorrer de uma pessoa ter um livro, por exemplo, que é tratado como um objeto de valor histórico, ou seja, o fim dele não seria a divulgação do nazismo, e nesse caso não incide nesse delito. O simples fato de a pessoa possuir um objeto, sem o intuito de divulgar o nazismo, não é entendido como crime.”

Porém, buscar o lucro com o nazismo e com o Holocausto pode ser questionado do ponto de vista ético e moral. Em 2013, no Reino Unido, o eBay tirou do ar produtos pertencentes a vítimas do Holocausto, pediu desculpas e doou 30 mil euros (R$ 180 mil) para instituições beneficentes.

Em outro caso, ocorrido neste ano, a Amazon deixou de vender vários livros de autores de extrema-direita como George Lincoln Rockwell (1918-1967), fundador do partido nazista americano, depois de um pedido do Museu de Auschwitz. A princípio, o episódio se referia a produtos encontrados na Amazon britânica, mas acabou abarcando todos os países que tinham o mesmo problema.

“Particularmente, acho imoral qualquer tipo de lucro sobre a dor alheia”, diz Rafael Kondlatsch, doutor em comunicação e pesquisador de discursos nas mídias. “Criar memorabilia a partir do Holocausto é dar um passo a mais na banalização do que foi a ação dos nazistas. Não há celebração alguma nisso, e usar o resgate histórico como argumento é ridículo – se assemelha ao sensacionalismo da imprensa sobre uma tragédia.”

Anúncio de bandeira nazista vendida por R$ 2.500. (Reprodução)

Lei n. 7.716/89

O advogado Leonardo Silva de Oliveira Bandeira, em artigo publicado em janeiro deste ano, falando sobre a redação da Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989, argumentou: “percebe-se que a legislação brasileira não possui disposições claras e suficientes para o combate ao nazismo. Urge a criação de uma lei própria cominando [prescrevendo] penas e abordando as mais diversas condutas de divulgação e enaltecimento do nazismo com a finalidade de propagar tal ideal bárbaro e ultrapassado”.

Enquanto a legislação brasileira se mostra vaga, na web, há um comércio livre para produtos desse tipo. Em alguns leilões, um item chega a ter lances de R$ 3 mil. Alguns tentam disfarçar, borrando ou escondendo a suástica. Outros são mais ousados e não disfarçam –  falam abertamente das referências nazistas e colocam até fotos dos donos anteriores com o intuito de valorizar os objetos. A reportagem acompanhou por mais de um ano as movimentações nesse submundo de itens históricos.

Uma coleção de selos nazistas à venda no Mercado Livre, a maior loja virtual de produtos novos e usados do Brasil, custava R$ 90 mil. O vendedor era de Niterói, no estado do Rio de Janeiro. Distintivos nazistas custavam algo entre R$ 600 e R$ 1,2 mil.

Um capacete alemão das tropas de elite Schutzstaffel, mais conhecidas como SS, responsáveis por dezenas de massacres contra civis na Europa, saía por R$ 900 por estar “em mal estado de conservação”.

Por R$ 3,8 mil, era possível comprar uma miniatura de Adolf Hitler, vendida sem mencionar o nome do “líder alemão”. O item lembrava um boneco de brinquedo, com a opção de mudar a cabeça para um Hitler calmo ou para um Hitler furioso.

Boneco de Hitler, como se fosse um brinquedo, vendido por R$ 3,8 mil.

Mercado Livre

Questionado sobre a vendas de objetos nazistas, o Mercado Livre disse que sua atividade principal é o marketplace, formato em que a empresa oferece a plataforma para que as pessoas vendam produtos e serviços. Mas, para fazer isso, os usuários precisam se cadastrar e aceitar os termos e condições de uso.

“A comercialização de objetos que incitem a violência ou discriminação, incluindo produtos que façam apologia ao nazismo, como imitações de venenos usados nas câmaras de gás durante o holocausto, é expressamente proibida na plataforma”, diz o comunicado da empresa.

“Vale ressaltar que 100% dos anúncios publicados no site possuem um botão de ‘Denúncia’, abaixo da publicação, no canto inferior direito, para que qualquer usuário possa apontar práticas irregulares”, segue a nota. “A companhia analisa as denúncias recebidas e remove  prontamente anúncios que violem seus termos e condições de uso, penalizando os vendedores conforme regras da plataforma.”

Alguns anunciantes de produtos citados nesta reportagem diziam não apoiar o nazismo, outros não diziam nada.

Leilões BR

No site da carioca Leilões BR, que trabalha com leilões virtuais, foram encontrados produtos com suástica sendo vendidos com valores entre R$ 3 e R$ 3 mil.

Em contato com a empresa, a mesma disse que não cabe a ela responder pelos produtos, uma vez que “apenas fornece sistemas para realização de leilões através da internet”.

“Não temos acesso ou ingerência sobre fotos e informações apresentadas para os lotes divulgados nos catálogos. Todo leilão é certificado por Leiloeiro Público Oficial, credenciado na Junta Comercial do respectivo estado, ao qual são informados todos os lotes que serão apregoados”, disse a Leilões BR.

No entanto, uma consulta às juntas comerciais do Rio de Janeiro e de Minas Gerais – dois dos três estados com o maior volume de produtos nazistas disponíveis para leilão – mostra que esse argumento “não procede”.

Panzer Militaria

O site especializado Panzer Militaria, de Timbó, em Santa Catarina, vende itens que vão de bustos de Hitler até bonés com símbolos da SS. A empresa não anuncia tais itens em seu perfil no Facebook, que proíbe esse tipo de propaganda.

Porém, em grupos fechados ou secretos dentro do próprio Facebook, não há a mesma censura, uma vez que, se ninguém denunciar a venda, apenas os membros conseguem ver o conteúdo. O mesmo ocorre em grupos de WhatsApp, um aplicativo do Facebook com comunicação criptografada.

“Sou descendente de alemães, meu avô foi sturmbannführer totenkopf SS [major da divisão ‘crânio’, da SS], possuo dezenas de suvenires e já vendi um punhal da hitlerjugend [juventude hitlerista] – estava precisando me capitalizar, na época – através da internet. Nem por isso saio argumentando a favor do antissemitismo, da intolerância racial e afins”, diz postagem em um dos grupos do Facebook.

“Acho estranho que milhares de pessoas no mundo (incluindo jornalistas) confundam itens de guerra, que são história, com simpatizantes, necessariamente, do nazismo. Vamos parar com isso! Ridículo!”, comentou outro usuário no mesmo post. Ambos criticavam uma notícia que denunciava a venda de produtos nazistas pela web.

Rastreamento difícil

Para chegar aos vendedores, muitas vezes os produtos já passaram por vários donos, o que dificulta o rastreamento, conforme diz uma fonte que trabalha com leilões dessas peças e que pediu para não ser identificada.

Há ainda famílias que vendem objetos herdados de parentes que estiveram na Segunda Guerra. Nesse caso, segundo a fonte, é mais fácil conseguir documentos para atestar a autenticidade e conseguir um bom preço depois.

A mesma fonte explicou que há rotas pela Argentina, pela Ucrânia e pelos Estados Unidos, de onde é mais fácil importar e revender no Brasil. Em alguns poucos casos, os produtos vêm direto da Alemanha. Há ainda feiras especializadas em militaria – palavra que define os objetos relacionados ao mundo das forças armadas – em vários países europeus.

Quando se trata de réplicas de fardas, por exemplo, exportadores da China enviam para compradores brasileiros usando os Correios. Com a facilidade da internet, dependendo do produto e da origem, ele é entregue na casa do comprador, tanto pelos Correios, quanto por transportadoras privadas.

Um colecionador, que estuda militaria da Segunda Guerra Mundial e que pediu para não ser identificado, explica que boa parte do que vem de fora do país é falsificado. “Mas nem tudo o que é vendido vem de fonte ilícita. Muita coisa vem de famílias, excedentes de guerra etc. E o material da Ucrânia e dos Estados Unidos precisa ser olhado com atenção. Boa parte é falsa. Da Argentina, nem se fala”, diz.

Ministério Público

De acordo com juristas consultados pela reportagem, em caso de suspeita de desrespeito às leis, o Ministério Público pode pedir que os objetos vendidos na web sejam apreendidos, mesmo que não tenha sido instaurado um inquérito policial e, da mesma forma, pode pedir a instauração de inquérito.

“Devem ser duas as discussões: a primeira sobre o uso, a utilização [desses objetos] – se para um viés educativo, se para apologia ou divulgação do nazismo, ou por mero colecionismo, por mais mórbido que seja. No caso de apologia, a questão envolve uma perspectiva jurídica. A segunda discussão é sobre a comercialização em si. No nosso entendimento, a simples compra e venda de tais reproduções numa plataforma aberta já é condenável do ponto de vista ético, já que dá margem àqueles que buscam a apologia e, consequentemente, agridem a memória das vítimas.”

Carlos Reiss, coordenador-geral do Museu do Holocausto, em Curitiba.

Museu do Holocausto

A comercialização de objetos do período nazista, principalmente de filatelia e numismática, são comuns e do conhecimento do Museu do Holocausto, em Curitiba.

“É habitual à doação periódica, por parte de colecionadores, de selos e moedas ao acervo do museu. São conhecidas também as medalhas, broches e insígnias do mesmo período”, diz Carlos Reiss, coordenador-geral do Museu do Holocausto, em Curitiba.

Reiss também reconhece a existência de um mercado de colecionadores e que, às vezes, pode haver simpatizantes nazistas nesse grupo.

“Para driblar os algoritmos desses sites, os vendedores normalmente omitem palavras-chave e apagam os símbolos nas fotografias – o que é outra discussão. O fato é que é difícil controlar esse comércio”, diz Reiss.

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2 comentários sobre “Plataformas facilitam a compra e a venda de artefatos nazistas no Brasil

  1. Olá Plural tem um erro digitação no parágrafo “Leilões BR”

    “No site da carioca Leilões BR, que trabalha com leilões virtuais, foram encontrados produtos com suástica sendo vendidos com valores entre R$ 3 e R$ 3 mil.

  2. O que vocês estão fazendo me lembra a caça às bruxas no século XVI. Já passou pela cabeça dos senhores jornalistas que o grande interesse pela história alemã do período da WW2 por tantas pessoas seja pelo fato das estratégias militares adotadas, até então inovadoras, o conceito da blitzkrieg, as aeronaves ultramodernas, blindados imbatíveis, dentre tantos outros aspectos tecnológicos? Pilotos que alcançaram marcas impressionantes em abates, operadores de Panzers que foram verdadeiras lendas em combate, nomes como Erwin Rommel, Michael Wittmann, Otto Carius, Von Braun… As histórias desses homens e centenas de outros são impressionantes. As estratégias militares e tecnológicas avançaram devido à essas pessoas. O grande foco do colecionismo de peças alemãs se deve a esses fatores, e não pelos horrores do Holocausto. Não se pode taxar de nazistas quem admira e preserva a história.




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