Imagem de que período militar foi mais honesto se deveu a falta de transparência e fragilidade de órgãos de controle
SÃO PAULO
“O negócio é lucrativo sob qualquer aspecto: a Odebrecht pode cobrir todos os seus gastos e exigir também adicionais. Quanto mais cara a construção, maiores os rendimentos para os acionistas.”
A afirmação pode soar familiar ao noticiário recente do país, mas estampava as páginas da Folha no longínquo ano de 1978, ainda no penúltimo dos governos do regime militar.
À época, o jornal repercutia reportagem da revista alemã Der Spiegel sobre supostas irregularidades em um acordo firmado entre Brasil e Alemanha que viabilizou a construção das usinas nucleares de Angra.
A publicação europeia questionava ligações de ministros com as empresas contratadas, atrasos das obras e o encarecimento do projeto.
Aliados do então presidente Ernesto Geisel repudiavam o teor das acusações da revista. E, assim como aconteceria 36 anos mais tarde no âmbito da Operação Lava Jato, o principal nome da empreiteira foi convocado para depor em uma CPI: Norberto Odebrecht, fundador da construtora, falou aos parlamentares em abril de 1979.
A comissão parlamentar, criada por causa da reportagem, ouviu outras dezenas de testemunhas, mas teve escassas consequências.
Se hoje o mantra de simpatizantes do antigo regime dos generais é o de que, em que pese o autoritarismo, não havia corrupção na época, os arquivos do período e os relatos da imprensa mostram uma série de episódios polêmicos envolvendo altos funcionários e até agitação política provocada por revelações que chegavam a público.
Sobretudo nos anos finais do regime, o discurso anticorrupção foi encampado por opositores na esteira de casos como o Luftalla, de suspeitas na concessão de empréstimos à família da mulher do ex-governador Paulo Maluf, e o Delfim, sobre o abatimento de dívidas de uma financeira. Até o uso da expressão “mar de lama”, concebida na Presidência de Getúlio Vargas, nos anos 1950, foi reciclado.
O próprio Geisel se mostrava reservadamente crítico do ambiente que o circundava. “Só num país como o Brasil na situação atual eu poderia chegar à Presidência”, disse, antes de assumir o cargo, segundo conta o livro “A Ditadura Derrotada”, do jornalista Elio Gaspari. “Como é que se chega ao meu nome? Ora, porque fulano é cretino, sicrano é burro, beltrano é safado! Isso é jeito?”
Dez anos antes da CPI sobre Angra, houve a medida que talvez seja o elo mais significativo do período com os tempos da Lava Jato.
O governo do presidente Arthur da Costa e Silva decidiu restringir a contratação pública de construtoras estrangeiras, que tradicionalmente tocavam grandes projetos pelo país até então, como forma de estimular o capital nacional.
A década seguinte e o avanço econômico do chamado “milagre brasileiro” seriam marcados pelas chamadas obras faraônicas, como a rodovia Transamazônica e a hidrelétrica de Tucuruí.
Sem a concorrência externa, empresas nacionais encontraram espaço para ampliar suas operações. A Odebrecht, antes uma empresa de projetos mais modestos e regionais, ganhou projeção nacional.
Consolidaram suas posições de grandes conglomerados a Andrade Gutierrez e a Camargo Corrêa, todas hoje com confissões de pagamento de propina em obras públicas.
A expansão do papel do Estado na economia na época, que inclui a criação de estatais e de fundos públicos, também foi uma das características daquele período.
“O processo de corrupção de empreiteiros junto ao Estado é anterior [ao regime]. Mas durante a ditadura isso se consolida e se maximiza de uma maneira radical”, diz o professor de história Pedro Henrique Campos, da Universidade Federal Rural do Rio. Ele pesquisou em tese de doutorado a relação entre as empreiteiras e a ditadura e escreveu um livro a respeito, “Estranhas Catedrais”.
Campos lista na obra casos de oficiais militares que foram nomeados para grandes companhias do país, em uma aproximação do empresariado com o regime.
O professor cita como um dos fatores para um “cenário ideal para práticas corruptas na época” a ampliação dos fundos públicos e o aparelhamento empresarial do Estado brasileiro.
A liberação de recursos do BNDES, que virou tema de debates nas campanhas presidenciais deste século, também despontou em um episódio polêmico do regime dos fardados.
Um dos nomes mais influentes do período, o general Golbery do Couto e Silva, foi criticado por pedir financiamento ao banco, à época chamado de BNDE, para a multinacional Dow Chemical, cuja filial brasileira ele chefiou enquanto esteve fora do governo. Na ocasião do lobby, porém, Golbery já atuava como conselheiro de Geisel, de quem seria chefe da Casa Civil.
Golbery também chegou a ser mencionado em um dos principais escândalos financeiros da ditadura, o caso Coroa-Brastel.
Curiosamente, o imbróglio teve anos depois uma de suas sentenças expedidas por uma das estrelas da Lava Jato, o juiz fluminense Marcelo Bretas.
Era 1998, quando o magistrado, iniciante na carreira, condenou a oito anos de prisão o empresário Assis Paim Cunha, pivô de uma manobra financeira que respingou em um dos mais conhecidos ministros do regime militar, Delfim Netto.
Delfim e o ex-ministro da Fazenda Ernane Galvêas foram denunciados sob acusação de desvio de recursos públicos ao autorizar às pressas liberação de empréstimo da Caixa ao empresário dono do grupo varejista e financeiro Coroa-Brastel em 1981, de valor equivalente na época a US$ 25 milhões.
O pano de fundo do repasse, segundo a acusação do Ministério Público à época, era uma operação de socorro a uma corretora influente quebrada, a Laureano. O grupo Coroa-Brastel foi liquidado em 1983, deixando 34 mil pequenos investidores lesados por causa de títulos emitidos sem lastro (suporte financeiro para cobrir um eventual resgate).
Paim Cunha morreu em 2008, aos 80 anos, e afirmou até o fim da vida que foi levado a entrar no negócio porque havia interesse do general Golbery na salvação da corretora Laureano.
Já após o fim do regime, em 1989, a Câmara dos Deputados negou autorização para que o Supremo Tribunal Federal processasse Delfim —na época o Congresso tinha essa prerrogativa em denúncias contra parlamentares. O ex-ministro sempre afirmou que não cometeu irregularidades e que não houve participação de Golbery no empréstimo.
Se episódios assim já causaram repercussão apesar da limitada liberdade política e de expressão da época, há ainda outros relatos controvertidos que só recentemente vieram a público por causa da liberação de arquivos sobre o regime.
Em 2018, um professor da Universidade Federal de São Carlos (SP), João Roberto Martins Filho, divulgou pesquisa na qual mostrou que a ditadura atuou para abafar uma investigação de corrupção na compra de fragatas do Reino Unido nos anos 1970. As conclusões se basearam em papéis confidenciais históricos do governo britânico.
Os documentos mostraram que, em 1978, o Reino Unido estava disposto a investigar denúncia de superfaturamento na compra de equipamentos para a construção de navios vendidos ao Brasil e sugeriu o pagamento de indenização. “É evidente que eles não gostariam que mandássemos um time de investigadores e não iriam colaborar com um, se ele fosse”, dizia relatório da diplomacia britânica.
A despeito de todo esse histórico, alguns fatores podem ter contribuído para que ainda mais casos de corrupção não tenham vindo à tona e para a difusão da imagem de administração “honesta” hoje alardeada por apoiadores do antigo regime.
O fim do autoritarismo e a Constituição de 1988 garantiram uma série de mecanismos de controle e de fiscalização da sociedade sobre variadas instâncias de governo.
O maior exemplo disso é o Ministério Público, hoje, ao lado da Polícia Federal, principal ator em grandes investigações pelo país, que teve sua autonomia garantida na Carta promulgada naquele ano.
Anteriormente, sem poder de apuração, a instituição trabalhava atrelada aos governos. Não havia atuação institucionalizada para áreas como improbidade administrativa e defesa do patrimônio público.
No plano federal, até 1988, a situação soa hoje inusitada: o Ministério Público Federal tinha entre suas atribuições funções hoje desempenhadas pela Advocacia-Geral da União, de defesa pública.
Atualmente corriqueiras, as operações da Polícia Federal só se tornaram parte da rotina em meados dos anos 2000, com a ampliação dos quadros e o aparelhamento da corporação. Em 2001, foi criada também a Controladoria-Geral da União.
A evolução tecnológica garantiu ainda ferramentas de transparência, como as publicações de dados governamentais e facilidades na apuração de delitos financeiros, como o cruzamento de informações em bancos de dados e a ampliação da cooperação internacional em casos de recursos mantidos no exterior.
Os crimes financeiros, aliás, um dos delitos mais visados por operações como a Lava Jato, tiveram um marco com a lei criminalizando a lavagem de dinheiro, em 1998.
O sucesso da investigação iniciada no Paraná deve muito a outra lei, ainda mais recente, de 2013, que regulamentou colaborações premiadas, além de tipificar o crime de organização criminosa.
“Hoje com a transparência e as investigações, se tem mais noção do tamanho do problema [da corrupção]. Mas o problema já existia, sem a menor sombra de dúvida. Havia grandes escândalos na época e eram abafados. A imprensa não podia publicar. Era bem diferente a situação”, diz o procurador de Justiça aposentado Ricardo Prado, de São Paulo, que preside a associação Ministério Público Democrático.
Alguns dos maiores escândalos do período
Lutfalla
BNDES fez empréstimo à têxtil Lutfalla, da família da mulher de Paulo Maluf. Houve suspeitas de fraudes das garantias apresentadas
General Electric
Então chefe da GE no Brasil disse que foi pago suborno para a Rede Ferroviária Federal adquirir locomotivas em condições rejeitadas pela estatal
Fragatas
Documentos da inteligência do Reino Unido tratam de uma investigação sobre superfaturamento na compra pelo Brasil de equipamentos para fragatas nos anos 1970. Os papéis afirmam que o governo à época não demonstrou interesse na apuração
Capemi
Empresa ganhou direito de explorar madeira na área da represa de Tucuruí (PA). O serviço não foi entregue, a subsidiária faliu e houve suspeitas de desvios por oficiais militares
Grupo Delfin
Em 1982, Folha mostrou que o BNH (Banco Nacional de Habitação) aceitou quitar dívida do grupo em troca de terrenos de valor muito abaixo do débito
Coroa-Brastel
Caixa deu empréstimo que teria como finalidade salvar a corretora Laureano, influente no regime. O Coroa-Brastel quebrou e lesou milhares de investidores
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