A Justiça absolveu os 3 policiais acusados pela morte do adolescente. Em sua decisão, a juíza Juliana Krykhtine alegou 'legitima defesa' e revoltou familiares da vítima. "Sentença não observou a robusta prova técnica e testemunhal", alegou a Defensoria Pública do Estado, que vai recorrer da decisão.
Por Raoni Alves, g1 Rio
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Neilton da Costa Pinto, pai do jovem João Pedro, baleado e
morto em uma operação da PF e da Polícia Civil no Complexo do Salgueiro, em São
Gonçalo, em maio de 2020, apontou 'racismo e preconceito' na decisão que
absolveu os 3 policiais da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) pela
morte do adolescente de 14 anos.
Nesta quarta-feira (10), a juíza Juliana Bessa Ferraz
Krykhtine absolveu sumariamente os policiais Mauro José Gonçalves, Maxwell
Gomes Pereira e Fernando de Brito Meister, que eram réus no caso, por homicídio
duplamente qualificado, por motivo torpe e fútil, e respondiam em liberdade.
A magistrada alegou, em sua decisão, que os policiais
"agiram sob um excludente de ilicitude" e citou "legitima
defesa". Na ocasião, o jovem brincava em casa com amigos quando, segundo
familiares, policiais chegaram atirando. O menino foi atingido por um disparo
de fuzil pelas costas e não resistiu.
"A gente vê uma questão de racismo e preconceito por parte do estado e dos agentes públicos. Será que a Justiça daria essa decisão se nossa casa fosse em outro bairro? É proibido ter uma casa boa, com piscina dentro de uma comunidade? Eles acharam que era casa de bandido, de vagabundo", questionou Neilton.
Neilton da Costa Pinto, pai de João Pedro — Foto: Reprodução/TV Globo
Questionado sobre o argumento dado pela juíza, ao citar possível legitima defesa dos policiais ao atirarem diversas vezes dentro de sua casa, Neilton comentou que não entendeu a decisão.
"Ali foi o jeitinho que ela achou para absolver os caras. A única arma que tinha na casa eram os celulares nas mãos das crianças. Eles estavam brincando, jogando. Essa narrativa dela, essa decisão de legitima defesa não colou. Ficou feio pra ela", comentou o pai de João Pedro.
Pai aponta falta de respeito
Na decisão da absolvição, a juíza Juliana Krykhtine afirmou que, “após a análise das 3 peças técnicas, houve troca de tiros dentro da residência” de João Pedro.
"Os réus no momento do fato encontravam-se no local do crime, em razão de perseguição a elementos armados. Após os inúmeros disparos já na área externa da casa, houve uma pausa, momento em que fora lançada, por parte dos traficantes, um artefato explosivo artesanal em direção aos policiais", descreveu.
Para Neilton, a decisão da juíza já era esperada. Segundo ele, o tratamento da magistrada com a família durante as audiências já indicava falta de respeito.
"Foi muito complicado receber essa decisão. Mas eu já esperava. Ao decorrer das audiências, pelo comportamento da juíza, o respeito dela com a minha família foi praticamente zero. Eu não respeito e não concordo com a decisão. Foi um absurdo", comentou Neilton.Reproduzir vídeo
Ainda de acordo com a decisão, a juíza levou em conta as declarações dos policiais para absolver os réus.
"Todos os agentes confirmam que após o lançamento desse artefato explosivo os disparos se reiniciaram, de forma que fora possível visualizar um dos traficantes adentrando a casa", prosseguiu.
A juíza alegou que "a fim de repelir injusta agressão, os policiais atiraram contra o elemento que teoricamente se movimentava em direção ao interior da residência".
"Vale destacar que embora seja cediço que houve a morte de um adolescente inocente, a vítima João Pedro, é necessário entender, com apego à racionalidade, que a dinâmica dos fatos, como narrada e confirmada pelos diversos laudos anexados ao processo, não pode ser inserida em um contexto de homicídio doloso por parte dos policiais. Isso porque, no plano da tipicidade, o aspecto subjetivo já não se completa, haja vista a clara ausência de dolo, uma vez que não houve qualquer intenção de matar o adolescente”, destacou.
Defensoria vai recorrer
A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro,
responsável pela defesa da família de João Pedro, informou que vai recorrer da
decisão que absolveu os policiais.
Em nota, a defensoria disse que "ao adotar a tese da legítima defesa, a sentença não observou a robusta prova técnica e testemunhal produzida no processo". O órgão ainda espera pelo Júri Popular dos policiais envolvidos.
"De acordo com a lei, devem ser julgados pelo Júri os crimes dolosos contra a vida, quando estiver comprovada a materialidade do fato e havendo indícios suficientes de autoria, como é o caso", escreveu.
Para a Defensoria Pública, a juíza não considerou a perícia autônoma e contrariou orientações da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do STF.
"Ao afastar a prova técnica produzida por peritos externos ao próprio órgão de segurança ao qual pertencem os acusados, a sentença contraria a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do Supremo Tribunal Federal, que determinam investigações independentes e perícias autônomas em casos de morte provocada por agentes de Estado".
Na opinião de Neilton, os policiais precisam pagar pelo crime que cometeram.
"Não pode ser normal um agente público entrar dentro de uma casa e matar um jovem assim. Vamos recorrer. Esse jogo tem que virar", argumentou o pai de João Pedro.
O deputado Professor Josemar (Psol), presidente da Comissão de Combate às Discriminações da Alerj, que acompanhou a família de João Pedro ao longo do processo, também disse que entrará com um recurso contra a decisão da Justiça.
"Vamos recorrer dessa decisão. Além disso, estamos fazendo contato com as entidades de direitos humanos e OAB para agirmos juntos. A decisão proferida pela justiça, após quatro amargos anos de espera da família e da sociedade, é completamente absurda", comentou o parlamentar.
Na opinião do deputado, o jovem morto representa centenas de jovens que foram vitimados pelo Estado.
"O fato da Justiça absolver seus algozes alegando legítima defesa demonstra como a vida de jovens negros no nosso país e no RJ continua sendo descartável. Estamos dando apoio e suporte a família, que aguardava que o desfecho fosse a júri popular", completou Josemar.
Relembre o caso
João Pedro, que na época tinha 14 anos, foi baleado e morto
durante uma operação conjunta da Polícia Federal e da Polícia Civil no Complexo
do Salgueiro, em São Gonçalo, na Região Metropolitana.
Segundo as investigações, o tiro de fuzil que atingiu uma pilastra de concreto e um fragmento acabou atingindo as costas de João Pedro, que estava deitado no chão da casa junto com dois amigos, partiu da arma de um policial. E a casa do tio dele, onde ele brincava com outras crianças, ficou com mais de 70 marcas de tiros.
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Reprodução 3D do assassinato de João Pedro ajudou na denúncia contra policiais civis
Em audiência, testemunha diz não lembrar de criminosos armados perto da casa onde João Pedro foi morto
Quase dois anos depois do assassinato do jovem, a Justiça aceitou a denúncia do MPRJ contra os policiais civis Mauro José Gonçalves, Maxwell Gomes Pereira e Fernando de Brito Meister. Os agentes também foram denunciados por fraude processual, mas também foram absolvidos dessa acusação.
Na segunda audiência de instrução e julgamento, em 2022, uma testemunha de acusação que presenciou a morte de João Pedro afirmou não lembrar de criminosos armados perto da casa onde o jovem foi morto por policiais.
A afirmação vai contra a versão dada pelas polícias Civil e
Federal na época. As instituições de segurança informaram que traficantes da
região pularam o muro da casa onde João estava. Segundo eles, os criminosos
dispararam contra os policiais e arremessaram granadas na direção dos agentes.
Na época, a família e testemunhas afirmaram em depoimento que os policiais chegaram atirando e que a cena do crime foi alterada pelos acusados, na intenção de criar vestígios de um confronto com criminosos. O que, ainda de acordo com as investigações, não ocorreu.
Tiros na parede da casa onde morava João Pedro — Foto: Arquivo pessoal
O MP apontou que os denunciados plantaram no local diversos explosivos, também uma pistola da marca Glock, calibre 9 milímetros, e posicionaram uma escada junto ao muro dos fundos do imóvel.
O Ministério Público fez a reconstrução do crime em realidade virtual e concluiu que o tiro que matou João Pedro saiu da arma de um dos policiais.
A juíza, no entanto, afirmou que a reprodução simulada virtual realizada pelo Ministério Público produziu um laudo unilateral, com tecnologia não acessível às partes. A magistrada ainda destacou que o documento criado com base na realidade virtual é diferente da realidade dos fatos.
“Para confecção da referida peça (laudo) escolheu o depoimento da informante Maria Eduarda para dar maior credibilidade. Tal atitude não se justifica, eis que um perito imparcial consideraria todas as falas, para reproduzir ao máximo o ambiente do momento do fato. Não observou ainda os objetos encontrados pela perícia realizada no local no dia dos fatos, como granada e arma de fogo”, diz a decisão.
Por fim, a magistrada diz que o laudo assinado pela pela perita Maria do Carmo Gargaglione não pode ser considerada como prova. "Não há como se atribuir o mesmo valor probatório a esse laudo, na medida em que não foi realizado por órgão estatal desprovido de qualquer parcialidade. Não há previsão legal para que uma das partes produza laudo técnico e a esse se atribua a qualidade de laudo pericial".
Em setembro de 2023, durante nova sessão do julgamento, o policial civil Fabio Vieira Rodrigues, que estava em uma aeronave durante a operação, negou a versão da família de João. Ele afirmou que avistou mais de um criminoso circulando perto da casa que era o alvo da operação, a cerca de 80 metros da casa do João Pedro.
O principal argumento da defesa dos policiais acusados é de
que os agentes só entraram na casa onde estava o jovem porque estavam
perseguindo um criminoso, e que houve sim um confronto.
Meses antes desse depoimento, o Governo do Estado do Rio de Janeiro foi condenado a pagar uma indenização aos pais de João Pedro. O poder estadual deve pagar dois terços de um salário mínimo para o pai e a mãe até a idade que ele completaria 25 anos e depois um terço até a data que o filho completaria 65 anos.
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