quarta-feira, 26 de maio de 2021

Decisão do STJ sobre cultivo de maconha medicinal cria empurra-empurra com a Anvisa

Decisão do STJ sobre cultivo de maconha medicinal cria empurra-empurra com  a Anvisa - Agência Pública

Corte decidiu não votar HC de paciente que queria salvo-conduto para plantar maconha medicinal para tratamento de epilepsia e outras síndromes. Precedente gera onda de decisões contra cultivos medicinais

Relator votou baseado em notícia errada, citada no julgamento 

Uma decisão da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deixou em suspenso o tratamento daqueles que dependem do cultivo doméstico de cannabis para tratar doenças graves como epilepsia, câncer, Parkinson e esclerose múltipla. No final de março, os ministros decidiram por unanimidade negar o pedido de habeas corpus (HC) preventivo para uma paciente do Rio Grande do Sul plantar maconha e assim produzir seu próprio remédio, sem ser presa por isso. 

A justificativa da 5a Turma foi que não lhe competia apreciar o HC e que a paciente deveria procurar autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A Anvisa, já reconheceu, em 2015, o uso medicinal da cannabis e liberou a importação de remédios à base de CBD (um dos princípios ativos da maconha). Em 2019, a produção brasileira de remédios a partir de extratos de CBD e THC importados foi regulada.

No entanto, o cultivo de maconha medicinal no Brasil segue sem regulação pela União, seja através da Anvisa, do Ministério da Saúde ou do Ministério da Agricultura, como determina a Lei de Drogas, de 2006. Por isso, continua sendo crime. 

A Anvisa é taxativa ao afirmar que não cabe a ela decidir sobre o cultivo da planta. Em nota à Pública, o órgão reiterou que, em 2019, arquivou uma proposta de resolução que tratava de plantio e cultivo de cannabis para fins exclusivamente medicinais e científicos, sendo um dos argumentos a sua incompetência para tratar do tema – o oposto do que deseja o STJ. A Anvisa afirmou também que não recebeu nenhum comunicado do tribunal. 

A nova decisão foi publicada no Boletim de Jurisprudência do STJ em 29 de março e já influenciou pelo menos três tribunais estaduais a mudar seu posicionamento, recusando-se a apreciar HCs, segundo apurou a Pública.

Youtube/Reprodução
Sessão de julgamento da 5ª Turma do STJ sobre o cultivo doméstico da cannabis para fins medicinais

Doentes pedem habeas corpus para plantar  

Para preservarem a possibilidade de plantar cannabis para seu tratamento, pacientes têm impetrado habeas corpus preventivo para que a Justiça lhes permita cultivar sem serem tratados como criminosos. Centenas de ações semelhantes foram vitoriosas nas justiças estaduais, permitindo o cultivo medicinal.  

O pedido em questão era de uma paciente de 30 anos com epilepsia refratária e outras síndromes raras, o que a leva a ter dezenas de crises epilépticas diárias, além de sensibilidade extrema a ruídos. O advogado André Feiges, fundador da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas (Rede Reforma), explica que, após diversas tentativas de tratamentos e muitos efeitos colaterais, a paciente teve bons resultados com cannabis. Outros medicamentos, por causa de reação metabólica, deixam de fazer efeito, mesmo os industrializados à base de cannabis. O produto artesanal foi a solução porque a variação de canabinóides (moléculas com propriedades terapêuticas e psicoativas) e terpenos (moléculas que definem o aroma e o sabor) evita a saturação do organismo da paciente. 

Feiges explica que o HC tem o objetivo de pedir o reconhecimento de que não há prática de crime ao se cultivar cannabis para fins medicinais. A manobra é corajosa porque a Justiça avisa as polícias locais e lhes pede parecer sobre o cultivo. Após as decisões favoráveis, esses órgãos são novamente notificados, justamente para reforçar a ideia de que os pacientes não sejam presos. 

Em seu voto, o ministro relator do caso no STJ reconheceu a importância do uso medicinal da maconha, mas votou contra, “lamentando a impossibilidade de tecer maiores considerações a respeito deste tema que é tão instigante e necessário na área da saúde”. O magistrado recomendou ainda “expressamente à Anvisa que analise o caso e decida se é viável autorizar a recorrente a cultivar e ter a posse de plantas de Cannabis Sativa para fins medicinais”.

“Vamos ter a Cracolândia como capital da Alegria” 

Após o término da leitura do voto do ministro relator Reynaldo Soares da Fonseca, a defesa pediu permissão para falar a respeito de um erro sobre uma “questão de fato” e afirmou: “O ministro relator, pelo que eu entendi, mas não sei se entendi, diz que a Anvisa aprovou uma norma para cultivo de cannabis. Porém no ordenamento vigente não existe tal norma. O que foi aprovado foi a manipulação de matéria-prima importada para produção de produto final, mas não do próprio cultivo…”.

O ministro relator responde: “Senhor presidente, estou aqui com uma publicação do dia 23 de março, da… H, Y, P, E, N, E, S, S… prefiro falar assim, pois não sei se é inglês ou se é algum site brasileiro, em que revela que por unanimidade a Anvisa aprovou o plantio de maconha medicinal”. Em seguida, o ministro cita um trecho da reportagem que diz: “A liberação da maconha para fins medicinais e de pesquisa está mais próxima depois de decisão unânime da Anvisa”. E concluiu: “É nesse sentido que eu digo que há manifestação no sentido da possibilidade do plantio de maconha medicinal. Não sou eu que está falando sem uma referência documental”. 

A manchete do site Hypeness dizia: “Por unanimidade, a Anvisa aprova plantio de maconha medicinal”. O problema é que isso nunca ocorreu. A notícia citada no julgamento foi publicada no dia 12 de junho de 2019, quando a Anvisa abriu uma chamada pública para discutir a regulação da maconha medicinal, na qual discutia também o cultivo de maconha para produção de remédio, sob exigências extremas de segurança e controle. 

Não havia, portanto, nenhuma decisão unânime da Anvisa para aprovar o plantio de maconha, como dizia a manchete. 

Em dezembro daquele ano, a proposta de regulação do cultivo acabou sendo rechaçada na portaria final da Anvisa, a RDC 327, promulgada no dia 9 de dezembro de 2019. Na ocasião, Antônio Barra Torres, então diretor da Anvisa, atualmente diretor-presidente, apresentou um voto de 54 páginas afirmando que a competência da regulação do cultivo de cannabis é do Ministério da Saúde.

No entanto, o título publicado pelo site Hypeness ficou no ar por quase dois anos e só foi mudado depois da decisão do STJ. Procurada pela Pública, a revista afirmou: “Cometemos um erro, humanos que somos. A manchete da matéria de fato trazia um equívoco, que foi corrigido com uma errata assim que ficamos sabendo do caso”. O site diz que “as informações internas da matéria que nele constam são todas verdadeiras”. 

No julgamento, após o relator, tomou a palavra o ministro Felix Fischer, decano do STJ: “Na sua manutenção a excelência deixou claro ‘sob fiscalização’, senão daqui a pouco vai todo mundo ficar plantando dizendo que foi autorizado. Então vossa excelência destacou bem ‘sob fiscalização’. Senão vamos ter a Cracolândia como capital da Alegria. Não faz muito sentido”.

Os demais ministros seguiram o relator, negando o pedido formulado no HC de forma unânime.

Procurado pela reportagem, o STJ afirmou em nota que a decisão “manteve a negativa de salvo-conduto quanto ao aspecto do plantio, sem autorização e fiscalização administrativa”, mas que “ recomendou-se, todavia, o pronunciamento administrativo concreto da Anvisa sobre o pleito da parte relativo ao plantio”. 

No entanto, a Anvisa já assumiu que não lhe compete regular o cultivo de cannabis no Brasil. A reportagem teve acesso a pedido de Lei de Acesso à Informação (LAI) em que o advogado Emilio Figueiredo, também da Reforma, pergunta: “Qual é o caminho administrativo para obter a autorização de cultivo doméstico de cannabis para fins medicinais do próprio paciente?”. A resposta, dada no dia 5 de março deste ano, é clara: “Conforme decisão proferida pela Diretoria Colegiada da ANVISA em 03/12/2019, na Agência restou consolidado o entendimento de que a ANVISA não possui competência para regulamentar o plantio e o cultivo da planta Cannabis”.

A reportagem procurou a Anvisa para pronunciar-se sobre o caso, mas o órgão informou que ainda não foi intimado da decisão pelo STJ.

“Essa família ficou psiquicamente arrasada, destruída, a esperança de que a questão fosse decidida adequadamente ou de que, no mínimo, fosse julgada com seriedade, foi arrasada na frente dela. E acabou! Essa pessoa desistiu. Ela perdeu todas as esperanças no Poder Judiciário”, diz Feiges.

Will Cox/Released
Pacientes que dependem do uso doméstico da cannabis para o tratamento de doenças graves estão entrando com habeas corpus preventivo na Justiça para a utilização do medicamento

Com nova jurisprudência, outros pedidos são negados

A decisão da 5ª Turma foi publicada no boletim do STJ e já influenciou decisões de primeira instância no Rio de Janeiro, São Paulo e Ceará. A juíza Gisele Guida de Faria, da 41ª Vara Criminal do Rio, que concedeu em 2016 o primeiro HC para cultivo no Brasil, foi também a primeira a recusar-se a apreciar um HC, baseada nessa decisão.

O advogado do caso, Emilio Figueiredo, também um dos fundadores da Rede Reforma, diz que se trata de um paciente adulto com doença neurológica grave que passou a plantar porque não conseguia custear o tratamento com produto importado. Desde então, teve melhora comprovada pelo médico. Quando o processo foi julgado, a decisão do STJ já havia sido publicada. “Então, na semana seguinte, a juíza decide, a partir desse informativo de jurisprudência do STJ, que não cabia HC e seria o caso da Anvisa autorizar ou uma ação civil”, diz o advogado. 

O advogado Erik Torquato, da Reforma em São Paulo, também teve um HC afetado pela decisão. “A proibição é uma armadilha antidemocrática que segrega brasileiros. Com essa nova decisão do STJ, os juízes que já eram resistentes ao uso medicinal estão mais à vontade para negarem os pedidos”, explica o advogado.

Torquato atendeu um paciente de dores crônicas em São Paulo e teve o HC negado em primeira instância, mas recorreu em segunda instância e conseguiu garantir o direito do paciente. 

No Ceará, o advogado Ítalo Coelho impetrou um HC em novembro do ano passado para um paciente de 59 anos que sofre de artrose lombar, o que causa muitas dores há cerca de 12 anos. Ele tentou vários tratamentos e encontrou melhoras com o uso do óleo artesanal feito a partir de seu cultivo. Coelho explica que o processo ficou parado com o juiz por cinco meses. “Ele só decidiu depois dessa decisão temerária do STJ, falando que é uma competência administrativa da Anvisa”, diz o advogado. 

Coelho pretende recorrer da decisão. “O perigo que os pacientes tomam não é de levar uma multa, não é um ilícito administrativo. Eles correm risco de serem presos”, diz. 

Liberação no Brasil privilegia grandes farmacêuticas

Embora a venda de medicamentos à base de maconha seja regulada desde 2019 pela Anvisa, o cultivo continua proibido. Assim, os poucos remédios produzidos no Brasil são feitos por grandes farmacêuticas como a brasileira Prati-Donaduzzi, a partir de matéria-prima importada, custando em média R$ 2.500 um frasco de 200 ml. Além dela, há medicamentos produzidos artesanalmente por algumas associações que conquistaram na Justiça o direito de cultivar maconha para seus associados, a um custo médio de R$ 150 por 300 ml.

Segundo a Federação das Associações de Cannabis Terapêutica (Fact), há hoje no país mais de 20 mil pacientes que recebem extratos à base de cannabis das cerca de 40 associações já constituídas – as maiores são a Abrace (PB), Apepi (RJ) e Cultive (SP) –, além do número incalculável de pacientes que conseguem a cannabis medicinal mediante importação ou judicialização.

Sheila Geriz, coordenadora da Fact, explica que a proibição do cultivo atenta contra os produtores brasileiros e “representa um desrespeito ao direito à saúde e à soberania nacional”. 

“Condicionando a produção nacional à importação de insumos, a Anvisa deixa o Brasil refém do já milionário mercado internacional de cannabis, inviabiliza o desenvolvimento de pesquisas no país, impede a produção de derivados mais acessíveis aos pacientes usuários, impede o desenvolvimento de produtos a partir de variedades nativas do Brasil e desconsidera a enorme capacidade de produção e atendimento aos pacientes das associações de pacientes em funcionamento no país”, diz ela.

Atualmente a Anvisa analisa seis pedidos de autorização de produção e comercialização de remédios à base de maconha. Até a semana passada, a multinacional brasileira Prati-Donaduzzi, farmacêutica líder em genéricos, era a única detentora dessa autorização da Anvisa, e seu produto, o “canabidiol 200 mg/ml”, custa em torno de R$ 2.500 o frasco. Em junho do ano passado, a Prati-Donaduzzi, conquistou no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi), por 20 anos, a patente de canabidiol diluído em óleo, algo inédito no mundo, uma vez que um óleo extraído de fitoterápico não pode ser objeto de patente. Por isso, em abril o Inpi recomendou a nulidade da patente.

No dia 15 de abril, a Anvisa aprovou mais dois produtos à base de CBD, da empresa estadunidense NuNature

Os demais produtos que aguardam a liberação pertencem às farmacêuticas VerdeMed, Medstar, Belcher, Zion e Promediol. 

Em fevereiro deste ano, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) abriu consulta pública para incluir na lista do SUS o remédio “canabidiol 200 mg/ml para o tratamento de crianças e adolescentes com epilepsia refratária a medicamentos antiepilépticos”. A estimativa é que, em cinco anos, o Ministério da Saúde invista até R$ 416,4 milhões no remédio. O resultado dessa consulta deve ser publicado ainda neste mês.

Ao mesmo tempo, avança na Câmara dos Deputados um projeto de lei (PL) que exclui também o cultivo doméstico. No dia 20 de abril, o relator, deputado federal Luciano Ducci (PSB-PR), apresentou parecer favorável ao PL 399/2015, que visa regulamentar o cultivo para fins medicinais, restrito a farmacêuticas. As associações já existentes teriam um prazo para se adaptar às mesmas exigências feitas às farmacêuticas, o que dificilmente irá se concretizar em razão de aquelas seguirem modelos econômicos e finalidades sociais distintas. A proposição deve ser votada na Comissão Especial sobre Medicamentos Formulados com Cannabis da Câmara dos Deputados em 17 de maio.

“Há um movimento contrário a uma regulação verdadeiramente inclusiva no país”, afirma Sheila Geriz. Para ela, se deveria privilegiar menos a indústria e contemplar o cultivo doméstico e o trabalho das associações. “Ainda há um longo caminho a ser percorrido para que se tenha garantido de forma real e efetiva o acesso à terapêutica canábica no Brasil.”

Decisão do STJ sobre cultivo de maconha medicinal cria empurra-empurra com a Anvisa - Agência Pública

Nenhum comentário:

Postar um comentário