Decano do Supremo defende punição rigorosa de civis e militares responsáveis pelos ataques de 8 de janeiro
Lisboa – O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), ainda se emociona quando fala dos ataques terroristas em 8 de janeiro último. A Corte, que ele frequenta desde os tempos de estudante de direito, foi alvo preferencial dos vândalos, que apostavam na possibilidade de um golpe com apoio das Forças Armadas. Na visão do magistrado, todos os responsáveis pela destruição dos prédios dos Três Poderes devem ser punidos com rigor. E isso vale pela os militares, independentemente das patentes e das forças que integram. “Acho que há um interesse das próprias instituições de que haja a devida responsabilização e punição para que se diga que isso não foi ação da polícia, não foi ação do Exército ou de qualquer força. Foi ação de alguns com conduta desviante”, diz.
De passagem pela capital portuguesa, onde tem falado sobre a resiliência da democracia brasileira, o ministro reconheceu que a tensão entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e as Forças Armadas continua, mesmo com a troca do comandante do Exército. “Mas é preciso que a confiança se restabeleça. As Forças Armadas têm um papel importante a cumprir, contudo, a democracia não precisa da tutela dos militares”, afirma. Ele recomenda aos fardados que não aceitam o resultado das urnas que deixem os postos e se candidatem a cargos eletivos. Ressalta, ainda, que a politização dos quartéis e a proteção aos acampamentos que se tornaram abrigos para terroristas são consequência dos quatro anos do governo Bolsonaro, quando o país se desviou do processo democrático. E propõe a reestruturação da Justiça Militar.
No entender de Mendes, o Supremo foi fundamental para evitar a ruptura institucional quando, em 2019, abriu um inquérito para investigar a disseminação de fake news. “A partir dali, criamos um instrumento que, talvez, evitou uma derrapagem muito mais radical”, frisa. As investigações, bastante avançadas, podem resultar na inelegibilidade de Bolsonaro e mesmo na prisão dele. “Acho que o fundamental é que o devido processo legal se faça sem nenhum atropelo, que as autoridades responsáveis pelas investigações cumpram bem o seu papel e distingam as responsabilidades. Isso é fundamental, e é isso que se espera das instituições incumbidas de investigações e julgamentos”, assinala. O ministro também defende que o Congresso aproveite a nova legislatura para pôr fim ao corporativismo que evita punições a parlamentares que cometem crimes.
Ele reconhece que o presidente Lula tem muitos desafios pela frente, a começar pela pacificação do país, e diz não acreditar em um eventual processo de impeachment contra o petista. “Acho que o presidente talvez ainda não tenha conseguido montar a sua base parlamentar em termos definitivos, mas estruturou 37 ministérios com parcerias das mais variadas. Para usar uma expressão tão portuguesa, podemos dizer que ele montou a sua geringonça”, enfatiza. “Considerando esses limites, a base parlamentar inicial, que ele já ampliou, conseguiu algo que é que é extremamente meritório, a aprovação da PEC da Transição ainda com a composição anterior do Congresso. Acho que há vontade política no sentido de uma integração, e ajustes serão feitos ao longo do tempo, um processo de experimentalismo institucional”, acrescenta.
Chocado com a terrível situação enfrentada pelos índios ianomamis – mais de 500 crianças da etnia morreram de fome nos últimos quatro anos –, o ministro assegura que o Supremo não será tolerante com os responsáveis pela tragédia. E os culpados serão punidos. “A partir das investigações, será fundamental que haja responsabilização, até para que isso não se repita.”
A seguir, os principais trechos da entrevista de Gilmar Mendes .
Diante do que se viu em 8 de janeiro, em Brasília, o Brasil ainda está na iminência de um golpe?
O que se viu em 8 de janeiro não se tratou, propriamente, de um golpe, mas de uma atitude de tumulto, de um grupo inconformado com o resultado eleitoral e com falhas graves no sistema de segurança. Como vimos, as imagens mostraram uma condescendência, quase que uma leniência, quase que uma participação ou cumplicidade de setores da polícia. Aquelas imagens que mostraram o batalhão de choque que não chocava ninguém, que não atuava. Em suma, esse é um elemento de preocupação. No Palácio do Planalto, também se verificou que não houve sequer arrombamento e que entraram com imensa facilidade. Esse é um dado evidente do envolvimento de forças de segurança com essa temática. Como também há erros básicos, e talvez não só erros, mas até uma certa tolerância excessiva no que diz respeito aos próprios acampamentos. Obviamente, não pode haver acampamento em frente ao quartel, como não pode haver acampamento em frente ao hospital por razões diferentes. É impróprio. Imaginemos que o MST decidisse fazer um acampamento em frente o quartel-general em Brasília, ou um grupo de índios reclamando. Não faz sentido, é de todo impróprio. Há cases na jurisprudência mundial dizendo exatamente que não se pode fazer manifestação em frente aos quartéis. Tudo é uma comédia de erros.
Mas o senhor acredita que o país corre algum risco de ruptura institucional?
Não, e há demonstrações claras nesse sentido, um repúdio geral a esse tipo de manifestação. Mesmo apoiadores do candidato perdedor não aderem a esse tipo de prática. Mas é claro que foi um tumulto significativo aquilo que vimos. Não vamos também minimizar. Tanto é que, em outro momento, chamei o 8 de janeiro de dia da infâmia. Invadir os prédios símbolos dos Três Poderes em Brasília não é algo é comum.
Como se sentiu ao chegar ao prédio todo destruído do Supremo? O senhor chorou.
O Supremo já era minha casa quando estudante e como profissional, depois, como ministro. Estou lá há 20 anos, e ver toda aquela destruição, todos os andares do prédio principal destruídos, vandalizados, foi difícil. E, nota-se, aqui, um sentimento impressionista, pessoal: exatamente aquilo que as redes carregam contra o Supremo acabou sendo efetivado, porque, de alguma forma, parece que a descarga de raiva se deu com maior força sobre o Tribunal.
As instituições estão preparadas para que esses ataques não se repitam?
Acho que temos de rediscutir todo esse sistema de segurança. Vi, com tranquilidade e simpatia, o anúncio feito pelo ministro (da Justiça), Flávio Dino, no sentido de uma revisão do sistema de segurança, inclusive com a criação de uma guarda nacional, de rever o sistema de polícia, a própria proteção daquele ambiente geral. Se olharmos ao longo desses anos, ficamos muito dependentes das GLOs (Garantia da Lei e da Ordem). Foram mais de 150 desde 1992. E uma boa parte disso se deu por conta de quê? De greve de polícia ou de violência urbana, que, normalmente, era causada pela falência do sistema policial. Então, temos de olhar isso com muito cuidado e, talvez, ter forças suplementares que dispensem, tanto quanto possível, as GLOs. Neste momento, temia-se muito que uma GLO pudesse ser um elemento utilizado para maiores distúrbios.
Inclusive, o presidente Lula ressaltou isso.
Acho que temos de fazer uma revisão disso. E, claro, despolitizar o sistema. Quem quer ser candidato, por exemplo, enquanto membro de uma força policial, tem de sair antes, desincompatibilizar-se, tirar a farda e ir para vida, como acontece hoje com os magistrados. E, certamente, deve-se ter um prazo de inelegibilidade mais alongado. Também é preciso uma ampla reestruturação da Justiça Militar. Creio que é uma oportunidade para se discutir todas essas questões. Há, ainda, uma discussão que se trava há algum tempo no Congresso Nacional em relação à própria presença de militares em cargos civis. Isso precisa ser debatido. Quer exercer uma função comissionada, que vá para a reserva ou deixe a atividade. Talvez, esse seja um aprendizado para rever o sistema de segurança, porque, se formos olhar, na causa disso tudo está a politização das forças de segurança em sentido geral.
Na sua avaliação, como deve ser essa guarda nacional? Há algum modelo em vista?
Certamente, seria uma força federal. Já houve discussão se deveria ser um segmento especializado da própria Polícia Federal ou se o caminho seria a criação de uma guarda própria. Certamente, isso terá de ser discutido. Não sei se será uma coordenação dos Três Poderes para evitar eventuais excessos. Com certeza, haverá algumas discussões nessa estruturação, mas, obviamente, é um momento oportuno para que discutamos essas questões, que estavam carentes de serem revisitadas e que acabaram por dar ensejo a abusos. Acho que, há algum tempo, vinha se cultivando essa ideia de que era preciso reunir pessoas para causar tumultos, para se ter uma GLO e, daí, sabe Deus o que seria.
Quando olhamos para a história do Brasil, há uma série de golpes ao longo de anos, e sempre com os militares na linha de frente. O senhor vê a possibilidade de os militares liderarem um novo movimento golpista?
Não vejo isso não. A própria reação do novo comandante do Exército repudiando claramente esse propósito é um importante indicativo. E não há clima nos segmentos organizados da sociedade civil para esse tipo de consideração. A democracia se consolidou, e vemos, inclusive, posição, por exemplo, de governadores que foram eleitos com apoio do ex-presidente Bolsonaro claramente repudiando esse tipo de manifestação, casos dos governadores de São Paulo e de Santa Catarina. Não vejo que haja esse propósito, esse desiderato, essa viabilidade. Mas é claro que nós devemos consolidar a democracia. E a democracia não precisa da tutela de forças militares, que devem cumprir sua função constitucional. E que o façam bem, pois vinham fazendo bem, tanto é que havia esse reconhecimento. O que me parece é que, de uns tempos para cá, com o debilitamento das forças políticas, não mais partidárias, houve os escândalos de corrupção, o impeachment da presidente Dilma e toda essa evolução. Nós passamos a ter uma discussão, e, talvez, algo que fosse velado passou a ser explícito sobre uma leitura do artigo 142, que, para nós, é extravagante, e coloca as Forças Armadas como poder moderador. Essa tese encontrou, inclusive, um lastro na doutrina do professor Ives Gandra. Acho que é de todo equivocado, lamentável, por todos os motivos, mas que encontrou respaldo e, claro, que foi muito bem recebida em alguns setores das Forças Armadas. Parece-me, também, que houve uma leitura, já dando seguimento a esse processo em determinados setores, de que a vitória de Bolsonaro se dá exatamente por conta da derrocada do sistema político normal, uma vitória dos militares. Os militares estavam voltando ao poder, agora, pelas urnas. Acho que houve algum tipo de teórico que deve ter elaborado esse tipo de doutrina. Infelizmente, é isso.
Como deve ser a punição de militares golpistas? As imagens de 8 de janeiro mostram vários deles atacando o coração da República.
Creio que tudo deve estar sendo verificado. Tem de punir os responsáveis e, claro, fazer as devidas distinções entre aqueles que tinham o dever de impedir que tudo aquilo acontecesse. A própria guarda do Palácio do Planalto, o batalhão presidencial, a polícia. Isso precisa ser devidamente verificado. As imagens da televisão têm cenas de aparente cumplicidade, que permitiu que as pessoas, por exemplo, invadissem o Supremo Tribunal Federal. Acho que tem de haver as devidas distinções, como, também, no que diz respeito à própria responsabilização dos autores materiais dos atos, aqueles que participaram como uma manada e outros que, de fato, causaram danos. Tudo precisa ser devidamente distinguido. O Senado identificou, agora, 26 pessoas, que não foram investigadas nem presas. E a polícia do Senado, que teve um papel importante, mostra que é preciso ter esse segmento especializado. Acho que há um interesse das próprias instituições de que haja a devida responsabilização e punição para que se diga que isso não foi ação da polícia, não foi ação do Exército ou de qualquer força. Foi ação de alguns com conduta desviante. É fundamental que haja essa separação.
O governo trocou o comandante do Exército e o ministro da Defesa, José Múcio, vem dizendo que a página foi virada na crise entre o governo e as Forças Armadas. O senhor acredita nisso?
Eu tenho a impressão de que ainda haverá algum período de desconfiança em razão desses desdobramentos. E, de fato, todos foram surpreendidos de alguma forma, porque, como a posse presidencial tinha ocorrido normalmente, reinou uma espécie de calmaria e, talvez, tenha havido um certo relaxamento, típico desse tipo de situação. Por isso, a desconfiança. Além disso, há fatos que antecederam, como os acampamentos nas portas dos quartéis, em vários pontos do Brasil. Tudo isso, certamente, contribui para a desconfiança. Mas as Forças Armadas são instituições extremamente importantes, cumprem um papel relevantíssimo. Na Justiça Eleitoral, temos uma relação muito clara com as Forças Armadas, empregadas em vários locais do Brasil e também em trabalho de logística, como a colocação de urnas em locais longínquos. Se olharmos a lista de medidas especiais, de GLOs, vamos encontrar essa prestação de serviços à Justiça Eleitoral. Então, é preciso que haja um retorno dessa relação de confiança e que se encerre esse período de tumultos.
O governo de Bolsonaro tem muita culpa nesse processo?
Eu interpreto os quatro anos do governo Bolsonaro como um certo desvio do nosso processo democrático. De alguma forma, acho que, a duras penas, nós mantivemos a democracia. Já são quase 35 anos de construção, desde 1988, de um quadro de normalidade institucional com todas as dificuldades econômicas e até dificuldades políticas. Mas acredito que o próprio sistema político tem sua responsabilidade e o sistema judicial, também. Eu já disse, em algum momento, que a Lava-Jato é pai e mãe do Bolsonaro, pois levou à derrocada do establishment político e provocou esse cataclismo. E todos pagamos por isso.
As instituições reagiriam à altura?
Acho que sim. E reagiram bem. Acredito que (essa reação vem) desde 2019, quando o ministro Dias Toffoli determinou a abertura do inquérito das fake news e designou o ministro Alexandre de Moraes para ser o responsável. A partir dali, criamos um instrumento que, talvez, evitou uma derrapagem muito mais radical. Então, acho que esse é um exemplo. E, depois, vimos como agiu a Justiça Eleitoral, inclusive no que diz respeito às fake news. Com todo o enfrentamento que houve, muitos apontam no ministro Alexandre um certo autoritarismo, ou querem dizer que houve autoritarismo por parte da Justiça Eleitoral. Mas a Justiça Eleitoral foi extremamente eficiente para evitar as maquinações de fake news, e foi efetiva nesse sentido, dando até um exemplo ao mundo. Ao contrário de criticarmos, devemos reconhecer que as instituições funcionaram de forma cabal, como também funcionaram de forma cabal na resposta ao episódio de 8 de janeiro.
Como o senhor viu a intervenção no sistema de segurança de Brasília?
São circunstâncias que foram determinadas por conta do momento que se vivia. Sem entrar em juízo sobre a responsabilidade pessoal ou penal do governador Ibaneis Rocha, custa-me acreditar que, conhecendo como eu o conheço, ele estivesse envolvido numa conspirata para destruir o Supremo. Não consigo conceber. Mas é claro que ele tem responsabilidade política, inclusive a de ter escolhido o secretário de Segurança que escolheu (Anderson Torres), que, agora, está preso. Por isso, certamente, se deu o seu afastamento.
Qual será o papel do Supremo daqui por diante? A ministra Rosa Weber, presidente da Corte, retirou alguns projetos polêmicos da pauta para tentar dar uma acalmada nos ânimos.
Essas questões continuam chegando, até porque, como a gente tem dito ao longo do tempo, o Tribunal não tem uma banca lá fora pedindo causas. Elas chegam a partir de movimentos da sociedade civil e do movimento político. Normalmente, são parlamentares que fazem esse tipo de provocação. Tenho dito que, não fora a ação do Supremo Tribunal Federal, o Brasil, talvez, tivesse se transformado numa grande Manaus durante a pandemia, com falta de oxigênio e coisas do tipo. Vamos lembrar que estávamos sob o signo da gestão do general Pazuello à frente do Ministério da Saúde. Foi o Supremo que determinou que estados e municípios estabelecessem ou pudessem estabelecer medidas preventivas, de isolamento social e coisas do tipo que o governo federal estava sendo omisso. Temos de lembrar que o próprio projeto de imunização foi determinado pelo Supremo, ao definir a questão de compra de vacina. Então, o Tribunal, na verdade, atuou positivamente para evitar uma debacle ainda maior.
O Tribunal Superior Eleitoral já tem instrumentos para tornar o ex-presidente Bolsonaro inelegível?
Eu não conheço o processo todo. Como sabe, estou fora do TSE desde 2016.
Mas por tudo o que se vê?
É preciso examinar. Há notícias de que esse deve ser um dos processos na pauta e, certamente, há elementos para a discussão sobre isso. Mas eu não sei qual será o encaminhamento. Temos de aguardar que a Justiça Eleitoral se mova nesse sentido. Há várias ações de investigação e o corregedor do TSE, ministro Benedito Gonçalves, está se debruçando sobre essa temática como um todo.
Há a possibilidade de prisão do ex-presidente em algum momento?
Tudo depende das investigações. Eu não sei como isso vai se dar, nem quando e que processos vão ficar no Supremo Tribunal Federal e que processos vão, eventualmente, baixar para a primeira instância, na medida em que ele não tem mais a prerrogativa de foro. Temos de aguardar todos os desdobramentos. Acho que o fundamental é que o devido processo legal se faça sem nenhum atropelo, que as autoridades responsáveis pelas investigações cumpram bem o seu papel e distingam as responsabilidades. Isso é fundamental, e é isso que se espera das instituições incumbidas de investigações e julgamentos.
Nos últimos anos, o Supremo foi acusado de ativismo político, mas se sabe que o Tribunal agiu muito no vácuo do Congresso, que não fez a sua parte. O novo Legislativo toma posse nesta semana. O que dá para esperar do novo Parlamento?
Nós temos muitas discussões, como eu disse, em relação, por exemplo, à temática da crise sanitária. Portugal tem uma jurisprudência da crise, que foi a crise financeira, e nós temos a nossa jurisprudência, que foi a crise de sanitária. Se nós olharmos, o Supremo atuou por provocação, e evitou um caos ainda maior. Nós perdemos 700 mil vidas, um número muito alto, inclusive, para os índices mundiais. Não fora a ação do Tribunal, certamente teríamos ultrapassado a marca de 1 milhão de mortos. Quem viu aquela tragédia de Manaus, em que estava faltando oxigênio, pode avaliar bem o que seria os caos se não tivesse havido essa intervenção judicial. É preciso reconhecer a importância desse trabalho. Agora, é ativismo, não é ativismo? Não, o Tribunal foi provocado dentro das suas funções para suprir omissões que estavam verificados, que havia naquele momento. Esse é um dado importante. Agora, temos essa tragédia que se abateu em relação ao grupo indígena Ianomami. Vamos ver várias decisões do Supremo. Eu me lembro de algumas do ministro Luís Roberto Barroso determinando que a União tomasse providências de proteção aos índios. Veja, aqui há um excesso? Se o sistema estivesse funcionando razoavelmente, não precisaria de decisão do Tribunal. No fundo, o Supremo tem atuado para cumprir o seu próprio papel. Talvez, aqui, nós deveríamos ter sido até mais enfáticos, mas houve determinação por parte do Tribunal a partir do momento que se apontavam falhas na proteção aos indígenas da pandemia, falta de material para vacina ou de tratamento. Aqui ou acolá, sempre pode ter algum tipo de querela.
Mas em relação ao Legislativo, efetivamente…
Em relação ao Congresso, acho que tem havido falhas na própria responsabilização dos parlamentares pelos exageros que alguns dos agentes políticos cometem. As comissões de ética de Câmara e do Senado precisam funcionar. Até porque o seu não funcionamento acaba por onerar o Tribunal. Veja episódios como o de Daniel Silveira. Seria muito razoável que o próprio Congresso resolvesse essas questões. Mas, como há muita acomodação política, o processo do meu não vai, porque também não vai o do seu, esse tipo de coisa acaba por gerar um protecionismo que obriga à intervenção do Supremo e, certamente, ações penais. Talvez, muitos dos temas pudessem ser resolvidos na seara do próprio Congresso. Esse é um ponto que, talvez, valesse a pena o novo Legislativo refletir, a composição das comissões de ética, dos presidentes dessas comissões, porque isso é uma das razões da judicialização, inclusive em matéria penal. Vimos, recentemente, um parlamentar eleito, ainda não empossado, dizendo que não houve nenhuma lesão ao patrimônio público na Câmara dos Deputados no 8 de janeiro. É um negacionismo diante de evidências. Esse tipo de prática não condiz com o decoro parlamentar, com a boa ética parlamentar.
O senhor falou da situação dos ianomamis, que chocou o mundo. Fala-se em genocídio. Como vê?
É chocante. Aí, de novo, me parece que é um pouco esse colapso das esferas de administração, porque temos sistemas de proteção aos índios, ao meio ambiente, sistemas legais. Mas a desativação de vários setores, ICMBio, Ibama, Funai, levou a isso. Li um artigo do professor Lenio Streck que fala em genocídio. Portanto, um crime deliberado no sentido de eliminar os indígenas. Se a gente olhar para a autorização de garimpos em áreas indígenas ou em áreas contíguas às áreas indígenas e o não acompanhamento dessa situação, tudo parece que leva a esse tipo de situação, de avaliação.
Há alguma coisa que o Supremo ainda possa fazer em relação aos ianomamis?
O tribunal, dentro daquelas limitações, tomou muitas decisões no sentido da proteção, mas que acabaram não sendo efetivas, tendo em vista, talvez, um propósito deliberado, em alguns casos, de não atender ou de retardar esses comandos. Se a gente olhar, determinados setores que estavam incumbidos de zelar pela saúde indígena não tinham a devida formação e competência para fazê-lo. Isso sugere, no mínimo, uma falta grave.
O que chegar ao Supremo será avaliado e os responsáveis pelo massacre dos ianomanis, punidos?
Certamente. A partir das investigações será fundamental que haja responsabilização, até para que isso não se repita. Há uma pergunta que certamente gravita em nossas cabeças: como chegamos a esse ponto e o que precisamos fazer para que isso não mais se repita? Nós já estamos na segunda fase. Temos de recriar uma nova institucionalidade para evitar que isso se repita.
O presidente Lula tem dito que não pode errar, que esse é o mandato da vida dele. Como o senhor vê o atual mandato do petista?
Tenho a impressão de que ele tem imensos desafios pela frente. Primeiro, creio que é fundamental fazer um mandato de integração. Certamente, são significativos, em termos numéricos, os apoiadores do ex-presidente Bolsonaro, mas muitos não concordam com várias das práticas dele que vêm sendo reveladas. Muitas dessas pessoas podem vir a apoiar o atual governo, como vimos na questão da depredação dos prédios em Brasília. Boa parte das pessoas disseram que não concordavam com aquilo. Então, me parece fundamental que se busque, apesar de a palavra estar desgastada, um ambiente de consenso básico, para não repetir a fórmula da chamada união nacional, entre pessoas que partilhem dos mesmos valores democráticos. Esse é um grande desafio que se coloca. É claro que há o desafio do desenvolvimento econômico e do desenvolvimento social. As desigualdades que nós enfrentamos são alimentadoras, inclusive, desses chamados movimentos extremistas.
O senhor tem falado muito em uma Lei de Responsabilidade Social…
Temos conversado, inclusive nos ambientes aqui de Portugal, sobre a ideia de uma Lei de Responsabilidade Social. Vimos que a pandemia afetou muitas pessoas, e de maneira muito grave as pessoas mais fracas na cadeia econômica. Quem anda pelas ruas de São Paulo vê o aumento de cidadãos sem teto. Demoramos muito para atender as demandas, inclusive quanto ao auxílio emergencial. Apareceram, por exemplo, aquelas figuras que foram chamados de “os invisíveis”. De um lado, nos nossos cadastros, aparecem pessoas que estavam empregadas. Eu ouvi falar que teve gente até em Lisboa recebendo auxílio emergencial. Por outro lado, havia aquelas pessoas que preenchiam todos os requisitos para receber auxílio e que não estavam cadastrados, portanto, não recebiam. Nós precisamos regularizar tudo isso, pois houve uma deterioração do Estado brasileiro. Somos uma burocracia bastante eficiente em muitos setores, mas precisamos voltar a atenção para isso, é fundamental e, claro, encontrarmos o caminho do crescimento econômico, com a adequada distribuição de renda. Mas eu colocaria como questão básica a redução da polarização, da conflituosidade que imperou nesses últimos quatro anos e que, certamente, responde à primeira pergunta sobre como nós chegamos a esse estágio.
Voltando ao presidente Lula, há risco de o país assistir a um novo impeachment?
Não acredito, pelo contrário. Acho que o presidente talvez ainda não tenha conseguido montar a sua base parlamentar em termos definitivos, mas estruturou 37 ministérios com parcerias das mais variadas. Para usar uma expressão tão portuguesa, podemos dizer que ele montou a sua geringonça. Considerando esses limites, a base parlamentar inicial, que ele já ampliou, conseguiu algo que é que é extremamente meritório, a aprovação da PEC da Transição ainda com a composição anterior do Congresso. Acho que há vontade política no sentido de uma integração, e ajustes serão feitos ao longo do tempo, um processo de experimentalismo institucional. Tenho a expectativa de que vamos viver um ambiente de paz política. Todos os setores envolvidos e responsáveis têm a noção de que é preciso criar essa ambiência para que nós possamos nos dedicar às questões que são fundamentais, os desafios que são colocados e que são inevitáveis, inelutáveis.
Dá para acreditar no Brasil?
Acho que sim. O Brasil tem essa capacidade, e eu tenho falado com muitos interlocutores, de se reinventar. Esses dias vi um documentário sobre “O país das 12 moedas”, falando da inflação e da história do Brasil em relação à questão monetária. Fixado neste período mais recente, que envolve parte anterior e parte depois da Constituição de 1988, vemos o governo Sarney, com Dilson Funaro, tabelamento de preços, busca do gado no pasto. Tem, ainda o episódio da substituição de Bresser Pereira (no Ministério da Fazenda) pelo Maílson da Nóbrega. O presidente o chamou e disse: ‘Talvez vamos encerrar o governo com você como ministro da Fazenda, mas eu preciso que vá a este local e fale com esta pessoa’. Era um endereço de Brasília. O local, a Rede Globo, e a pessoa, Roberto Marinho. Maílson teria passado por uma verdadeira sabatina lá e, quando voltou para o Ministério da Fazenda, já tinha sido anunciado pela Globo que ele era o novo ministro. Só para mostrar em que estágio nós estávamos. Depois, vem o governo Collor, com a retenção dos ativos financeiros e Zélia Cardoso que não sabia explicar aquele pacote. Alguém até fez uma pilhéria dizendo que quem sabia explicar era o Ibrahim Eris, então presidente do Banco Central, que não sabia falar português. Era um quadro muito peculiar. Veio, depois, Itamar Franco, que designa Fernando Henrique inicialmente ministro de Relações Exteriores e, a seguir, ministro da Fazenda. E reencontramos nosso caminho, estabilizamos a economia com o Plano Real, que foi o pressuposto de um plano civilizatório. Nós temos essa capacidade de nos reinventarmos. E acredito que estamos exatamente nesse momento.
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