Fico pensando no drama das famílias desfeitas. Penso também em quem está "órfão" de pais e mães, presos em Brasília
23/01/2023 07:00 -
Segundo a sabedoria popular, o ócio é a morada do demônio. Bobagem. O ócio é uma condição de vida, durante pequena parte da vida (e para poucos, já que a maioria absoluta dos seres humanos precisa de movimento e ocupação), sobretudo no terço final, que, se bem utilizado, transforma a falta do que fazer em poderosa ferramenta de longevidade, se não física, ao menos intelectual e emocional. Profundo, né?
A morada do demônio, em verdade, atende por outros nomes: angústia, insegurança, incerteza, frustração e, talvez, resumindo tudo, “vazio existencial”, este sim um explosivo combustível para tudo o que não presta. Dinheiro, saúde, tranquilidade… O que mais queremos, juntos, não resiste ao poder destruidor desta condição, uma espécie de falta de propósito vital que mina qualquer pulsão de vida.
Quanto mais idade, maior a chance deste vazio preencher o dia a dia. Paradoxal, não é mesmo? O vazio tomando conta de algo. Mas é assim mesmo. Idosos, com muita frequência, experimentam viver os últimos anos isolados, ainda que não sós, em um mundo próprio, fechado, onde memórias e reflexões tendem a deprimir o humor e trazer à tona a antítese da vida, que é a pulsão de morte.
PERTENÇO LOGO EXISTO
As redes sociais chegaram também para mudar essa lógica. Para o bem e para o mal. O isolamento físico até pode ter permanecido, mas o mundo virtual acabou aproximando os náufragos emocionais. Ilhas solitárias uniram-se em arquipélagos através do WhatsApp, Telegram, Facebook e formaram um ecossistema próprio, paralelo ao real - e à realidade -, que saltou para as ruas, avenidas e portas de quartéis Brasil afora.
O vazio existencial, a falta de propósito e o isolamento físico serviram como muletas para que para milhares de pessoas acima de 50 anos se reencontrassem com a energia vital perdida, e redescobrissem o sentimento de pertencimento e a razão de ser, de existir, ainda que sabidamente falsa (para quem escapou da armadilha, claro). Alienados do mundo real, passaram a viver em uma comunidade que lhes devolveu o sentido.
Os filhos criados, os netos ausentes, a aposentadoria, a falta de trabalho regular, o abandono existencial do mundo dos jovens, as condições mínimas de vida satisfeitas (casa, comida etc.) moveram essas pessoas rumo à narrativa fácil das teorias da conspiração, criadas e disseminadas por extremistas em todo o mundo, representados no Brasil por Jair Bolsonaro, seus filhos e milhões de seguidores sedentos por amparo.
QUERO MINHA MÃE
Uma das forças mais destruidoras que conhecemos é o desamparo, condição primitiva que todos os seres humanos já experimentaram, em maior ou menor grau de dor e intensidade, durante a primeira infância. Se mal vivido e não reparado à frente, o desamparo atuará com uma âncora emocional devastadora. A busca por amparo (resgate do colo paterno e/ou do seio materno) pela aceitação de quem nos cerca é real e poderosa.
Capturados pelo obtuso, simplório e fácil propósito bolsonarista (combate aos comunistas, à Globolixo, à China, aos globalistas etc.), enclausurados em uma rede própria de informação (desinformação pura), alienados à realidade e compartilhando valores comuns (Deus, pátria e família), “velhinhos” desamparados se viram protagonistas da vida mais uma vez. E o melhor: em companhia de (novos) afetos.
SÓ BOLSONARO É O CULPADO?
Não há dúvidas de que Jair Bolsonaro é o grande responsável por essa tragédia. Mas não podemos isentar de culpa as próprias vítimas, já que crescidos, alfabetizados e minimamente aptos cognitivamente. A fome se encontrou com a vontade de comer! Essas pessoas não são muito diferentes do que é o patriarca do clã das rachadinhas e das mansões milionárias compradas com panetones e dinheiro vivo.
Por certa empatia, tenho alguma compaixão por essa turma. Ao mesmo tempo, não tenho paciência nem desejo de resgatar-lhes do fundo do poço. Ao contrário. Durante todo esse tempo, nutri profundo desgosto e desprezo diante de tamanhas estupidez e selvageria. Deles, confesso, quero distância. Se um dia voltarei a aceitar o convívio, não sei. Hoje, não. Até porque imagino que a recíproca seja relativamente verdadeira.
Fico pensando no drama das famílias desfeitas. Penso também em quem está “órfão” de pais e mães, presos em Brasília. Aliás, imagino o sofrimento físico de pessoas de idade, dormindo no chão, comendo mal, enfim, experimentando um tipo de vida que jamais conheceram. A história humana conta muitas tragédias à partir da captura das massas (escravidão, nazismo, comunismo…). Em infinitos menores grau e importância, estamos vivenciando algo similar. Que pena. Que triste. Tomara que sirva de lição.
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