Venda de leite em pó dado pela Prefeitura de São Paulo é feita em grupos de Facebook
Imagem: Reprodução/Facebook
Grupos no Facebook vendem irregularmente leite em pó distribuído de graça pela Prefeitura de São Paulo para moradores pobres. O produto do programa Leve Leite, voltado para pessoas em situação de vulnerabilidade social, é comercializado entre R$ 15 e R$ 40 em grupos no Facebook, que funcionam como um mercado paralelo para milhares de pessoas.
O produto também serve como troca por arroz e feijão. Doações para pessoas mais necessitadas são menos frequentes, mas vez ou outra aparece uma publicação do tipo.
Qual a irregularidade? O leite é distribuído para quem precisa, não pode ser vendido. Um decreto municipal proíbe a comercialização e troca desses produtos e pode até excluir os beneficiários do programa. O Leve Leite distribui leite em pó, mas também há disponibilidade de fórmula láctea para crianças de 4 a 12 meses.
Advogados ouvidos pelo UOL afirmam que essa ação pode ser enquadrada como crime de fraude. A prefeitura diz que denúncias sobre venda indevida são encaminhadas para investigação policial.
Como funciona a venda online? O UOL localizou pelo menos cinco grupos de venda de leite em pó da prefeitura no Facebook. O maior deles tem mais de 87 mil participantes. A dinâmica é a mesma em todos.
Alguém anuncia o produto e informa o preço, algo em torno de R$ 15 a R$ 30 a unidade. As mensagens são diretas. Há também aqueles que acrescentam uma foto do leite em pó, mostrando que se trata de um produto distribuído pela prefeitura.
Por exemplo, uma publicação feita no domingo (24) diz o seguinte: "Tenho três pacotes de leite, quero R$ 50 nos três pacotes. Entrego na terça-feira, no metrô Itaquera, às 14h." Na foto, destaque para sacos de leite em pó com a marca do programa Leve Leite.
Na sequência, os interessados respondem na caixa de comentários, marcando uma espécie de "fila" para quem comenta primeiro. Postagens que trazem preços considerados atrativos costumam reunir centenas de comentários. Mas o vendedor interage com poucos. O próximo passo é conversar no Messenger, aplicativo de mensagens da rede social.
Geralmente, o ponto de encontro são as catracas de uma estação de trem ou metrô. Outra possibilidade é marcar em uma avenida de grande circulação de pessoas e carros. Há quem aceite o pagamento apenas na hora e também quem exija que o dinheiro seja depositado logo depois da confirmação por mensagem.
Nos dias em que observou esses grupos, a reportagem viu também que há muitas publicações de pessoas que querem comprar leite em pó e às vezes não encontram vendedor. Em menor quantidade, estão as ofertas de troca e doações.
Um "anunciante" que coloque um valor considerado abusivo fere o "código de regras" do grupo e recebe críticas de usuários na publicação, podendo ser excluído da comunidade virtual.
Quanto custa o leite em pó atualmente? O leite em pó ficou 9,86% mais caro no acumulado dos últimos 12 meses, segundo o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) de junho.
Em supermercados de São Paulo, um pacote de leite em pó Italac de 400g custa R$ 18,28, o Ninho de 380g sai por R$ 21,48, e um Ninho de 750g vale R$ 38,98. O pacote dado pela prefeitura e vendido nos grupos é de 1 quilo.
O aumento de preço desse tem sido assunto nas redes sociais, com o compartilhamento de fotos de preços do produto vendido em supermercados.
Nos grupos de Facebook, vendedores e compradores usam os valores cobrados em lojas para criticar os anúncios considerados abusivos de leite em pó.
Quem tem direito ao benefício? O programa Leve Leite é voltado para famílias de baixa renda inscritas no CadÚnico (.Cadastro Único) para programas sociais. Crianças a partir de 4 meses de idade devem estar matriculadas em creches ou pré-escolas da rede municipal (conforme a idade).
Outro público atendido são crianças com deficiência que estudam até o 5º ano do ensino fundamental. Para esses beneficiários, o cadastro no CadÚnico não é obrigatório.
Menores de 1 ano recebem a fórmula láctea todos os meses na creche, e a entrega para os demais usuários é feita a cada quatro meses pelos Correios.
De acordo com a Prefeitura de São Paulo, o programa atende a cerca de 320 mil crianças em toda a capital.
O que diz a prefeitura sobre a venda de leite em pó? O Decreto nº 57.632/17, publicado quando João Doria (PSDB) era prefeito de São Paulo, afirma que a comprovação de venda ou troca do leite fornecido pelo programa Leve Leite é passível de punições.
Na primeira delas, a família terá a entrega de leite suspensa por um ciclo de entrega. Se o problema persistir, o beneficiário será excluído do programa.
Quem acompanha e monitora a execução do Leve Leite é a Codae (Coordenadoria de Alimentação Escolar), órgão vinculado à SME (Secretaria Municipal de Educação).
Questionada, a prefeitura afirmou que o site Portal SP 156 traz informações sobre denúncias de condutas irregulares. Segundo a administração, os registros são encaminhados para a investigação policial, mas não disse se há algum trabalho desse tipo em andamento.
O UOL também entrou em contato com o Facebook, mas não teve resposta até a publicação desta matéria.
Quando a venda é considerada crime? O leite de distribuição gratuita da prefeitura da capital envolve a prática de possíveis crimes, segundo especialistas ouvidos pelo UOL.
Juliana Bertholdi, advogada e doutoranda em Justiça, Democracia e Direitos Humanos pela PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), diz que a fraude pode ser constatada quando uma pessoa se inscreve no programa social sem precisar do benefício.
Quem compra o leite pode ser enquadrado no crime de receptação, diz a advogada.
Ela observa que as publicações nos grupos de venda de leite em pó da prefeitura trazem diferentes abordagens, como a troca do leite por arroz, feijão ou fraldas descartáveis.
"Vivemos um momento político muito delicado em que temos que ter cuidado para não vilanizar pessoas que são vítimas de vulnerabilidade social. Nesses grupos, existem pessoas de má intenção, mas eu vejo ali uma necessidade de quem está ali."
É uma questão imoral? Para Matheus Falivene, doutor e mestre em direito penal pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), o beneficiário que tem unidades a mais do produto e põe à venda em tese não estaria cometendo um crime.
Ele reforça que é "em tese" porque as circunstâncias de cada caso precisam ser analisadas, como a quantidade de latas vendidas ou se o comprador sabia a origem do produto.
"Mesmo que não seja crime, é uma questão moralmente grave. Porque essas pessoas não deveriam estar inscritas no programa se não necessitam do leite em pó e ainda podem tirar o lugar de quem realmente precisa."
Segundo Bertholdi, um beneficiário inscrito no programa que faz a venda ou troca do leite em pó não comete crime, e sim um ilícito administrativo. Isso significa que o cidadão cometeu uma irregularidade que deve ser punida na esfera da administração pública, que são os casos de suspensão ou exclusão do programa.
Entretanto, essa prática pode ser interpretada de outra maneira por profissionais do direito, segundo a advogada. Alguns apontam a possibilidade de crime de receptação, previsto no artigo 180 do Código Penal.
Mas também pode não ser receptação porque isso ocorreria se o leite fosse produto de crime, o que não é o caso quando é obtido regularmente, declara Juliana Bertholdi.
Pessoa que se identifica como desempregada coloca leite à
venda para comprar comida, segundo ela
Imagem: Reprodução/Facebook
Pessoa que se identifica como desempregada coloca leite à
venda para comprar comida, segundo ela
Imagem: Reprodução/Facebook
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