Candidato deu show de misoginia no debate e mostrou por que eleitorado feminino tem motivos para rejeitá-lo
Fernanda da Escóssia|29 ago 2022_14h18
Imagine a cena: diante de duas mulheres, um homem chama outro homem para falar de assuntos de interesse delas. Já seria machista numa mesa de bar. Mas foi pior. Aconteceu no debate deste domingo entre candidatos à Presidência da República, quando Jair Bolsonaro (PL) podia ter feito sua pergunta a Simone Tebet (MDB) ou Soraya Thronicke (União Brasil), mas convidou Ciro Gomes (PDT) para um “papo sobre mulheres”.
Bolsonaro já tinha dado seu show de machismo ao atacar a jornalista Vera Magalhães. Estava acuado depois que, no bloco anterior, Tebet lembrou sua defesa de um torturador de mulheres, Carlos Alberto Brilhante Ustra, e perguntou sem meias palavras o motivo de sua raiva das mulheres. Bolsonaro respondeu elogiando aquelas que o apoiam, a primeira-dama Michelle Bolsonaro e as médicas Nise Yamaguchi e Mayra Pinheiro. O que guarda para as que o criticam? O estupro “não merecido”, ameaça que fez à então deputada Maria do Rosário (PT-RS)?
Em debates, a experiência de Bolsonaro com as candidatas femininas tem sido desastrosa. Foi Marina Silva (Rede-SP) que o enquadrou em 2018 ao lembrar que o então deputado encorajou uma criança a fazer gesto imitando uma arminha. Por isso ontem ele fugiu de polemizar com Tebet ou Thronicke. Sua tentativa de abordar a temática feminina daria um bom nome de filme: o homem que odeia as mulheres. Bolsonaro explicitou seus argumentos com a profundidade de um pires e a crueldade que lhe é peculiar. Ouvimos, mais uma vez, “chega de vitimismo” e “não fica aqui fazendo joguinho de mimimi”.
Feminicídio e estupro não são vitimismo nem mimimi. O último Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelou que, em 2021, foram registradas 66 mil ocorrências de estupro no Brasil, um crescimento de 4,2% em relação ao ano anterior. São 181 casos por dia, oito por hora. O anuário indicou que os casos de feminicídio, quando a vítima é morta em razão de sua condição de gênero, caíram 1,7% entre 2020 e 2021 – mas seguem num patamar alarmante. Nos últimos dois anos, nada menos que 2.695 mulheres foram assassinadas por serem mulheres – quatro por dia. Os outros indicadores de violência de gênero aumentaram. Assédio subiu 6,6%. Importunação sexual, 17,8%.
O eleitorado feminino tem sido um dos pontos fracos da campanha do candidato à reeleição. Segundo o último DataFolha, a diferença entre Lula e Bolsonaro, que é de 15 pontos percentuais no eleitorado como um todo, sobe para 18 pontos entre as mulheres (47% a 29%). É nesse grupo que os candidatos estão de olho – mas o recado de Bolsonaro só reforçou sua incapacidade de se dirigir às mulheres de forma respeitosa. Não foi exatamente uma surpresa, mas choca pela obtusidade renitente do ocupante do Palácio do Planalto. Choca o fato de Bolsonaro ter sido naturalizado pela sociedade brasileira, pela mídia inclusive. Choca o fato de estar lá entre os demais, perguntando, respondendo, como se fosse adepto da democracia que ele tenta destruir. Como se ele desde sempre não tivesse defendido um torturador de mulheres.
A pauta de gênero dominou o debate deste domingo, mas, nas redes, ainda não conseguiu o alcance esperado. Os números da consultoria de dados Arquimedes apontam que, no domingo, Bolsonaro obteve 1,05 milhão de citações no Twitter; Lula, 872 mil; Ciro, 450 mil; Simone Tebet, 270 mil; Soraya Thronicke, 250 mil. Mulher ou mulheres, 336 mil. Ainda há um mês para que a questão de gênero se transforme num dos eixos da campanha, e a candidata Simone Tebet foi inteligente ao fazer desse tema sua bandeira. O ex-presidente Lula perdeu a chance de se comprometer com um gabinete paritário e diverso, que inclua não só mulheres, mas também negros, indígenas e pessoas com deficiência. Há tempo para se corrigir. Voltando à cena que abre esse texto, Ciro Gomes respondeu bem à pergunta de Bolsonaro e atacou frontalmente a forma como o presidente fala de mulheres. Faltou um lembrete, que serve para todos: não há como falar de mulheres sem a participação de mulheres.
Por fim: nós, jornalistas, somos bons em cobrar diversidade no quintal dos outros. Mas entre os ocupantes da bancada principal de entrevistadores e entrevistadoras não havia um negro, um indígena, uma pessoa com deficiência. Na sala digital, registre-se a presença da jornalista negra Cynthia Martins. De novo, há tempo para corrigir – mas é urgente.
https://piaui.folha.uol.com.br/eleicoes-2022/bolsonaro-tem-medo-de-mulher
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