quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Orçamento secreto: o escândalo insepulto a que o STF tenta dar fim

Apesar de proibida pelo tribunal no fim de 2022, prática ganhou novas formas a partir de manobras do Congresso. Comissão tenta dar mais transparência aos gastos com emendas parlamentares

Letícia Arcoverde e Conrado Corsalette

07 de agosto de 2024(atualizado 07/08/2024 às 20h01)


O Supremo criou uma comissão a fim de dar mais transparência ao gasto público via emendas parlamentares, diante das evidências de que o orçamento secreto ainda funciona parcialmente numa nova versão. O Durma com Essa desta quarta-feira (7) explica o que o tribunal, que proibiu a prática em dezembro de 2022, está fazendo para dar mais transparência à destinação de recursos feita por indicações de deputados e senadores. O programa tem também Marcelo Roubicek falando da onda de xenofobia e racismo no Reino Unido.

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Edição de áudio Brunno Bimbati

Produção de arte Mariana Simonetti

Transcrição do episódio

Conrado: Um mecanismo que aumentou o controle do Congresso sobre o uso de verbas públicas. Um esquema pouco transparente, cercado de suspeitas de corrupção. Um dispositivo que acabou proibido pelo Supremo no finzinho do governo Bolsonaro. Um expediente que ganhou outras formas de operação no governo Lula. Eu sou o Conrado Corsalette e este aqui é o Durma com Essa, o podcast de notícias do Nexo.

Letícia: Olá, eu sou a Letícia Arcoverde e estou aqui com o Conrado para apresentar este podcast que vai ao ar de segunda a sexta, todo início de noite, sempre com notícias que podem continuar a ecoar por aí. 

Conrado: Quarta-feira, 7 de agosto de 2024. Dia seguinte à primeira reunião da comissão criada pelo Supremo Tribunal Federal a fim de dar mais transparência ao uso de verbas públicas pelo Congresso Nacional. O objetivo desse grupo de trabalho, que reúne representantes do Parlamento, do governo e de órgãos de fiscalização, é acabar definitivamente com o orçamento secreto. 

Letícia: E aí você pode se perguntar: o Supremo já não proibiu o orçamento secreto lá no finalzinho de 2022, último ano do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro? Sim, formalmente sim. Mas como diz o chavão, o Brasil é “o país do jeitinho”. E deputados e senadores deram um jeitinho de atropelar a decisão judicial e adaptar, pelo menos parcialmente, o esquema. 

Conrado: Quem está à frente dessa tentativa de acabar de vez com o orçamento secreto e suas variações posteriores é o ministro do Supremo Flávio Dino. Além de criar a comissão com representantes do Congresso, do governo e de órgãos de fiscalização, o ministro determinou que a Controladoria Geral da União, a CGU, realize uma auditoria em todos os repasses de verbas federais feitos por meio de emendas parlamentares entre os anos de 2020 e 2024. 

Letícia: A decisão, tomada no início de agosto, deu prazo de 90 dias para que a CGU conclua essa auditoria. O objetivo é saber quem é o “dono” ou “dona” da emenda e para onde ela foi exatamente. O Flávio Dino também determinou que a partir de agora deputados e senadores só podem destinar emendas para os estados pelos quais foram eleitos, exceção feita a projetos de âmbito nacional: por exemplo, se o congressista quiser reforçar o Bolsa Família. O ministro também pediu esclarecimentos para o Congresso e para o governo.

Flávio Dino: “Pretendemos que haja deliberações concretas de procedimentos, prazos, medidas, para que essa… essa questão, essa controvérsia, seja elucidada e nós tenhamos efetivamente o fim do orçamento secreto no Brasil”.

Conrado: A história do orçamento secreto faz parte de um processo que vem de anos. Um processo que mexeu na balança de força do presidencialismo de coalizão brasileiro, em que, a princípio, o governo, ou seja, o Poder Executivo, tinha muito poder para lidar com o Congresso. Esse poder era exercido a partir do controle da execução do Orçamento federal, da distribuição de verbas. Esse poder então foi diluído e transferido para os parlamentares. É uma história que tem quase uma década. É ela que a gente vai contar aqui para você.

[mudança de trilha]

Letícia: O Orçamento é o instrumento administrativo que prevê as receitas e despesas públicas para determinado ano. Essa projeção é feita pelo governo e aprovada pelo Congresso. Ela leva em conta o ritmo previsto para a atividade econômica, a inflação, entre outros vários fatores.

Conrado:  Aí vem a alocação dos recursos. São consideradas as necessidades da população, as despesas obrigatórias, tipo Previdência, salários e benefícios como o seguro-desemprego. O governo também exerce suas prioridades políticas com verbas não obrigatórias, sempre respeitando os limites fiscais determinados em lei. Ou seja, não dá para sair gastando a torto e a direito.

Letícia: Parte do dinheiro para essas despesas é destinada às emendas parlamentares. Essas emendas existem para que os congressistas cumpram os compromissos políticos assumidos em seus mandatos, geralmente nos seus redutos políticos. Esse dinheiro vai, por exemplo, para reparar uma estrada, comprar ambulâncias, reformar um hospital, construir uma praça. 

Conrado: Ao sugerir uma emenda, o congressista precisa ser específico, pelo menos na teoria. Ele precisa informar o valor exato, a entidade que vai receber o dinheiro, o nome e o endereço dos responsáveis, as metas de como o recurso vai ser usado, os cronogramas, entre outras regras. Existem vários tipos de emendas parlamentares.

Letícia: Tem as emendas individuais, em que cada deputado ou senador tem o direito de alocar um montante para seus projetos de interesse. 

Conrado: Tem as emendas de bancada, em que as bancadas de cada estado, ou seja, os parlamentares de um mesmo estado, independentemente do partido, podem destinar os recursos de forma coletiva.

Letícia: Tem as emendas de comissão, em que as comissões permanentes da Câmara e do Senado — tipo comissão de saúde, de educação — têm direito a alocar recursos também de forma coletiva.

Conrado: E por fim tem as emendas do relator, usadas pelo relator do Orçamento no Congresso para fazer pequenos acertos na hora de destinar os recursos federais.

Letícia: A princípio, as emendas individuais eram as mais cobiçadas. E ali tinha um detalhe: o dinheiro só saia do cofre para o projeto de determinado parlamentar quando — e se — o governo quisesse. O que o presidente fazia? Só liberava a emenda se o deputado ou senador votasse de acordo com os interesses do governo.

Conrado: Corta então para o ano de 2015. A então presidente Dilma Rousseff tinha acabado de ser reeleita, mas por uma diferença ínfima de votos para o adversário tucano Aécio Neves. Parte da população estava numa onda antipetista. E o presidente da Câmara dos Deputados da época, Eduardo Cunha, do MDB, decidiu aproveitar essa fraqueza. Foi quando o Congresso aprovou a imposição do pagamento das emendas individuais. 

Letícia: A partir dali, o governo seria obrigado a pagar essas emendas, isso deixou de ficar a seu critério. É máxima da política segundo a qual não existe espaço vazio de poder em Brasília. Se o presidente está fraco, o Congresso vai lá e ocupa o espaço. 

Conrado: O mesmo aconteceu em 2019, primeiro ano do governo Jair Bolsonaro. O então presidente não gostava, na verdade não sabia lidar com o Congresso. Os parlamentares foram lá e aprovaram a impositividade também das emendas de bancada. O governo perdeu ainda mais poder de barganha.

Letícia: Mas não foi só isso. Os parlamentares aprovaram um dinheirão para as emendas do relator a partir de 2020. As emendas do relator, também conhecidas como RP9, eram usadas para pequenos acertos no Orçamento. A partir de 2020, passaram a abrigar bilhões de reais. A princípio o governo Bolsonaro resistiu, mas depois deu o aval para essa manobra do Congresso. Estava criado assim o orçamento secreto.

[mudança de trilha] 

Conrado: As emendas do relator, ou RP9, turbinadas com bilhões a partir de 2020 foram apelidadas de orçamento secreto porque passavam ao largo de mecanismos de controle. A partir de acordos informais, os parlamentares iam lá e destinavam a verba, sem que o público soubesse quem estava fazendo isso. Também não ficava claro qual era o critério para gastar a verba. Por fim, os mecanismos de fiscalização dos gastos eram escassos.

Letícia: Formalmente era o relator do Orçamento que fazia a distribuição do dinheiro, mas quem mandava mesmo no esquema eram líderes do Congresso, como o presidente da Câmara, Arthur Lira, do PP, Progressistas, e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, do PSD. A dupla, especialmente o Arthur Lira, passou a controlar a destinação desses bilhões em benefício de aliados tanto deles quanto do governo Bolsonaro. 

Conrado: A participação do governo era importante. Afinal, as emendas do relator não eram impositivas. O presidente tinha que liberar a verba. E fazia isso para conseguir aprovar seus projetos no Congresso. Só que a articulação política acabava, na prática, sendo feita pelos líderes do “centrão” do Arthur Lira. Centrão que é o grupo de parlamentares com histórico de práticas fisiologistas que costuma arrendar seu apoio ao governo da vez em troca de acesso privilegiado a cargos e verbas públicas.

Letícia: Além do sistema pouco transparente de distribuição de verbas, o orçamento secreto ficou cercado de denúncias de superfaturamento e corrupção na ponta, ou seja, nas obras e programas para os quais o dinheiro público era destinado. O esquema ainda trazia outro problema: ao deixar nas mãos do Congresso a decisão sobre a destinação de bilhões de reais, o governo praticamente abriu mão de coordenar políticas públicas. É meio que cada um por si. E o gasto público perde o foco.

Conrado: O orçamento secreto só veio a público em maio de 2021, a partir de uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo. Só em dezembro de 2022, com Bolsonaro de saída da Presidência, o Supremo decidiu proibir a prática. As emendas do relator não poderiam mais ter bilhões de reais. Deveriam voltar a ser usadas apenas para pequenos acertos. Mas por que o orçamento secreto não acabou de vez?

Letícia: A execução do orçamento é feita em partes. O governo tem que empenhar o dinheiro, ou seja, reservar a quantia para o projeto ou obra, liquidar, ou seja, ver se a coisa foi feita mesmo, pelo menos em teoria, e por fim pagar. Nem tudo acontece no mesmo ano. E muita verba que foi empenhada e liquidada num ano acaba sendo paga apenas no ano seguinte. E o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva continuou liberando os restos a pagar do Bolsonaro, seu antecessor. Os projetos e obras do orçamento secreto, portanto, continuaram sendo um duto de saída de dinheiro dos cofres públicos. 

Conrado: E teve também uma outra manobra do Congresso, segundo entidades de transparência que monitoram a execução do Orçamento. Proibidos de turbinar as emendas do relator, as RP9, os parlamentares foram lá e turbinaram as emendas de comissão, as RP8, que também não são impositivas. E aí os acordos informais para a destinação de verbas continuaram, também com pouca transparência. É por isso que muitos dizem que o orçamento secreto na verdade não acabou, ou continua existindo, pelo menos parcialmente, nessa nova versão. 

Flávio Dino: “Houve a identificação nos autos de que uma parte, uma parcela ou todas as verbas antes classificadas como RP9 podem ter migrado para as emendas de comissão, para a RP8”.

Letícia: Aí o Flávio Dino, ao justificar as novas medidas do Supremo para tentar acabar com a opacidade dos gastos de verba pública controlada pelo Congresso. O Flávio Dino é relator do processo que envolve o orçamento secreto porque herdou o caso da Rosa Weber, ministra agora aposentada que era a relatora inicial. 

Conrado: Se esse esforço do Flávio Dino vai dar em alguma coisa ainda não dá para saber. O Congresso já avisou o ministro do Supremo que não tem como repassar os dados de quem são os “patrocinadores” das emendas de comissão, não tem como dizer qual deputado ou senador foi lá e indicou informalmente a obra ou projeto para receber o dinheiro. Dinheiro que saiu dos cofres públicos formalmente como uma decisão coletiva da comissão temática. Na prática, o Congresso está negando que o esquema exista, como fez antes com as emendas do relator. Por enquanto, conforme descreveram representantes do Tribunal de Contas da União no encontro da comissão criada pelo Supremo, o cenário é de gastos “descontrolados, pulverizados e sem transparência”.

Letícia: O Durma com Essa volta já.

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Letícia: O Reino Unido tem sido palco de protestos violentos nos últimos dias, promovidos por movimentos xenofóbicos de extrema direita. O Marcelo Roubicek escreveu sobre o tema. Marcelo, o que está motivando esse racismo explícito nas ruas do reino Unido?

Marcelo: “Bom, o episódio que deu origem a tudo isso aconteceu em 29 de julho, em Southport, no litoral da Inglaterra, quando um ataque a faca deixou três crianças mortas. A polícia prendeu um suspeito de 17 anos, e a princípio segurou a informação de quem era o autor. Mas demorou pouquíssimo tempo para começar a circular notícias falsas nas redes dizendo que o autor do crime era um imigrante muçulmano que buscava asilo como refugiado. A gente sabe que isso é falso porque depois a polícia divulgou o nome do suspeito, e que ele é britânico, nascido no País de Gales, filho de ruandeses e não é muçulmano. Mas mesmo com a fake news desmentida, isso não impediu influenciadores de extrema direita de convocarem atos de teor xenofóbico e islamofóbico, que tomaram pelo menos uma dúzia de cidades pelo país. Ao longo desses dias, teve quebra quebra, confronto com a polícia, ataques a mesquitas, ataques a hotéis que abrigam refugiados e saques a comércios em bairros muçulmanos. Até terça, 400 pessoas tinham sido presas. E o governo disse que quem incita esses protestos violentos na internet também está cometendo crime.

Letícia: E, Marcelo, a gente sabe que a xenofobia é crescente na Europa. Quais são as particularidades do Reino Unido?

Marcelo: “A gente tem visto muito nesses últimos anos um crescimento da extrema direita pela via eleitoral, também muito apoiada nesse discurso anti-imigrante. E não é que isso não exista também no Reino Unido, tá? Nas eleições de julho, o partido Reform UK, da direita radical, bateu seu recorde de votos, com 14%. Mas o formato distrital das eleições fez com que isso não se traduzisse em cadeiras no Parlamento: eles ganharam só 5 das 650 cadeiras. Ou seja, diferentemente de um lugar como a França, em que a Marine Le Pen e o partido dela tiveram uma chance real de ganhar maioria legislativa, isso não é uma realidade próxima na política britânica, pelo menos por enquanto. E o Reform UK está tentando se distanciar da violência que está acontecendo nas ruas britânicas agora. Ou seja, não é ele que está organizando isso tudo. O movimento parece ser bem mais descentralizado, não puxado por um partido, e sim por vários influencers e personalidades da extrema direita, sobretudo nas redes sociais. E tem grupos organizados também que estão marcando presença nesses atos, como alguns hooligans – gente violenta do futebol — e gente que pertence a grupos neonazistas e fascistas. Mas tem também pessoas lá que não tem ligação direta com esses grupos e que tá indo pra rua para ecoar esse ódio contra imigrantes e muçulmanos que está ganhando muita força nas redes sociais.

Letícia: O texto do Marcelo você lê em nexojornal.com.br. E você já conhece os cursos do Nexo? Tem aulas sobre como fazer e ler gráficos, com a mentoria do Gabriel Zanlorenssi, o nosso editor de gráficos, e sobre como escrever com mais clareza, com o Conrado, editor-chefe do jornal. Os cursos são online e cada um tem quatro horas de duração. Assinante do Nexo tem desconto. Ah, e dá também pra contratar cursos sob demanda para empresas e organizações. Entra lá no nexojornal.com.br/cursos para conhecer mais.

Conrado: Da nova investida do Supremo para tentar acabar com os resquícios do orçamento secreto à onda de racismo e xenofobia no Reino Unido, Durma com Essa.

Letícia: Com roteiro, produção e apresentação de Conrado Corsalette, edição de texto e apresentação de Letícia Arcoverde, participação e colaboração no roteiro de Marcelo Roubicek, produção de arte de Mariana Simonetti e edição de áudio de Brunno Bimbati, termina aqui mais um Durma com Essa. Amanhã a gente volta. Até!

https://www.nexojornal.com.br/podcast/2024/08/07/fim-do-orcamento-secreto-flavio-dino

                                                                       


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