A decisão de
uma juíza do Paraná que associou a raça de um réu, negro, apelidado Neguinho,
ao fato de ele ser "seguramente integrante de um grupo criminoso" é
fruto do racismo entranhado no sistema brasileiro de Justiça, de acordo com
juristas ouvidos pelo UOL.
Eles
defendem a anulação da sentença e acreditam que condutas como esta só deixarão
de existir quando reformas profundas forem feitas no Judiciário.
Por que a
decisão foi considerada racista?
Este caso não deixa a gente espantado, no sentido de o
Judiciário estar valorando negativamente uma pessoa em razão de sua raça. Isso
é algo que acontece estruturalmente. Quando 80% dos magistrados são brancos,
num país que tem 52% de negros, há um indicativo da questão racial no sistema.
Casos como esse sempre acontecem, é um pacto subentendido e acontece de uma
forma oculta
Pedro
Martinez, advogado criminalista e coordenador de Direitos Humanos do Sindicato
dos Advogados de São Paulo
A
valoração negativa, citada por Martinez, é exatamente o ponto em que a Inês
Marchalek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal de Curitiba, cita a raça do réu,
condenado a 14 anos e 2 meses por organização criminosa e furto. Neste trecho
da sentença proferida em junho, a magistrada justificava o cálculo da pena
(dosimetria, no jargão do Direito), ato que leva em consideração a conduta
social de quem está recebendo a punição. Ela escreveu que:
Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente
Ciente
do pedido de desculpas de Zarpelon e do argumento da frase utilizada "fora
de contexto", o advogado Ítalo Pires Aguiar, secretário-geral da Comissão
de Direitos Humanos da OAB/RJ, é categórico:
Em nenhum contexto esse tipo de raciocínio é aceitável,
muito menos na relação entre Estado e cidadão
Sistema racista
Segundo os especialistas ouvidos
pelo UOL,
a predisposição em ligar raça a atividades criminosas começa antes de os casos
serem julgados. No Rio de Janeiro, oito em cada 10 presos em flagrante são
negros, mostrou a Defensoria Pública do estado. Somados à baixa presença de
negros no Judiciário (18,1% dos juízes), os números mostram como, apesar de não
serem nítidas, funcionam as engrenagens discriminatórias do Judiciário.
Para
Aguiar, ideias como as da juíza foram abolidas pela ciência, mas ainda têm
forte peso na forma como compreendemos o mundo. "A situação é típica de um
país que resolveu de forma atrasada e incompleta a questão da escravidão. Ao
que tudo indica, essa sentença é mais uma evidência desse estado de
coisas", avalia.
Tais
ideias são percebidas frequentemente no Judiciário, afirma Juliana Sanches,
coordenadora adjunta da regional do Rio de Janeiro do Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais (IBCCRIM/RJ). Para a advogada criminalista, a frase de
Zarpelon reflete como o senso moral de cada juiz norteia quem é preso ou sai em
liberdade: "As sentenças criminais raramente são fundamentadas com
técnicas".
Sanches
exemplifica: em casos de apreensão de entorpecentes, o mais comum é uma
associação entre território, porte de drogas e atividade criminosa:
É comum o juiz dizer que um flagrante de porte em favelas é
obrigatoriamente de integrante de facção criminosa. Pensam que, se está na
favela com drogas, tem que ser associado
Repercussão
A
advogada criminalista defende que a decisão de Zarpelon seja revista por ter
sido incluído um viés racista que ampliou a pena de Natan Vieira da Paz, de 42
anos. "Foi racismo escancarado. O caso tem que ser investigado e apurado,
mas principalmente a sentença tem que ser anulada".
A
defesa de Paz afirmou que irá recorrer da decisão.
Com
a enorme repercussão nas redes sociais, a discussão chegou ao Conselho Nacional
de Justiça (CNJ). Na tarde de ontem, o ministro Humberto Martins pediu abertura
de investigação da conduta da magistrada em até 30 dias.
No
Paraná, a Defensoria Pública afirmou que montará uma força-tarefa para
"verificar se há outros casos similares que não vieram a público". O
objetivo é "realizar revisão técnica" das sentenças condenatórias da
mesma juíza no último ano. O órgão diz que a atitude é inaceitável:
Não se pode tolerar, de nenhuma forma e de quem quer que
seja, que a raça ou a cor da pele de uma pessoa seja motivo de valoração
negativa ou influencie presunções sobre sua conduta e sua personalidade,
tampouco que fundamente juízo condenatório ou maior repressão penal
A
OAB do Paraná também divulgou nota repudiando a decisão da juíza. Assinado por
Cássio Telles, presidente da seccional, o texto afirma que a Ordem protocolará
pedido de procedimento administrativo no Tribunal de Justiça do estado:
A decisão é inaceitável, imprópria e inadequada. Ela está na
contramão de tudo o que buscamos e queremos. Lutamos por igualdade, queremos o
fim do preconceito e não sua disseminação. Essa sentença retroage centenas de
anos. Julgar alguém pela cor é de um retrocesso que merece toda a repulsa. Cor
não revela caráter
Como construir um Judiciário
antirracista
Sanches,
do IBCCRIM, acredita que punições a atitudes preconceituosas podem servir para
outros tribunais mudarem sua conduta. Mas ainda há um longo caminho para o
Judiciário se reconhecer racista, diz.
No
mesmo 12 de agosto em que a decisão de Zarpelon veio à tona, o CNJ transmitia
uma reunião pública que debatia igualdade racial no Judiciário. Parte da mesma
ação, o órgão abre um canal aberto até dia 18 de agosto para a sociedade civil
apresentar "propostas de aprimoramento das políticas judiciárias" no
âmbito racial.
Até
agora, já foram ouvidos 35 ativistas de movimentos negros. Isso pode ser o
início de um trabalho para romper o "corporativismo judiciário" em relação
ao preconceito. "Há um problema anterior a essa decisão [de Curitiba], que
é esse pacto no Judiciário", afirma Martinez, do Sindicato dos Advogados
de São Paulo. Exemplo disso são os casos de violência policial, seletividade
penal e alto índice de prisão de negros.
Tudo faz parte de uma grande engrenagem do sistema criminal,
que existe, na verdade, para manter privilégios e manter o controle de corpos
marginalizados. E no Brasil, essas pessoas são majoritariamente negras
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