Transportar cargas entre Minas e São Paulo expõe caminhoneiros a risco extremos de desastre e ação de ladrões.
18/10/2021 04:00 - atualizado 18/10/2021 07:29
Igarapé, Itaguara, Itatiaiuçu e São Joaquim de Bicas – Os traumas após roubos e a perda do irmão em desastre ocorrido em 2019, no trecho mineiro da Rodovia Fernão Dias/ BR-381, fazem do transporte de cargas por essa estrada um teste de fé para o caminhoneiro gaúcho Daivison Liberato, de 38 anos. “Se fosse pela vontade da família, já tinha parado. Pensei várias vezes em desistir da estrada, mas ser caminhoneiro corre no meu sangue. Só que a Fernão Dias é o pesadelo da gente. Muitos bandidos no Sul de Minas e, mesmo duplicada, a estrada precisava de mais áreas de escape”, afirma o motorista de Gravataí.
Relatos como o de Daivison se multiplicam pela estrada que é uma das mais importantes do país. Transportar cargas entre Minas Gerais e a capital paulista em vias como a rodovia BR-381 (Fernão Dias) expõe caminhoneiros ao segundo maior índice de acidentes, furtos e roubos do Brasil. O trajeto só perde para as ligações entre Rio de Janeiro e São Paulo, em sua maioria pela BR-116 (Via Dutra).
Os dados são de uma pesquisa nacional realizada pela plataforma de aproximação de motoristas e cargas FreteBras, considerada a maior da América do Sul. O estudo analisou 130 mil fretes, entre 2018 e 2020. Segundo os dados, nem todos abertos para a reportagem, a Região Sudeste detém 40% dos fretes e sinistros analisados, o que permitiu uma avaliação mais detalhada dos trajetos dentro da região. As rotas consideradas de menor risco são as realizadas dentro do estado de São Paulo.
A lembrança das agressões físicas e violência psicológica sofridas no último roubo na Fernão Dias, no ano passado, tiraram o caminhoneiro Daivison por meses da atividade profissional. “Estava puxando (transportando) pneus de São Paulo para Recife. Na altura de Estiva (Sul de Minas), um carro com quatro pessoas armadas me parou na subida. Me arrancaram do caminhão, me jogaram no porta-malas de um carro e ficaram por oito horas me aterrorizando, perguntando entre eles o que fariam comigo. Achei que seria meu fim. Fizeram isso até carregar todo o caminhão deles com a minha carga”, recorda-se o gaúcho.
Um ano antes, ele tinha perdido o irmão, também caminhoneiro, em um desastre na Serra de Igarapé. “Tinha um acidente e o trânsito estava todo parado. Não tinha marcação, nem alerta. Para não passar por cima dos outros, meu irmão jogou a carreta no barranco. Morreu ali mesmo, na estrada”, se lembra Daivison.
No Sul de Minas, os relatos são de furtos de peças, além de cargas. “Tudo de ruim, para mim, acontece quando preciso parar no Sul de Minas. Lá é onde mais nos furtam. Nos postos, nas paradas de mecânica, no meio da estrada. Roubam com sol quente. É impressionante. Levam os faróis do caminhão, os pescadores do tanque, até os reservas (pneus sobressalentes). O único lugar que a gente tem sossego para dormir é em Oliveira. Paga R$ 20 e pode dormir mais seguro”, conta o caminhoneiro baiano Lourivandro Pereira Melo, de 32.
Nas proximidades de São Paulo, as histórias de violência se repetem nos postos que atendem caminhoneiros na Fernão Dias. “A gente fica muito impressionado com as histórias de colegas contando de violência. Tomo ainda mais cuidado, porque levo a minha mulher e a minha filha. Vou trocando informações pelos grupos de WhatsApp e ficando esperto. Perto de Atibaia (SP), nem arrisco parar. Falta mais polícia”, afirma o condutor cearense, João Batista Moreira, de 49, de Tabuleiro do Norte.
O motorista baiano José Carlos Pereira Coelho, de 59, de Guanambi, também já enfrentou apertos e violência na Fernão Dias. Quando tentou evitar as paradas no Sul de Minas, acabou pego em Atibaia (SP). “A coisa está tão feia que as seguradoras nem deixam mais a gente parar em Atibaia. Comigo, lá, foram dois carros com homens e uma mulher armados. Eles me colocaram no porta-malas de um carro, enquanto roubavam a carga. Às 22h, me soltaram em uma favela. O delegado ainda veio em cima de mim para saber se estava envolvido. O caminhão, acharam depois de dois dias”, conta.
O estudo da FreteBras permitiu, ainda, a identificação dos tipos de mercadorias e seus valores com maior e menor probabilidade de sinistros (acidentes ou crimes relatados pelos transportadores). Eletrônicos, fertilizantes, combustíveis, bebidas, sucatas de alumínio, aço e cigarro estão entre as mais propensas a sofrer um sinistro, enquanto produtos químicos, eletrodomésticos e têxteis estão entre as de menor risco.
A pesquisa também revela que 76% dos sinistros avaliados no período tiveram origem em acidentes e 24% foram relacionados a casos de roubo. Em geral, os trajetos com origem no Nordeste, em direção ao Sul do país, são os que têm os maiores índices de sinistralidade das cargas. Ou seja, os que mais se envolvem em acidentes ou sofrem com a ação de ladrões.
“Nosso time de gestão de risco analisou dezenas de milhares de fretes para estabelecer as rotas com maior ou menor probabilidade de sinistros, assim como o tipo de mercadoria e o valor das cargas mais visadas. Com isso, fomos capazes de criar um sistema realmente eficiente para validar os motoristas que farão o transporte das cargas, o que trará mais segurança para o setor”, afirma Marco Raduan, head de Gestão de Risco da FreteBras.
O levantamento serviu como base para a criação de uma ferramenta na plataforma, a FreteBras Risk, que gerencia riscos e é especializada em consulta e cadastro de motoristas. Por meio de tecnologia e inteligência artificial, o objetivo é comparar a compatibilidade dos caminhoneiros e veículos com as cargas.
De acordo com ele, as análises conseguem confirmar se a carga ou a rota têm alto índice de roubo ou acidente. “Agrupamos as mercadorias em tipos de produtos e cruzamos com o valor das cargas, chegando assim a uma matriz de pontuação de risco. Dessa forma, conseguimos mostrar quais os perigos em relação à rota traçada no frete, algo inédito no setor”, afirma.
Prisões disparam
A Polícia Rodoviária Federal (PRF) não comenta pesquisas que não têm a corporação como fonte. Mas informa que em todo estado, nos primeiros seis meses de 2021, as ocorrências de assaltos a veículos de carga aumentaram 25% em relação aos 12 meses de 2020 (primeiro ano da pandemia, que registrou redução de cargas). Por outro lado, a prisão de suspeitos teve salto de 133,3% na comparação dos mesmos períodos (veja quadro).
A corporação indica que algumas medidas podem ajudar a reduzir o volume de roubos de cargas e furtos nos caminhões. “Os motoristas devem escolher onde pernoitar, procurar locais mais seguros e evitar postos mais ermos, abandonados e escuros. Evitar comentar nas paradas que carga levam, principalmente se for mais valiosa”, recomenda o porta-voz da corporação, inspetor Aristides Amaral Júnior.
Uma providência que pode ajudar a interromper crimes em andamento é a exigência de que conste na nota fiscal da carga a identificação do motorista responsável. “Muitas vezes, os ladrões levam a nota e quando são parados, a PRF não tem como desconfiar que aquele motorista não é o contratado para fazer o transporte. Caso tenha o nome de um motorista diferente na nota, o caminhão é parado e uma fiscalização mais minuciosa pode descobrir que se trata de um roubo em andamento”, afirma Júnior.
A corporação alerta ainda que qualquer motorista deve informar à PRF pelo telefone 191 ou nos postos policiais das estradas sobre situações suspeitas relacionadas ao próprio veículo ou ao de outro caminhoneiro, como carros que possam estar seguindo os transportadores.
A reportagem procurou a concessionária que administra a BR-381 (Sul), a Autopista Fernão Dias, que informou não dispor de dados sobre crimes ocorridos. Também não comentou sobre os perigos ao longo da estrada.
Integração
A integração com as forças de segurança de estados e da União, somada a uma base dinâmica de inteligência estão entre as estratégias que a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) afirma usar para o enfrentamento ao crime nas rodovias que cortam Minas Gerais.
Uma das principais atribuições da Sejusp é a promoção da política de segurança pública e defesa social de Minas Gerais, que segundo o órgão busca integração com órgãos federais, de outros estados e municipais e com os sistemas prisional, socioeducativo e de prevenção à criminalidade.
Para isso, a secretaria informa contar com a Subsecretaria de Inteligência e Atuação Integrada (Suint), com a missão de proporcionar o alinhamento das instituições e dos sistemas. De acordo com a Sejusp, para uma repressão eficaz nas regiões de divisa, a Suint mantém troca de informações e ações conjuntas com as forças de segurança de outros estados, especialmente com aqueles que fazem divisa com Minas. “Exemplo disto é a Operação Divisas Integradas, que teve a quarta edição realizada no mês de maio. As ações duraram oito dias e tiveram a participação dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro”, informa a Sejusp.
A primeira operação do tipo foi deflagrada em julho de 2020, envolvendo São Paulo e Minas. Em agosto, outra ação ocorreu, integrando também o Paraná. A terceira fase ocorreu em outubro, unindo pela primeira vez mais de duas outras unidades federativas, com a participação de forças de segurança de São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Mato Grosso do Sul.
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