Colegiado deve reverter milhares de
pedidos de reparação rejeitados entre 2017 e 2022
Por Cristiane Agostine — De São Paulo
27/03/2023 05h00 Atualizado há 2
meses
A
Comissão de Anistia começará nesta quinta-feira (30) a rever milhares de
pedidos de reparação a vítimas da ditadura militar que foram negados durante os
governos dos ex-presidentes Michel Temer (MDB) e Jair Bolsonaro (PL). O
objetivo é reverter a maior parte dos requerimentos rejeitados entre 2017 e
2022 e conceder anistia.
Os três
primeiros casos que serão revistos são os de Ivan Valente, atual deputado
federal pelo Psol-SP; Claudia de Arruda Campos e José Pedro da Silva. A
comissão deve reverter decisões anteriores, que negaram a anistia, e conceder
reparação integral às vítimas.
A escolha
dos casos foi feita pela presidente da Comissão de Anistia, Eneá de Stutz e
Almeida, que, por iniciativa própria, decidiu submetê-los a um novo julgamento.
Para Eneá, “são casos emblemáticos das ilegalidades cometidas” contra
trabalhadores, estudantes e militantes- vítimas da ditadura - no julgamento dos
pedidos de anistia.
José Pedro da Silva, militante e sindicalista durante a ditadura, ex-dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco (SP), foi perseguido dentro do seu local de trabalho, preso e demitido por motivações políticas. O caso foi julgado em 2018, no governo Temer, mas a gestão avaliou que ele não foi vítima de perseguição política e, por isso, não teria direito à reparação.
Ivan Valente: Pedido de anistia política foi negado por Bolsonaro em 2022, mas deve ser concedido nesta semana — Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
Estudante,
professora e militante da Ação Popular, Claudia de Arruda Campos foi perseguida
e presa pelo regime militar. No julgamento de seu pedido de anistia, em 2019,
no governo Bolsonaro, Claudia foi acusada de ser terrorista e de integrar uma
das “organizações terroristas das mais violentas” pelo general Luiz Eduardo
Rocha Paiva, que compunha o colegiado. Na justificativa da rejeição da anistia,
a comissão disse que a estudante não foi vítima de punição ou perseguição por
motivos políticos.
O
deputado Ivan Valente (Psol-SP) era professor de matemática da rede pública de
São Paulo e militante contra a ditadura quando foi perseguido e teve de viver
na clandestinidade. Perdeu o emprego, foi preso duas vezes e torturado. Durante
anos, não pode pegar o diploma de engenharia mesmo depois de concluir o curso.
Ao ter seu pedido de anistia julgado no ano passado, no governo Bolsonaro, foi
considerado integrante de organização criminosa. A Comissão de Anistia avaliou,
na época, que Valente deveria ser investigado e condenado por atuar num grupo
ilegal, “com enquadramento na Lei de Segurança Nacional”. O grupo negou a
ditadura e afirmou que no regime militar “havia eleições livres, oposição legal
partidária, canções de protesto e livrarias que vendiam livros de linha
socialista e marxista”.
Quando o
pedido de indenização de Ivan Valente foi negado, em abril de 2022, Bolsonaro
ironizou: “Ivan Valente gosta de uma grana. Tentou pegar mais uma graninha do
Estado com as barbaridades que fez no passado”.
Segundo a
presidente da comissão, Valente deve receber como indenização econômica R$ 2
mil por mês até o fim da vida mais uma indenização retroativa que será definida
no julgamento. Claudia de Arruda Campos e José Pedro da Silva também devem
receber R$ 2 mil por mês mais um valor retroativo que será definido na
quinta-feira.
Eneá
afirma que há um entendimento na comissão de que o valor retroativo pago às
vítimas não deve ultrapassar R$ 1 milhão. A presidente do grupo diz ainda que o
governo deve garantir no Orçamento o montante para o pagamento das
indenizações. Ainda não há uma estimativa de qual poderá ser esse valor, com a
revisão dos casos.
Na
primeira sessão da nova Comissão de Anistia, na quinta-feira, será revisto
também o caso de Romario Cezar Schettino. O pedido de anistia dele foi aprovado
em 2018, mas a indenização não foi paga. No julgamento, será revisto o valor da
indenização retroativa.
Na gestão
Bolsonaro, a Comissão de Anistia era composta majoritariamente por militares,
advogados bolsonaristas e apoiadores do coronel Carlos Brilhante Ustra,
ex-chefe do DOI-Codi, reconhecido pela justiça como torturador. Integrante
desse colegiado, o general Rocha Paiva levava para as sessões da comissão o
livro de memórias de Ustra. Na época, o grupo chamou de “terroristas” os
requerentes dos pedidos de anistia.
O governo
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva recompôs a comissão em janeiro. A gestão
excluiu os militares e nomeou perseguidos pela ditadura e especialistas em
justiça de transição.
Segundo
levantamento preliminar do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, o
governo Bolsonaro negou 95% dos pedidos de reparação integral de vítimas da
ditadura. Entre 2019 e 2022, dos 4.285 processos julgados pela Comissão de
Anistia, 4.081 foram indeferidos (negados). Entre os pedidos negados está o da
ex-presidente Dilma Rousseff, que foi perseguida, presa e torturada.
Dos
requerimentos rejeitados, a presidente da comissão avalia que entre 20% e 30%
do total são de casos que deveriam mesmo ser negados, por falta de provas. “Mas
acredito que a imensa maioria desses pedidos tinha que ser deferido [aprovado].
A comissão negava a ditadura”, diz Eneá, professora da UnB e especialista em
justiça de transição, Estado de direito e democracia.
Eneá
avalia que os pedidos de reparação integral estão subestimados e que podem
chegar a mais de 9 mil. A previsão é revisar todos os casos e reverter a
decisão de julgamentos anteriores, quando necessário, até 2026.
Os
julgamentos dos pedidos de anistia serão retomados durante a “Semana do Nunca
Mais - Memória Restaurada, Democracia Viva”, organizada pelo Ministério dos
Direitos Humanos e da Cidadania para lembrar dos 59 anos do golpe no país e
repudiar a ditadura.
A partir
de agora, a Comissão de Anistia deve reconhecer que o Estado errou e pedir
desculpas às vítimas da ditadura quando houver declaração de anistia política.
Nesses casos, a comissão fará, em nome do Estado, “o pedido de desculpas ao
requerente e à sociedade brasileira pela perseguição feita, garantindo o não
esquecimento”.
O
colegiado definiu também que os pedidos de anistia poderão ser feitos não só de
forma individual, mas também por grupos de “trabalhadores, estudantes,
camponeses, povos indígenas, população LGBTQIA+, comunidades quilombolas e
outros segmentos, grupos ou movimentos sociais” que foram prejudicados pela
ditadura.
Nos casos
dos pedidos coletivos, não há indenização econômica. A presidente da Comissão
de Anistia diz que os grupos, ao exigirem o reconhecimento do Estado de que
houve perseguição e danos, poderão pressionar pela demarcação de terras, como
no caso de povos indígenas, ou por programas de assistência à saúde mental para
vítimas da ditadura. “O mais importante é a reparação integral e reconhecer que
o Estado errou. É a garantia de não repetição”, diz Eneá.
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