Trabalhador que desencadeou denúncias de trabalho análogo à escravidão em Bento Gonçalves e um de seus colegas deram relatos à Defensoria Pública da Bahia.
EM FEVEREIRO DESTE ANO, 207 trabalhadores foram resgatados pela Polícia Rodoviária Federal de um alojamento na cidade de Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. Eles estavam trabalhando em condições análogas à escravidão para a empresa terceirizada Fênix Serviços Administrativos, que atuava nas vinícolas de gigantes da produção de vinhos nacionais, como Aurora, Garibaldi e Salton.
A maioria dos trabalhadores veio da Bahia, com promessas de salários de R$ 3 mil, além de alojamento e alimentação. Em pouco tempo, no entanto, perceberam que tinham sido vítimas de uma grande fraude. “Com uma semana lá, a gente viu tudo. A gente até tinha que pegar dinheiro emprestado, comprar no suposto mercadinho deles. Tudo em valores absurdos: pacote de biscoito água e sal, leite…
Esse é o relato que um dos trabalhadores deu à Defensoria Pública do Estado da Bahia, publicado neste domingo no podcast oficial do órgão. Nós trazemos aqui a fala de dois deles. O primeiro é um dos homens responsáveis por fazer ruir todo esquema: ele conseguiu fugir do alojamento e denunciar a situação desumana vivida.
O segundo é um trabalhador que aceitou a proposta para tentar se livrar de uma dívida, contraída para bancar as despesas com o nascimento do filho. Ele conta que já ouvia rumores de maus-tratos, antes mesmo da sua chegada. “Tinha surgido o boato de que lá davam choque. Jogavam água e davam choque. Só que eu não acreditava nisso. Era muito absurdo. Ninguém acreditava”, relembrou.
Na última quarta-feira, dia 22 de março, os representantes das empresas Aurora, Garibaldi e Salton faltaram à audiência pública sobre combate ao trabalho escravo da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.
‘Por eu ter filmado, me deram um corretivo: espancamento, cadeirada de banco de ferro, choque’.
A justificativa dada foi que se ausentaram para se concentrar em colocar em prática, integralmente, todos os 21 compromissos assumidos com o Ministério Público para impedir que casos semelhantes ocorram no futuro. O Centro da Indústria, Comércios e Serviços de Bento Gonçalves disse repudiar atos que violassem a dignidade humana, mas culpou o programa social Bolsa Família pela “falta de mão de obra” disponível.
A seguir, publicamos o relato dos dois trabalhadores, mantidos em anonimato para preservar sua privacidade. Os depoimentos foram editados para fins de clareza.
Vinho da amargura
O sabor do que vivemos é de amargura. É o vinho da amargura. Aliás, para começar, não era vinho. Vinho eram eles que bebiam.
A gente não foi para o Rio Grande do Sul para se divertir. Para bater atabaque e fazer pagode, como alguns falaram depois. A gente saiu para trabalhar. Quase perco minha vida, deixando filhos para trás, pessoas que gostam de mim.
Com uma semana lá, a gente viu tudo. Viu os valores prometidos se desfazerem. A gente até tinha que pegar dinheiro emprestado. A gente teve que comprar no suposto mercadinho deles. Tudo em valores absurdos, pacote de biscoito de água e sal, leite líquido…
Então, aquele dinheiro que foi prometido, que a gente foi num sonho para trazer para casa… Não ia acontecer. Eles agem de uma forma que nosso dinheiro não poderia vir para a Bahia. Era uma forma de fazer com que a gente ganhasse lá e gastasse tudo lá.
Todo mundo que estava lá sabia o que estava se passando ali. Muitos ficaram quietos, pelo fato de ter gente armada lá, andando com arma na cintura. Tinha gente com lata de spray de pimenta no bolso, com armas letais, choque. Todo mundo sabia, mas tinha medo de falar.
Às vezes, o fazendeiro, dono da vinícola, da fazenda, até se sensibilizava. Alguns davam alimento, pão com carne. Uns já não davam [alimento]. Aí a gente ia passando com uva. Alguns levavam uma farofa para a gente poder trabalhar.
Eu fazia vídeos de tudo, mas ficava para mim.
Uma vez, entrei no carro com a farda molhada, encharcada. O carro arrastou com todo mundo dentro, a galera subiu também. E aí, eu tive a ousadia, o impulso, o lado da coragem, de pegar meu celular e fazer mais um vídeo. Eu já tinha diversos. Esse foi apenas mais um, que foi o que possibilitou tudo o que veio a acontecer.
Um deles começou a me perguntar: “Que vídeo você postou no grupo da empresa?”. Eu falei: “É, você querendo que eu fosse trabalhar, meu irmão. Farda molhada, encharcada, pingando. E hoje a gente nem almoçou que o rango estava azedo”.
[Ele] disse: “Mas o vídeo que você postou deu prejuízo ao homem lá”. Esse prejuízo que ele veio dizer que a gente deu ao homem foi uma empresa que encerrou o contrato de R$ 13 milhões. E aí, eles mandaram dar um corretivo em mim.
Esse corretivo foi espancamento, cadeirada de banco de ferro, me trancaram dentro do quarto. Eles me dando gravata, spray de pimenta, choque. Descarregou aquela arma de choque em mim.
E disseram: “Agora, você vai morrer, porque outra empresa também encerrou [o contrato] quando viu o vídeo”.
E aí, veio uma segunda ligação. Ele ligou mandando matar a gente: “Mata esses baianos, que eles acabaram com nossa raça”. Eu consegui me trancar por dentro. Outros colegas, assustados, também. A gente pulou a janela, caiu na laje.
‘Fiquei pedindo a Deus para não deixar eles nos acharem. E a gente ficou ali, no frio’.
Dessa laje, pulamos para a varanda de uma mansão que tinha ao lado. Era uma altura de mais de 2 metros. A gente conseguiu sair pela varanda e pular o muro. Saímos correndo desesperados pela rua.
Eu só gritava para os dois colegas que já estavam na minha frente: “Entra no mato! Entra no mato! Entra no mato!”. Eles entraram. Escolhemos uma moita muito alta e entramos no meio. E ficamos até conseguirmos nos estabilizar, porque o nervoso estava demais. A sensação do medo. Fiquei pedindo a Deus para não deixar eles nos acharem. E a gente ficou ali, no frio, com mosquito. A gente escutava os carros deles. Moto e van passando… Arrastando pneu, o motor cantando. E vai, sobe, vai, vai. E a gente ali, escondido.
Eles estavam procurando, achando que a gente tinha ido para longe. E a gente estava ali, pertinho deles. Com todas as letras, ouvimos eles falarem assim: “Mata os baianos. Esses baianos atrasaram nossa vida. Acabou com nossa vida” Sendo que eram eles que estavam tentando acabar com a nossa. Querendo ganhar dinheiro em cima da gente de uma forma… precária. Das piores formas. Aproveitador.
Quando cheguei em Salvador e vi meus filhos, aí eu me senti seguro. Cheguei em casa, missão cumprida. Todo mundo entregue nas mãos de suas famílias. E fui para cima do problema, mas não ia conseguir brigar com todos. Coragem para expor, eu tive.
Enfim, graças a Deus a gente está de volta. Os baianos estão de volta. Pronto! Quando saí de lá, lembrei de dizer: “Os baianos vão voltar para casa”.
Não acreditei nos boatos
Eu estava passando necessidade, estava precisando. E, por isso, aceitei o convite. Tinham me aconselhado a não ir, porque tinha surgido o boato de que lá davam choque. Jogavam água e davam choque. Só que eu não acreditava nisso. Era muito absurdo. Ninguém acreditava.
O que me levou foi uma dívida. Onde moro, tem uma vizinha que empresta dinheiro. Eu sempre tomava dinheiro na mão dela para comprar fralda, Mucilon…
Lembro que quando cheguei lá, [o capataz] mostrou o quarto. E mostrou também as regras. Disse que não poderia perder o par de botas, que se perdesse ou a esquecesse eram R$ 200 de multa. Se a gente faltasse um dia, ele tirava a passagem de volta para casa. Que a gente não discutisse, se discutisse eram cobrados R$ 300 de multa.
A gente acordava às 4h da madrugada. Se ajeitava e ficava todo mundo do lado de fora. Eles chamavam os nomes pela lista. Apareciam as vans e iam chamando. Quem estava na lista entrava na van e eles levavam. Essa chamada ia até as 6h. A gente ficava de 4h até 6h lá, esperando.
A gente tinha que estar às 7h no parreiral, que é o lugar onde ficavam as uvas. Um tratorzinho levava a gente para dentro dos matos. Eles davam a camisa verde e a calça verde. A gente vestia essa roupa úmida e ia para dentro do mato, tirar uva.
Tinha produtor que dava pão, queijo e dava café. Mas tinha produtor que dava água de cisterna. Não dava água de geladeira, não dava água boa, não. Só água ruim, de poço.
‘A mente das pessoas estava virada. Eles só transmitiam raiva. Queriam dar choque nas pessoas, bater’.
A gente pegava o feijão, o arroz, a farofa, misturava tudo e botava a água, a água fria que levava. Jogava água fria dentro para não morrer de fome. Porque era farofa, não descia.
Eu fazia aquela goma e comia junto com a água, empurrando com a água. Os meninos que estavam comigo jogaram a comida toda fora. Eu peguei a minha, porque eu sabia que iria morrer de fome, entendeu? Eu já estava no vermelho, eu joguei água e comi assim mesmo.
Eu saí em paz da Bahia, sabe? Com desejo de trabalhar para pagar a dívida, ficar livre de dívida. Cheguei lá e minha mente praticamente se transformou. Minha mente ficou atribulada. O convívio lá com o pessoal era para atribular a mente mesmo. O ambiente não era bom. A mente das pessoas estava virada. Eles só transmitiam raiva. Queriam dar choque nas pesssoas, bater.
Agora, eu estou feliz. Feliz por ter sido resgatado de lá. A minha vinda de volta foi uma maravilha.
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