Samuel Costa/Hoje em Dia
Médicos cubanos em Minas
Acidente em 1986 resultou em 29 fraturas faciais
A “importação” de médicos cubanos gerou polêmica no país. Alguns profissionais brasileiros questionam a competência dos colegas daquela ilha do Caribe, mas o fato é que a medicina de lá já salvou a vida de quem, por aqui, não encontrou atendimento satisfatório. Que o diga o jornalista e administrador de empresas José Di Grisolia. 
 
Na véspera do Natal de 1986, o mineiro de Itabira (região Central do Estado) ganhou um belo presente de Papai Noel: a chance de nascer de novo. 
 
Naquele 24 de dezembro, o motorista de uma carreta com 18 rodas resolveu ultrapassar dois caminhões numa descida com leve curva na BR-116 (Rio-Bahia), entre Itaobim e Padre Paraíso, no Vale do Jequitinhonha. Sem freios, a carreta subiu sobre o Fiat Uno que Grisolia conduzia ao lado da mulher, Janine, grávida, e do filho Daniel, de apenas um ano e sete meses.
 
Naquele tempo, cinto de segurança não era obrigatório, é bom lembrar. Resultado imediato: adeus festa de Natal numa fazenda do Vale do Jequitinhonha, onde Janine festejaria também o aniversário.
 
Todo quebrado
 
“Sorte é que entrei em coma imediatamente. Taparam meu corpo com jornais, me dando como morto, e trataram de levar minha mulher e o filho para um hospital em Teófilo Otoni, a 2h30 do local do acidente”, conta hoje, em detalhes, Grisolia, pela primeira vez relembrando o que lhe disseram. 
 
Cerca de 12 horas após o acidente, ao retirarem o que sobrou do Uno sob a carreta, um policial rodoviário se espantou ao notar que Grisolia mostrava sinais de vida. Vivo, mas em coma. Foi também levado para Teófilo Otoni. Três dias depois, o então coordenador da Secretaria de Minas e Energia foi transferido de avião para Belo Horizonte.
 
As primeiras imagens radiográficas do Hospital Felício Rocho, na capital, logo apontaram o tamanho do estrago: 29 fraturas faciais, quase 20 em cada um dos braços, pelo menos 36 no tronco, 24 na coluna, várias na bacia, 32 na perna esquerda e quase 30 na direita. “Só não tive fratura na língua e na orelha, porque ali não tem osso”, brinca. 
 
Por quase dois anos, Grisolia permaneceu em coma, em vários hospitais de BH. Quando voltou ao mundo dos vivos, recebeu mais duas pancadas: “Temos duas péssimas notícias pra você: primeira, sua mulher e filho morreram. A segunda é que você só mexe o pescoço e nunca mais poderá andar”, disse um dos médicos. “O que não vai andar é a língua de vocês, porque eu vou”, retrucou o paciente. 
 
Condição de tetraplégico superada na ilha caribenha
 
A partir do diagnóstico dos médicos brasileiros, começou outra maratona hospitalar de José Di Grisolia, dentro e fora do país. Quando ia da Alemanha para Moscou, na Rússia, o diretor da Escola Paulista de Medicina, professor José Laredo Filho, enviou os exames dele para Cuba. Grisolia estranhou: “Mas Cuba?”.
 
Enquanto aguardava a avaliação dos profissionais cubanos, Grisolia recorreu ao médium Chico Xavier e aos paranormais Ricardo Aduanes (mais conhecido como doutor Fritz) e Zé Arigó. Depois das “cirurgias espirituais”, veio a boa notícia de onde ele menos esperava. Nas mãos do professor Laredo, o chamado de Cuba. “Que venha José. Ele sairá de Cuba curado e caminhando”. Grisolia voltou a indagar, ainda ressabiado. “Mas Cuba?”.
 
Renovado
 
Até 1986, os brasileiros pouco sabiam sobre Cuba, a não ser muitas informações deturpadas, fruto da Guerra Fria (1945-1991). Mas, no fim daquele ano, o Governo Sarney decidiu reatar relações diplomáticas entre Brasil e Cuba, acabando por abrir as portas daquele país a Grisolia, que ficou nas terras cercadas por águas (o que, segundo ele, fora preconizado por Chico Xavier) durante 13 anos, sem contar as idas e vindas para uma cirurgia ou outra, após desembarcar na terra de Fidel Castro no início de 1988. 
 
Após a quinta cirurgia, numa bela madrugada, o tetraplégico Grisolia acordou demais pacientes e enfermeiros de um dos três melhores hospitais ortopédicos do mundo, o Internacional Frank País, com emocionados gritos de “tá mexendo, tá mexendo!”. 
 
O corpo do mineiro começava, então, a dar os primeiros sinais de movimento. Um ano e meio depois de chegar a Cuba, Grisolia começou a caminhar. “Estava igualzinho a um robô”, lembra. Depois de 71 cirurgias, ele voltou ao Brasil, contrariando as previsões dos médicos compatriotas. Agora, faltam apenas três intervenções, o que não impede o mineiro de caminhar quando bem entende e até de circular pelas ruas de BH dirigindo.
 
Tratamento para melhorar a visão decepcionou pacientes
 
A empresária mineira Beth Pimenta, ex-dona da Água de Cheiro, tem quatro dos nove irmãos portadores de retinose pigmentar hereditária, caso raro na medicina, uma vez que a doença afeta uma entre 5 mil pessoas. 
No início dos anos 1990, o engenheiro civil e economista Ricardo da Cunha Pimenta teve esperança pela primeira vez ao ouvir o nome do oftalmologista cubano Orfilio Pelaez Molina, que já havia conseguido estacionar 75% dos casos de retinose e melhorar a visão dos pacientes que atendeu.
 
Ricardo acabou abrindo as portas de Cuba para o tratamento de outros irmãos, Carlos Alberto e Renato. Ambos já não enxergavam praticamente nada. 
 
Em busca de mais informações e, claro, tratamento, Beth e Ricardo rumaram para Cuba com os dois irmãos em duas ocasiões –1992 e 1994. Chegaram a Cuba num momento de profunda crise. O país não podia mais contar com a ajuda econômica da União Soviética, recém-desmantelada, e a estrutura precária da Clínica Cira Garcia deixou má impressão. “Eles estavam no fundo do poço”, lembra Beth.
 
Mesmo assim, o advogado Carlos Alberto e o irmão Renato se submeteram ao tratamento. “Eles tiravam um tanto de sangue com um cateter e depois o sangue retirado voltava para a veia com ozônio. Mas nada adiantou. Eles prometiam estabilizar a doença, mas o caso dos dois estava muito avançado, nada viam, só notavam a presença da luz”, lamenta Ricardo.
 
CRM-MG é contra 
 
Crítico ferrenho do “Mais Médicos”, o presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas (CRM-MG), João Batista Gomes Soares, diz ser contra o programa porque a iniciativa foi implementada pelo governo federal via Medida Provisória. 
 
“É uma medida de força. Se os médicos estrangeiros passassem pelo revalida, com provas técnica e de proficiência linguística, não teria problema, conforme a legislação vigente”. Outro problema seria o número elevado de estrangeiros que seriam absorvidos pelo Brasil. “Estão dando preferência para os cubanos enquanto muitos brasileiros inscritos não são chamados”, observou o presidente do CRM-MG. 
 
Só 47% dos médicos formados no Brasil, porém, se apresentaram para trabalhar após serem selecionados na primeira fase do programa federal.
 
Modelo de saúde é endossado pela OMS
 
O modelo de saúde pública cubano é recomendado para o mundo pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Mas nem sempre foi assim. Após a revolução, em 1959, metade dos médicos deixou o país, seguindo, sobretudo, para os Estados Unidos. Ficaram apenas 3 mil médicos e 14 professores, como lembra a socióloga norte-americana Julie Feinsilver, estudiosa do assunto. 
 
Foi aí que o médico e revolucionário argentino Che Guevara orientou a implantação de um sistema comunitário com a adoção da medicina preventiva. Resultado: hoje Cuba tem o maior número de médicos per capita – 6,7 para cada mil habitantes –, três vezes maior do que a taxa norte-americana. 
 
No Brasil, o índice é de 1,8 médico para mil habitantes. Na Argentina, a proporção é 3,2. Em países como Espanha e Portugal, a relação é de 4 médicos para cada mil. 
 
Há vários anos, Cuba envia profissionais em missões de solidariedade a muitos países, como ocorreu no Haiti devastado pelo terremoto de 2010. Na ilha caribenha há 25 faculdades de medicina (todas públicas) e uma Escola Latino-Americana de Medicina, onde estudam estrangeiros de 113 países, inclusive do Brasil. 
 
Atualizada às 15h10