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ESTATUTO DA TERRA
Lei da ditadura que estabeleceu função
social da propriedade
completa 55 anos
Regras elaboradas no 1º ano do golpe militar trouxeram
contradição entre reforma agrária e modernização conservadora
Rafael Tatemoto
Brasil de Fato | Brasília (DF) | 30 de Novembro de 2019 às
10:06
A questão da concentração de terras no Brasil é uma
preocupação recorrente em nossa história política. Desde antes da
Independência, o tema já era tratado, por exemplo, por José Bonifácio. A
distribuição de terras figurou entre as bandeiras de parte do movimento
abolicionista, no final do século 19. Nos anos 1960, a reforma agrária estaria
no centro dos embates nacionais.
Com o surgimento de diversos sindicatos de trabalhadores
rurais e das Ligas Camponesas – que tinham como lema “Reforma Agrária na lei ou
na marra” --, a questão do acesso à terra passa a integrar a plataforma do
presidente João Goulart, com as chamadas reformas de base. Contra esse conjunto
de medidas, há uma reação que desemboca no golpe civil-militar de 1964.
De forma intrigante, uma das primeiras medidas legislativas
do governo Castelo Branco foi justamente uma lei sobre reforma agrária: o
Estatuto da Terra, promulgado em 30 de novembro de 1964. Além da questão
fundiária, o texto, ainda em vigor, estabelece também mecanismos de política de
desenvolvimento agrícola.
O engenheiro agrônomo Luiz Carlos Guedes Pinto, ex-ministro
da Agricultura, era estudante universitário na ocasião da edição do estatuto.
Depois de formado, conheceria diversos acadêmicos e técnicos que participaram
da redação da lei. Ele aponta que, entre os integrantes do grupo de trabalho
que deu origem ao texto, havia intelectuais favoráveis a alguma espécie de
reforma agrária.
Motivações
A razão para que a ditadura assumisse tal projeto,
entretanto, ainda é duvidosa. Pinto menciona ao menos duas interpretações. A
primeira diz respeito ao perfil de Castelo Branco, general de origem cearense
que, enquanto comandante do então 4º Exército, sediado em Recife, fez um curso
sobre reforma agrária. Outra linha interpretativa é a de que a reforma agrária
dizia – e ainda diz – respeito a um problema social concreto, sobre o qual os
militares desejavam dar alguma sinalização.
Se não há consenso sobre as razões para sua origem, há
bastante acordo entre especialistas sobre os efeitos concretos do Estatuto da
Terra para a reforma agrária. Ou melhor, a ausência deles.
Pinto indica que os problemas começaram durante a própria
concepção do Estatuto da Terra, originalmente pensado apenas para ser uma lei
de reforma agrária. Na realidade, desde o início dos debates no grupo de
trabalho que elaborou o projeto essa tensão se fez presente.
“Começam as pressões sobre o grupo para limitar as propostas
da lei, para reduzir o poder de intervenção. Foram feitas algumas concessões
para incluir dispositivos relativos ao desenvolvimento agrícola. Tem um
primeiro retrocesso já na elaboração da lei”, diz.
Modernização conservadora
Nicinha Porto, presidenta da Associação Brasileira de
Reforma Agrária (Abra), entende que o duplo caráter do texto gerava uma
contradição na prática, que acabou beneficiando o lado do desenvolvimento
agrícola pelo viés da colonização de novas áreas com base em grandes
propriedades. O efeito foi o inverso da reforma agrária.
“Ele [estatuto] foi ignorado [no tocante às regras para a
reforma agrária]. Nós tivemos o desenvolvimento da modernização conservadora da
agricultura do ponto de vista produtivo, que produziu os grandes latifúndios”,
defende.
A explicação para a dominância da política agrícola
conservadora a partir do estatuto, na visão de Porto, reforça a ideia de que o
principal empecilho para a reforma agrária, mais do que tudo, é político e
social, e não legal.
“Se não houvesse uma pressão política contrária à reforma
agrária tão forte, eu acredito que seria possível realizar, não uma reforma
agrária massiva, mas uma ação muito mais consistente do que foi feito, com a
legislação que a gente tem”, lamenta.
Pinto faz a mesma avaliação. “Na prática, com as forças
sociais que estão presentes na sociedade como um todo, mas sobretudo no
Congresso Nacional, há alguns avanços, mas nunca houve condições para se
colocar em prática um programa efetivo que mudasse a estrutura agrária do país.
Até hoje”, aponta.
Legado
Apesar da inefetividade, o Estatuto da Terra apresenta
ideias que seriam consolidadas na Constituição de 1988, como a função social da
propriedade. Ironicamente, a família Bolsonaro é uma das principais promotoras
da relativização do conceito posto pelos militares na legislação.
Criticada por juristas, a PEC Nº 80, de 2019, tem como alvo
justamente flexibilizar os critérios para a averiguação de cumprimento da
função social.
Edição: Aline Scátola
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