O Ministério da Justiça chamou atenção para a 'gravidade' da declaração e pediu que ela fosse investigada por injúria
O Ministério da Justiça chamou atenção para a ‘gravidade’ da declaração e pediu que ela fosse investigada por injúria. Na portaria que abriu a investigação, em março, o delegado Fábio Alvarez Shor mobilizou o Núcleo de Contrainteligência Cibernético da Polícia Federal para identificar a médica e levantar os dados cadastrais registrados nas contas usadas por ela no Twitter e no Instagram, inclusive com disparada de ofícios às empresas de tecnologia.
O caso foi levado ao STJ depois que a jovem foi intimada a prestar depoimento, no último dia 12, e foi informada da investigação em andamento. Os advogados Nauê Bernardo Pinheiro de Azevedo e Isaac Pereira Simas entraram então com o pedido de habeas corpus.
Ao analisar o recurso, o desembargador Olindo Menezes, convocado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região ao Superior Tribunal de Justiça, entendeu que, apesar da ‘expressão inadequada, inoportuna e infeliz’, não há indícios de crime na publicação.
"Verifica-se, por meio dos autos, que foi aberto inquérito policial, e determinadas várias medidas drásticas de invasão à privacidade, excepcionalmente permitidas nas apurações dos graves crimes, o que não é o presente caso", escreveu.
"Não obstante a discordância que possa surgir em relação ao comentário da paciente, de uma breve análise de seu conteúdo não se faz possível extrair a lesão real ou potencial à honra do Senhor Presidente da República, seja porque não se fez nenhuma referência direta à esta autoridade, seja porque não expressou nenhum xingamento ou predicativo direto contra a sua pessoa, situação em que se faz presente o constrangimento ilegal em razão da abertura da investigação em foco", acrescentou.
Na mesma decisão, tomada na última sexta-feira, 21, o magistrado pediu esclarecimentos ao Ministério da Justiça e à Polícia Federal.
COM A PALAVRA, OS ADVOGADOS NAUÊ BERNARDO PINHEIRO DE AZEVEDO E ISAAC PEREIRA SIMAS, QUE REPRESENTAM A MÉDICA
A defesa da Paciente nos autos do Habeas Corpus declara, para os devidos fins:
a) A Paciente não teve e não tem a intenção de direcionar ofensas a quem quer que seja. Seus dias tem sido deveras atribulados em virtude da pandemia, que hoje mata cerca de 2000 mil pessoas por dia. Em seu pouco tempo livre, tudo o que ela deseja é se isolar um pouco dessas notícias horrorosas que viraram uma triste e comum rotina na vida de profissionais de medicina e de toda a sociedade brasileira;
b) A frase proferida pela Paciente em um tweet de outubro de 2020, alvo da controvérsia, sequer menciona, ainda que indiretamente, o Senhor Presidente da República ou qualquer outra pessoa pública, com ou sem mandato;
c) Dito isto, é completamente injustificável a verdadeira devassa que a Paciente sofreu em sua vida pessoal, tratamento reservado a criminosos da pior estirpe. Isso, associado ao tratamento de uma multidão de pessoas que parecem estar povoando as redes sociais única e exclusivamente para exterminar a reputação daqueles que eles pensam serem críticos aos seus ídolos, causou extremo dano psicológico a ela, com consequências que ainda estão sendo tratadas;
d) Não por menos, a brilhante decisão do MM. Ministro Olindo Menezes também apontou outro fato importantíssimo: o ato como um todo não respeitou o devido processo legal, uma vez que a prática criminosa a ela direcionada sequer representa crime com potencial ofensivo suficiente para desencadear uma investigação com esse porte;
e) Forte nessas razões, a defesa espera que o E. Superior Tribunal de Justiça confirme a decisão liminar conferida pelo MM. Ministro Olindo Menezes, e, no mérito, tranque essa absurda e injustificada investigação policial, utilizada apenas como meio de perseguição contra uma pessoa que sequer possui condição de fazer qualquer crítica sua reverberar de forma relevante;
f) E, mais do que isso: que o Poder Judiciário contribua para enterrar definitivamente tais determinações de abertura de inquéritos, por parte de qualquer governo que seja, em face de críticas direcionadas a seus componentes, uma vez que há uma linha muito expressa entre a crítica ponderada, abarcada pela liberdade de expressão, e o crime. O Brasil ainda vive um Estado Democrático de Direito, que não tolera perseguições disfarçadas de procedimentos investigatórios contra críticos de governos. O estado de coisas atual do Brasil inspira preocupações muito maiores para nossas forças policiais, Ministério Público e Poder Judiciário, já extremamente sobrecarregados, do que jovens ou jornalistas que manifestam suas opiniões de forma crítica e justa nas redes sociais ou nos meios de mídia
Controle às armas nos EUA esbarra em fatores históricos e estruturais
Professores Robert Sean Purdy e Maurício Stegemann Dieter investigam o histórico das armas e analisam as dificuldades para diminuir índices de mortes causadas por armas de fogo no país norte-americano
Segundo levantamento feito pelo Gun Violence Archive, os Estados Unidos tiveram, até maio de 2021, uma média de três ataques a tiros a cada dois dias. Foram 194 registros até o dia 10 de maio. O presidente Joe Biden classificou os já tradicionais tiroteios em massa como uma verdadeira “crise de saúde pública”. Assim, mais uma vez são retomadas as discussões sobre um controle mais amplo às armas nos Estados Unidos.
No país, o direito ao porte individual de armas é garantido na Constituição norte-americana a partir da Segunda Emenda, que entrou em vigor no ano de 1789. O texto coloca “uma bem regulamentada milícia sendo necessária para a segurança de um Estado livre, o direito das pessoas de manter e portar armas não deve ser infringido”.
Após mais de dois séculos, os efeitos aparecem de forma clara. Os Estados Unidos possuem cerca de 330 milhões de habitantes, enquanto que a quantidade de armas de fogo presente em seu território é de quase 400 milhões. Contudo, é pouco mais de um terço das famílias de sua população que de fato possui o porte de armas, de acordo com dados de 2017 do General Social Survey.
Cultura armamentista
Perguntado, o professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo Robert Sean Purdy afirma ser possível dizer que existe em parte da sociedade estadunidense uma cultura armamentista à qual ele atribui questões históricas. “Os Estados Unidos estão em guerra constante desde sua fundação como República, primeiro contra os povos indígenas, depois armas foram usadas para controlar os escravos, depois em intervenções imperialistas ao redor do mundo, etc. Quando você tem uma economia de guerra permanente, tudo isso contribui.”
“Esse debate sobre a independência em relação ao império britânico se transformou em uma resistência dos Estados contra o federalismo. Nesse ponto, o direito de portar armas, muito parecido com o direito de executar a pena de morte, se transforma em um símbolo de afirmação da independência estatal nos Estados Unidos. Não se trata de abrir uma brecha, se trata de um direito constitucional cujo exercício deve ser regulamentado”, complementa o professor Maurício Stegemann Dieter, da Faculdade de Direito da USP, lembrando do caráter federalista dos Estados Unidos e apontando a importância de regulamentar e fiscalizar um direito constitucional como é o de portar armas.
É preciso lembrar, porém, que hoje os Estados Unidos não vivem o seu auge no que se refere à posse de armas. Ainda com base nos dados da General Social Survey, o período de tempo com o maior número de famílias em posse de armas foi entre as décadas de 1960 e começo de 1990, com esse número chegando a quase metade das famílias. Hoje, é possível estabelecer uma recessão maior com alguns picos. Estes, por sua vez, aparecem principalmente em momentos de crise.
Sintomas de uma crise
“O debate sobre armas é muito alimentado com a questão de chacinas e massacres públicos, mas há uma distorção, porque a maioria dos homicídios por armas não acontece em escolas, lugares de trabalho etc., e o fato é que nenhuma dessas medidas de controle de armas, por exemplo, é feita onde está acontecendo a maioria dos homicídios por armas”, relata o professor Purdy.
Em outras palavras, apesar de consideráveis, os massacres e tiroteios com vítimas em série, que já apareceram tantas vezes nos jornais, não constituem a maioria dos casos com armas de fogo nos Estados Unidos. Críticos do controle de armas apontam para um estudo de 2016, segundo o qual de 2000 a 2014 o número de mortes em assassinatos em massa nos EUA foi de 1,5 por milhão de pessoas. Na Suíça, o índice foi de 1,7 e na Finlândia, de 3,4. Especialistas enxergam, portanto, que há um componente que prevalece mais nesse cenário: o de suicídios.
“Os Estados Unidos têm um grande problema com excesso de armas de fogo, do qual os mass shootings são talvez a face mais cruel e mais visível. Porém, é consenso na criminologia que o aumento no número de armas por civis só tem uma consequência, que é previsível em qualquer recorte histórico ou contextual: o aumento do número de suicídios. O aumento da letalidade na violência interpessoal depende de outras determinações”, aponta o professor Stegemann.
A estimativa anual de mortes por suicídio cometidas com armas de fogo nos Estados Unidos é de 23 mil pessoas, segundo levantamento do Everytown for Gun Safety Support Fund.
Combate difícil
É consenso que a ampla presença de armas nos Estados Unidos passa por uma questão estrutural e até instrumental. O professor Purdy, que leciona História dos Estados Unidos na USP desde 2006, lembra de episódios relevantes: “Historicamente, o controle de armas tem sido usado contra a população negra nos Estados Unidos. Quando os Panteras Negras usaram o seu contexto constitucional de andar com armas nos Estados Unidos, começando no Estado da Califórnia, Ronald Reagan, que era governador na época, instituiu um maior controle de armas, não por causa de violência, mas para minar o argumento dos Panteras Negras”.
As medidas mais recentes de Joe Biden – que devem incluir um controle à montagem autônoma de armas, incentivos a organizações e ao sistema de fiscalização – podem mostrar um caminho promissor, mas esbarram em um cenário em que o consumo às armas já é enraizado em setores sociais relevantes. No Congresso, por exemplo, analistas não enxergam um caminho tão promissor para que as medidas de Biden de fato passem. Por essa razão, o presidente deve usar decretos executivos.
Para ilustrar o cenário, o professor Purdy explica como se dá a defesa às armas na sociedade americana: “Os defensores de armas nos Estados Unidos são em grande parte brancos, são pessoas que têm ideias conservadoras, ligadas à ascensão do neoliberalismo e ao novo conservadorismo nos Estados Unidos desde os anos 1970, com os governos dos republicanos. E quem é contrário são pessoas ligadas aos movimentos sociais, às comunidades negra e latina, pessoas envolvidas em causas progressistas, sindicatos”.
A indústria armamentista
Nos Estados Unidos, a Lei de Proteção ao Comércio Legal de Armas protege a indústria de armas de quase toda responsabilidade civil pelos efeitos que seus produtos possam representar. Efetivada em outubro de 2005, a lei dificulta ações de responsabilidade civil sobre a indústria das armas.
Outro obstáculo aparece dentro do Congresso dos Estados Unidos. Dois terços dos americanos apoiam leis mais restritivas para a obtenção de uma arma de fogo, segundo a pesquisa USA Today/Ipsos. A resistência vem de congressistas republicanos que se opõem veementemente a limitar “o direito de portar armas”.
O professor Purdy enxerga grande influência da National Rifle Association (NRA, Associação Nacional do Rifle, em português), organização fundada em 1871, cuja influência na política americana é grande no lobby pelas armas.
“Ninguém (entre republicanos e democratas) está questionando os fundamentos das raízes de violência nos Estados Unidos. Isso tem muito a ver com fatores como as Forças Armadas, o imperialismo, racismo, etc., então me parece que somente o movimento social, de cidadãos comuns, que fazem demandas, que vai reduzir o número de armas, o poder da NRA, o poder da indústria armamentista, a violência de armas, além de coisas gerais como a própria reificação de violência na cultura norte-americana”, aponta o professor.
Armas no Brasil
A alguns milhares de quilômetros encontra-se o Brasil. O atual presidente Jair Bolsonaro já demonstrou de forma recorrente suas intenções de armar a população. Muitas vezes, a justificativa é de protegê-la de um possível golpe antidemocrático. Em um contexto de pandemia, ele já mencionou que armas poderiam fazer frente ao poder de políticos no âmbito estadual.
Nos Estados Unidos, é comum que grupos armados usem como motivação a ideia de autodefesa contra um governo superpoderoso. Segundo a Liga AntiDifamação (ADL), 42% dos 150 ataques terroristas provocados pela extrema-direita nos EUA, entre 1993 e 2017, foram cometidos por ativistas antigoverno, incluindo membros do Movimento das Milícias.
O professor Purdy vai além e atribui outros paralelos possíveis: “Eu acho que muitas das mesmas coisas estão em jogo aqui. Questões do policiamento ostensivo contra populações pobres e negras aqui no Brasil, machismo, feminicídio. Dar mais armas à população é armar as milícias no Brasil. Já temos visto recentemente, com pessoas como Roberto Jefferson (presidente do Partido Trabalhista Brasileiro), por exemplo, com fuzil, falando sobre a necessidade de armas para se proteger, etc. Então, seria um desastre. Eu vejo muitas das mesmas questões envolvidas nos Estados Unidos e no Brasil”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário