Em vídeo, Ronaldo Bandeira aparece recomendando usar spray de pimenta contra pessoa rendida. À Ponte, disse que situação foi “fictícia” e “tirada de contexto”. Genivaldo de Jesus foi morto por agentes da PRF usando método semelhante
Um vídeo com o trecho de uma das aulas ministradas pelo professor e policial rodoviário federal Ronaldo Braga Bandeira Junior, 33, viralizou na tarde desta sexta-feira (27/5). Nele, aparece descrevendo uma situação em que houve a prisão de uma pessoa e diz que estava na parte de trás da viatura. “Nesse ínterim, ele ainda tentou quebrar o vidro da viatura com chutes, ficou batendo o tempo todo”, diz. “E o que a polícia faz?”, questiona, com um sorriso no rosto.
Em seguida, ele abaixa o microfone de perto da boca, fala baixo “pega o spray de pimenta” e faz o gesto de jorrar o frasco e dá risada. “Foda-se, caralho, é bom para caralho, a pessoa fica mansinha”. Depois, continua: “daí eu só escuto ‘vou morrer, vou morrer, aí eu fiquei com pena. Abri assim [o porta-malas]: tortura!”. É possível ouvir risos de fundo na filmagem. O vídeo termina com ele dizendo “sacanagem, fiz isso não”.
As imagens da aula são divulgadas na mesma semana em que aconteceram dois episódios de violência envolvendo a PRF: chacina da Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, que vitimou 26 pessoas em uma operação conjunta com o Bope, a tropa mais letal da Polícia Militar do Rio de Janeiro e o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos, homem negro com esquizofrenia que morreu por asfixia ao ser algemado e prensado dentro de uma viatura com gás. Além disso, a revista piauí publicou artigo, nesta sexta-feira (27), de pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, de que o governo Bolsonaro eliminou disciplina de Direitos Humanos em cursos preparatórios de formação de policiais rodoviários federais e reduziu para apenas quatro horas de aulas presenciais sobre uso diferenciado da força.
Para o advogado, membro do Movimento Nacional de Direitos Humanos e presidente do Grupo Tortura Nunca Mais Ariel de Castro Alves o conteúdo é “uma aula criminosa” e que pode ser enquadrado em apologia e incitação ao crime e que precisa ser investigado. “Ele faz apologia de uma situação de tortura da qual ele protagonizou e por estar instruindo os alunos a praticarem torturas”, avalia.
À reportagem, Ronaldo Bandeira, que atua na PRF de Santa
Catarina, disse que o vídeo é de 2016, época em que trabalhava na AlfaCon
Concursos, empresa de cursos preparatórios para ingresso em concurso público
que a Ponte já revelou, em 2019, ter professores que ensinavam táticas de
tortura. Desde que a reportagem denunciou as aulas, não houve punição.
Segundo ele, que não trabalha mais na AlfaCon e tem sua própria empresa de cursos preparatórios, o vídeo “foi tirado de contexto” e o exemplo foi uma “brincadeira de mau gosto”. “Foi uma brincadeira de mau gosto, um exemplo fictício, mas eu não corroboro e eu não fiz o fato, vou deixar isso bem claro, nunca agi dessa forma”, declarou. “Foi um exemplo que eu dei em sala, explicando acerca da lei 9455, e inclusive no final, foi recortado do vídeo, se você ver o até o final, eu falo ‘gente, se trata de uma brincadeira, de um caso fictício, eu nunca fiz isso”. A lei que ele menciona trata dos crimes de tortura.
A reportagem pediu a íntegra do vídeo a ele, mas o policial disse que acredita que deve ter sido excluído e que iria verificar se tinha o arquivo. “Esse era um exemplo dado para fixar na cabeça do aluno o que não se deve realmente fazer, um exemplo que pode incorrer na prática da lei 9455, inclusive, a gente utiliza de exemplos de forma didática, muitas vezes sarcástica, para deixar claro para o aluno o que não se deve fazer e que podem responder criminalmente por isso”, justificou.
Perguntamos a Ronaldo sobre os casos recentes de violência envolvendo policiais rodoviários federais, mas ele disse que não poderia se manifestar. “Eu prefiro não me pronunciar ao fato dos colegas e que isso fique a cargo da instituição se pronunciar oficialmente”.
A Alfacon, escola onde foi gravado o vídeo de Ronaldo, se tornou conhecida depois de vídeos com professores “ensinando” diferentes técnicas de tortura em seus cursinhos preparatórios para concursos policiais. O presidente Jair Bolsonaro (PL), durante a sua campanha em 2018 gravou vídeo direcionado aos alunos da escola, e foi em uma aula da Alfacon em julho de 2018 que o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), filho do presidente, declarou que bastariam “um cabo e um soldado” para fechar o STF (Supremo Tribunal Federal).
A escola, que pertence ao bilionário grupo Cogna
(ex-Kroton), foi alvo de investigação pelo Ministério Público pelos possíveis
crimes de Evandro Bitencourt Guedes, presidente da escola, e Norberto Florindo
Júnior, professor de direito.
Norberto, conhecido como “professor caveira”, exalta em suas aulas ter feito chacinas quando era PM em São Paulo. “Por isso quando eu entrava chacinando eu matava todo mundo: mãe, filho, bebê, foda-se! Eu já elimino o mal na fonte”, afirma em uma das aulas. Entre os ensinamentos do docente, que já foi acusado de posse de cocaína em seus tempos de PM, estão a tortura e a omissão de socorro.
“Bandido ferido é inadmissível chegar vivo ao pronto-socorro. Só se você for um policial de merda. Você vai socorrer o bandido, como?! Com esta mão, você vai tampar o nariz e, com esta, a boca. É assim que você socorre um bandido”, explica em um dos vídeos. Em outro, Norberto se vangloria de sua ficha de “baixas”: “São 28 [homicídios] assinados, um embaixo do outro, mais uns 30 que não assinei [risos]. Vai se foder, já prescreveu tudo! Foda-se, não estou nem aí”.
Evandro usa suas aulas para mostrar ao alunos da AlfaCon
como deve mentir para enquadrar uma morte em legítima defesa. “Você pega uma
criança: ‘fala que o cara estava armado que eu dou um doce’”, diz. Em uma aula, ele conta quando jogou uma bomba
dentro de uma cela cheia de presos em revide por ser xingado. “Tem uma granada
de luz e som que você só pode jogar a uma quadra, não pode em local confinado.
Falei para dizer de novo e o cara falou. Joguei lá e fechei”, conta. “Não foi
uma boa ideia, mas todo mundo ficou quieto. Teve uns probleminhas, alguns
ouvidos estourados e pessoas machucadinha, mas o controle foi feito. Eu sempre
amei fazer isso”, confessa.
O fundador da AlfaCon ainda caçoa de um hipotético caso de
assassinato de uma transsexual para explicar feminicídio. “Eu estou metendo no
rabão dele, bonitinho, dei um tiro na cara do traveco. Tem peru, tem?! Não é
feminicídio, não. Travesti sem pinto? Feminicídio”, diz em gravação. Além de
preconceituosa, a declaração revela que o professor está ensinando errado aos
seus alunos: a identidade trans não tem relação com os genitais e a Justiça tem
enquadrado crimes contra transexuais, como mulheres trans e travestis, como
feminicídios.
A Ponte questionou a PRF de Santa Catarina sobre o vídeo e a formação dos agentes, mas não teve resposta até a publicação. A reportagem entrou em contato com o Ministério Público para entender a situação atual das investigações contra a Alfacon, mas também não teve resposta.
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