Jogador de seleção, Perivaldo perdeu tudo e morava nas ruas de Lisboa. Até que trombou com um comediante..
BERNARDO GENTILE
DO UOL, NO RIO DE JANEIRO
Se os caminhos de Perivaldo e Nilton Rodrigues não tivessem
cruzado, muito provavelmente o final da história que você está começando a ler
seria completamente diferente. Foi o humorista português quem descobriu o
ex-lateral da seleção em Lisboa.
O ano era 2012. Nilton foi às ruas para gravar um quadro de
humor em que abordava quem passava pela rua e perguntava se "eram o
Fernando". Um personagem logo se sobressaiu aos demais. Era um negro
esbelto, com tranças e de boné. Com uma jaqueta e um jeito todo peculiar de
caminhar. Abordado pelo humorista, o até então anônimo Perivaldo entrou na
brincadeira -depois de cobrar alguns euros em contrapartida.
"Só soube depois de passar o vídeo no meu talk-show e o
pessoal começou falando que era ele. Na verdade, para mim foi só um homem com
muita graça e que deu boa contracena na minha brincadeira", disse o
humorista ao UOL Esporte.
"Depois fui procurar por ele e o encontrei na Baixa de
Lisboa e aí o confrontei. No início, ele negava. Mas como eu chamei Lúcio, ele
acabou por admitir. Então fiz entrevista mais séria em que falou que gostaria
de voltar ao Brasil novamente, que tinha família, mulher, filhos",
relembra Nilton."Ele falou que não tinha onde dormir e eu paguei 1 mês de
quarto para ele", completa.
Naquele dia, os portugueses descobriram que um jogador que
brilhou até com a camisa da seleção brasileira morava nas ruas de sua capital.
E foi a partir deste contato que começou uma operação de salvamento que
devolveu Perivaldo a sua terra natal.
Como Perivaldo perdeu tudo e foi morar na rua?
Para entender a história, é preciso voltar para 1976.
Perivaldo era jogador do Bahia quando ganhou sua "Bola de Prata" da
revista "Placar", dado ao melhor lateral direito do Brasileirão.
Nessa altura, ele já havia entrado até na lista de 40 selecionáveis do Brasil
do técnico Brandão
Nesse momento, Perivaldo da Pitú era um dos jogadores mais
cobiçados do futebol brasileiro. Justamente por isso, o Botafogo teve que agira
rápido para fechar com o baiano. Em janeiro de 1977, o presidente Charles Borer
partiu rapidamente para Salvador com o objetivo de chegar antes que Cármine
Furletti, representante do Cruzeiro, também interessado.
Borer chegou à capital baiana com um cheque robusto: 1
milhão e 400 mil cruzeiros -o equivalente a R$ 2 milhões atuais, mas em um
mercado em que se pagava muito menos no futebol. A documentação já estava toda
pronta. Para seduzir de vez Perivaldo, o cartola assinou mais dois títulos, com
vencimentos para 30 e 60 dias, no valor de 300 mil cruzeiros (R$ 443 mil em
valores corrigidos) cada.
Mascarado, roupas extravagantes e carros de luxo
Perivaldo chegou a um Botafogo pressionado pelo jejum de
títulos — foram 21 anos de seca, entre 1968 e 1989. Mesmo sem ser campeão, o
lateral fez sucesso dentro e fora de campo. Com um salário bom na época, não
resistiu às tentações e passou a gastar com roupas e carros. Os tempos de
dificuldade vividos na Bahia ficaram no passado.
A vontade de se vestir bem e ter carros do ano fez com que
Perivaldo ficasse conhecido na imprensa esportiva carioca da época como
"mascarado". O baiano não se importava. Chegava aos treinamentos com
seu possante Puma cantando pneus. Fazia o que queria sem se importar com as
opiniões alheias.
Aos 27 anos, divorciado e vaidoso, Perivaldo era claro em
uma entrevista em 1981 à revista Placar. "Quando eu era criança, morria de
vontade de me vestir bem? Agora, estou anos à frente da moda brasileira e não
imito ninguém", disse. "Não gosto da moda de Paris, nem de Londres.
São muito manjadas. Prefiro curtir o que trago de outros países, como, por
exemplo, Colômbia e Curaçao", completou.
Foi essa ostentação e a falta de planejamento com o futuro
que cobrou um preço bastante caro no fim da vida de Perivaldo. O dinheiro que
recebia jamais foi investido em algo que desse retorno. Era gasto sempre em
roupas, bebidas e carros esportivos.
Rivalidade com Leandro e Edevaldo pela seleção
Perivaldo poderia ter tido uma vida longa na seleção
brasileira. O problema é que havia uma forte concorrência em sua posição.
Leandro, do Flamengo, era o titular. Edevaldo, do Fluminense e depois
Internacional, brigava diretamente com o botafoguense pela segunda vaga.
A personalidade atrapalhava. Perivaldo era sabidamente um
jogador mais completo, mas o relacionamento com alguns companheiros (e até
membros da comissão técnica) era complicado. Mesmo assim, viveu um bom período
com a camisa amarela.
A torcida do Botafogo tinha até um grito para esse assunto:
"Não tem Leandro, nem Edevaldo, o lateral da seleção é Perivaldo!".
Na seleção, seu momento de maior brilho foi evitar um gol que daria vitória a
Checoslováquia, no Morumbi — a bola já se encaminhava para a meta sem goleiro e
o lateral deu uma bicicleta em cima da linha.
Apesar da qualidade, ficou de fora da lista final da Copa do
Mundo de 1982. Ele perdeu a disputa para Leandro e Edevaldo, o que gerou uma
grande polêmica na época.
O lateral de 100 milhões
A história de Perivaldo no Botafogo acabou em 1982 quando
foi vendido para o Palmeiras por 100 milhões de cruzeiros — o equivalente a R$
10,3 milhões atualmente, cinco vezes mais do que o Botafogo pagou para tirá-lo
do Bahia. Mas sua passagem pelo Parque Antártica não foi nada feliz.
Perivaldo sofreu uma grave lesão durante a pré-temporada e
viu Vágner Bacharel ser improvisado na sua posição. Para sua surpresa, seguiu
no banco de reservas quando retornou aos gramados.
Inconformado com o banco de reservas, pediu para ser
negociado. Era mais uma forma de reivindicar sua posição de titular do que o
desejo de realmente deixar o clube. O problema é que do outro lado estava
Rubens Minelli, também de personalidade forte, e que não pensou duas vezes: deu
o recado que Perivaldo jogaria pouco se seguisse no Palmeiras. Dito e feito.
Sem ambiente no clube, seus direitos foram negociados com o Bangu Atlético Clube em 1984. Foram apenas 43 participações pelo Alviverde com 17 vitórias, 19 empates e 7 derrotas, segundo o "Almanaque do Palmeiras".
Fim da carreira na Coreia
Depois do curto período no Palmeiras, Perivaldo conseguiu
dar a volta por cima no Bangu. Foi justamente isso que o colocou na mira do
futebol coreano. Assinou contrato de duas temporadas com o Yukong Elephants,
mas não estava feliz no país asiático.
Para deixar a Coréia do Sul, abriu mão de um gordo contrato.
Recebia em dólar e teria tranquilidade financeira por vários anos. Anos depois,
admitiu que foi nesse momento que sua vida começou a tomar um rumo inesperado.
"Foi uma das maiores besteiras da minha vida. Eu tinha
um contrato de 100 mil dólares lá em Seul. Ganhava bem, uns 9 mil dólares por
mês, era muito dinheiro. Mas rescindi o meu contrato, voltei para o Rio e me
disseram para vir para cá, para Lisboa, que ia aparecer um clube. Nunca
apareceu nenhuma proposta boa e eu fui ficando, fui me acomodando e trabalhando
aqui e ali", disse ao Fantástico.
Se eu tivesse juízo, até tive um bom trabalho quando cheguei em Portugal. Em 1992, trabalhava como cozinheiro em Porto Santo (Madeira), ganhava um dinheiro bom naquela época, uns 4 mil dólares por mês. Mas conheci uma pessoa em Lisboa, uma portuguesa, que nem vale a pena falar, dos olivais sul, larguei tudo por ela
Perivaldo, sobre como perdeu tudo, em entrevista à TV Globo.
Em Portugal, virou cozinheiro em hotel
O fim da estadia na Coréia do Sul tinha um motivo. Perivaldo
não conseguia ficar em um local que não conseguisse entender o que era falado.
Após rescindir o contrato com o Yukong Elephants, queria voltar ao Brasil, mas
nenhum clube abriu as portas. Foi então convencido de que teria oportunidades
em Portugal.
Por lá, até conseguiu clubes. Entrou no elenco do Louletano
e do Torriense, mas existia uma cota de estrangeiros. E ele não era prioridade.
Sem espaço para jogar futebol, parou. Mesmo assim, decidiu ficar em Portugal.
Conseguiu emprego como cozinheiro em um hotel de luxo.
Recebia um salário que manteria sua vida: US$ 4 mil. Porém, uma relação amorosa
o fez largar tudo. Gastou o dinheiro que tinha até que não sobrasse nada.
O milionário virou mendigo em Portugal
Além da desilusão amorosa, Perivaldo também sofreu na mão de
falsos amigos que prometiam negócios espetaculares. O ex-jogador investiu o
dinheiro que restava para viver de renda. O tal retorno nunca aconteceu e a
verba jamais foi devolvida.
"O erro foi meu. Vim para cá, fiz tudo errado, foi a
morte do artista. Eu tinha um Rolex de ouro que valia 50 mil dólares, tinha
diamantes. Vendi, gastei tudo. Comprei carros, vendi também, fui gastando tudo
o que tinha e depois não consegui recuperar. Emprestei dinheiro a amigos, dei
dólares a um cara para comprar umas ações para mim e ele desapareceu com o
dinheiro".
Falido, passou a fazer bicos. Entregou até sanduíches a
operários na construção civil, mas isso não pagou suas contas por muito tempo.
Por fim, passou a dormir nas ruas e em albergues para os sem-abrigo.
Para sobreviver, virou vendedor na Feira da Ladra. Os
produtos vendidos eram encontrados nos lixos da casa. Camisas, calças, jaquetas.
Tudo que estava em condições era negociado a um baixo preço na feira. O
dinheiro nem sempre era suficiente para colocar comida no estômago.
Nas primeiras semanas, quando conseguia juntar um dinheiro, optava por alugar um quarto de albergue. Quando não conseguia, dormia atrás de um banco. Depois de um tempo, não sentia mais a necessidade de uma cama. Usava dinheiro para comer e beber.
Como começou o salvamento
Foi nessa época que o humorista Nilton Rodrigues o
encontrou. Após a entrevista séria ser publicada no programa "5 para meia
noite", na RTP, a TV Globo foi à Portugal e fez a matéria que mudou a vida
de Perivaldo. Nilton foge dos holofotes, mas entende que teve papel importante
na saga.
"Fico feliz por involuntariamente ter podido ajudar um
ser humano, seja um jogador famoso ou qualquer outra pessoa. Na verdade, eu fui
só o rastilho que despoletou essa possibilidade. Fico feliz que tenha sido
assim. Ele vivia na rua e as pessoas que o levaram de volta são os verdadeiros
heróis", completou.
Nilton, inclusive, usa a história de Perivaldo como lição.
"Penso que. além desse bonito final que a história teve, há que reter duas
mensagens importantes. Primero é que quando você está ganhando muito dinheiro
tenta ter juízo e pensar que pode não durar para sempre. Não se deixe embevecer
pela fama e os amigos porque isso é muito rápido e passageiro. A segunda
mensagem é que devemos estar sempre dispostos a ajudar o próximo. Nunca sabemos
quem é e o que já passou ou está passando".
Ajuda de sindicato e recomeço no Brasil
A matéria da Globo que mudou a vida de Perivaldo foi ao ar
no Fantástico, em 2013. Presidente do Sindicato dos Atletas de Futebol do
Estado do Rio de Janeiro, Alfredo Sampaio assistiu e entrou em ação. Falou com
a família do ex-jogador e foi até Lisboa.
"Não sabíamos o que iríamos encontrar em Portugual. Fui
com um dos filhos dele e, graças a Deus, a decisão de voltar ao Brasil foi
imediata. Fizemos umas compras, hospedamos ele no hotel e arrumamos tudo para
voltar. Foi um momento emocionante em que pude ajudar um cara com essa
história, o que me orgulha muito", disse Sampaio.
O fundo do poço tinha ficado no passado. Perivaldo Lúcio
Dantas voltou a ter nome, sobrenome e dignidade no início de 2014. O sindicato
alugou um apartamento e deu um emprego para o ex-jogador.
Ele ficou responsável pelo cadastro de atletas no sistema e
também passou a fazer parte de uma comissão técnica que passava treinos para os
jogadores que estavam sem clubes e amparados pelo sindicato.
"Vai ser tipo uma vida dupla, aqui e no campo. E lá
ainda dou meus pitacos. Chego na galera, dou uma dica, falo da maneira de bater
na bola, principalmente para o pessoal que joga na lateral. É bacana poder ter
uma chance de passar tudo o que aprendi com a bola no pé também", disse ao
UOL na oportunidade.
Perivaldo reencontrou a felicidade. A fome e a falta de uma
cama ficaram no passado. A única dificuldade era virar amigo da tecnologia. Mas
isso estava longe de tirar o sorriso de seu rosto.
Na reta final, buscava carinho, não dinheiro
Se em Portugal Perivaldo tinha que lutar por dinheiro para
ter o que comer, no sindicato o jogador tinha outras prioridades. Ele buscava
carinho. Vivia em um local em que era reconhecido por tudo o que fez no
futebol.
"Estou aqui, gosto do ambiente, das pessoas, da maneira
como sou tratado. São todos amigos de verdade. Só peço a Deus que me dê força e
coragem para seguir aqui. Até ofereceram outras coisas, mas não dá para sair
daqui. Dinheiro não me atrai mais, já tive muito. Eu só quero esse ambiente. E
acho que não encontro outro lugar para ser bem tratado como esse. Isso aqui é
meu futuro. Não posso desperdiçar mais uma chance. Se não fosse o Alfredo para
me ajudar, não sei onde estaria e como seria meu regresso. Nem sei se teria
isso", disse Perivaldo.
"Foi um período muito legal. Todo mundo sabe como o
Perivaldo tinha um temperamento explosivo. Mas, nesse retorno, ele estava muito
tranquilo. Não teve nenhum episódio que tivemos que chamar atenção. Ele só
queria conversar. Ia para a porta do sindicato e ficava lá puxando assunto com
quem passava e o reconhecia. Largou até as bebidas. Levei em várias festas da
federação e ele ficou só na água. Uma pena ter sido um final feliz tão
rápido", lembrou Alfredo.
Perivaldo morreu em julho de 2017, aos 64 anos, vítima de pneumonia.
Os pouco mais de três anos que o ex-jogador ficou no sindicato foram felizes.
Precisava de muito pouco para arrancar um sorriso da cria da Pituba.
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