Estrutura que tirou 200 vidas e se tornou símbolo do risco rodoviário completa 10 anos de desativação sem deixar saudade, mas com muitas histórias de medo e sofrimento
Uma vegetação dominada por árvores altas de eucalipto de pouco em pouco abraça a monumental estrutura de concreto armado e asfalto, embrulhando no esquecimento um dos mais sombrios marcos da história rodoviária brasileira. A pouco tempo de completar uma década de desativação, no mês que vem, o Viaduto das Almas, localizado entre Itabirito e Ouro Preto, na Região Central de Minas Gerais, se degrada em silenciosa despedida, sem contudo deixar saudades – principalmente para os familiares e amigos dos cerca de 200 mortos que nunca terminaram a travessia do elevado.
A tensão dos motoristas, que não sabiam se sobreviveriam ao entrar na pista erguida em curva sobre um abismo, deu lugar ao canto dos pássaros, ao sopro do vento na mata, à adrenalina dos praticantes de rapel treinando descidas em cordas e aos passeios de habitantes locais pelo esqueleto cinzento de 260 metros de extensão e 30 de altura.
Considerado por muitos uma armadilha, o elevado em curva fechada sobre o Ribeirão das Almas nasceu Viaduto Vila Rica – homenagem ao antigo nome de Ouro Preto, um dos municípios que a sustentam. Em 1957, o presidente Juscelino Kubitschek compareceu à sua inauguração, para permitir a ligação entre Belo Horizonte e o Rio de Janeiro pela antiga BR-3, atualmente BR-040. Mas a violência dos acidentes, o pior deles a queda de um ônibus da Viação Cometa, ainda em 1969, deixando 30 mortos, fez com que merecesse o nome de Viaduto das Almas.
O histórico de desastres e de vidas perdidas de forma brutal se sedimentou nas memórias de muitas pessoas que conviviam com a passagem sobre o vale do Córrego das Almas, como o inspetor aposentado da Polícia Rodoviária Federal (PRF) Vitório Manzali Filho, de 75 anos. De 1968 a 2002, o policial conviveu com o viaduto e tem lembranças terríveis dos acidentes que lá ocorriam. “Eu era novo na polícia e me lembro de que o acidente da Viação Cometa, com 30 mortos e cinco feridos gravíssimos, tinha comovido a sociedade. Saiu em jornal e nas rádios. Um choque esse tanto de vidas perdidas”, recorda-se.
Mas o policial teria um contato mais próximo com a tragédia do que aquele intermediado pela cobertura da imprensa. “Foi então que tirei plantão e, para o meu espanto, me mandaram guardar o ônibus acidentado na garagem da (Viação) Cometa, até que a perícia chegasse, na manhã do dia seguinte”, conta o inspetor aposentado.
A visão do veículo que voou por cima do Viaduto das Almas nunca se apagou de sua memória. “O aço estava retorcido. O ônibus teve o teto esmagado. Ainda dava para ver pedaços de bagagens, retalhos de roupas, muito sangue. E, com todo respeito, partes dos passageiros ainda estavam por lá”, lembra o policial rodoviário federal. Essa imagem fez com que o inspetor Vitório Manzali respeitasse a ameaça que o viaduto representava. Tanto que quando foi designado para ser chefe do trecho, entre 1982 e 1985, decidiu tomar providências imediatamente.
“Antes, o trecho era de Conselheiro Lafaiete a Belo Horizonte (BR-040) e de BH a João Monlevade (BR-381). Assim que fui designado para ele, a imagem que se formou na minha cabeça foi a do Viaduto das Almas. Tinha muitos locais perigosos nessas rodovias, mas não posso negar que foi o viaduto que logo me preocupou. Eu me preparei para enfrentar aquilo lá. Antes de assumir, passei um mês indo todo dia para fazer reconhecimento e traçar estratégias para tentar tornar a rodovia mais segura”, afirma o policial aposentado.
Marcas de um passado mortal
Atualmente, as marcas dos acidentes ainda sobrevivem nas muretas destroçadas e falhas ao longo da estrutura em curva. Sob a armação de cimento, areia, brita e aço se adensa uma mata vigorosa, agora livre da interferência das operações de capina e conservação do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit). Mas, percorrendo o matagal ainda se encontram vestígios não naturais que indicam ter sido aquele um trecho movimentado. E mortal.
Pedaços de peças de carro e um filtro de caminhão atirado em meio ao capim remetem a acidentes com fins trágicos, que deixaram seus vestígios 30 metros abaixo da pista rodoviária. Por lá também se espalham restos como garrafinhas de água antigas, que lembram a falta de consciência de alguns motoristas.
O Córrego das Almas corta o fundo do vale pelos pastos e bosques, em leito de cascalho e minério de ferro. Um curso d'água manso e límpido, que se abre em vários canais, como se abraçasse as fundações do Viaduto das Almas, testemunha da tentativa do homem de suplantar os obstáculos da natureza e do violento custo em vidas que isso resultou.
Ao longo do riacho, pilhas de pedras formam o mobiliário rudimentar de vários acampamentos. Amontoados de rocha escura tomam a forma de assentos em volta de círculos de rocha chamuscada, constituindo abrigos para fogueiras, ainda com tocos de carvão no interior. Indícios de que novas ocupações ocorrem nesse marco da história rodoviária brasileira.
Histórias de fantasmas à beira do precipício
Na curva que antecedia o Viaduto das Almas, a mata e o abandono cuidaram de engolir o antigo Restaurante Belvedere, parada tradicional de viajantes, caminhoneiros e patrulheiros rodoviários. As ruínas, que atualmente servem de pouso para andarilhos, eram um pouso de descanso antes de encarar a travessia do perigoso elevado, ou uma oportunidade de respirar aliviado após cruzar a armadilha.
Naquele ambiente de imaginário fertilizado pela má fama dos desastres e mortes, histórias de fantasmas eram contadas entre um gole de café quente e uma mordida no tradicional pão com linguiça que fez a fama do lugar. “Os caminhoneiros contavam muitas histórias de assombrações. Todo mundo ficava impressionado porque, mesmo não acreditando, reconhecia o perigo do viaduto. Depois que a passagem fechou, o restaurante foi para o trecho novo, antes do novo viaduto (Marcio Martins Rocha)”, afirma o inspetor aposentado da PRF Vitório Manzali Filho, de 75 anos.
Em seu início de carreira em uma lanchonete próxima ao Viaduto das Almas, a proprietária do Restaurante da Celinha, Célia Maria da Silva, ouviu muitas dessas histórias. “Alguns caminhoneiros contavam que davam carona para uma mulher bonita, vestida de branco e que sumia depois que passavam sobre o viaduto. Falavam que era o espírito de uma vítima”, lembra a empresária.
Ela conta também que andarilhos e mendigos da região que usavam os vãos sob a cabeceira do viaduto para passar a noite relatavam experiências assustadoras. “Eles contavam que ouviam choros compulsivos, como se fossem de espíritos. E também gritos de desespero no meio da noite.”
A própria empresária revela já ter tido uma experiência terrível no viaduto. “Uma vez, fui até lá e, não sei por que, me deu vontade de olhar para o fundo. Foi aí que vi um carro capotado lá embaixo. Um Palio. O motorista se atirou do alto para se matar. Chamei a polícia e fui embora correndo, mas nunca mais esqueci a cena”, lembra.
Atualmente, a empresária conta que o local tem sido usado para passeios de pessoas da comunidade e atividades ao ar livre, mas também para acrobacias de motociclistas. “A natureza ali é muito bonita, precisava ser preservada, para que pudesse ser mais bem aproveitada pela comunidade”, disse.
Célia Maria da Silva lembra lenda entre caminhoneiros: mulher de branco, de carona, sumia depois da travessia
Ao ser concebida, a estrutura em curva do Viaduto das Almas era um marco da engenharia rodoviária, moderna e audaciosa para a época, segundo contam professores da área de transporte e trânsito. “Mas o viaduto já nasceu obsoleto e levou muito tempo para ser desativado”, afirma o doutor em engenharia e especialista em transporte e trânsito Antônio Prata.
A geometria, o relevo e as dimensões do elevado sobre o Córrego das Almas fizeram dele um grande desafio para motoristas e veículos desde a inauguração, em 1957, até a desativação completa, em 2010. “O raio da curva do viaduto é muito curto, e isso tirava a estabilidade de veículos no trajeto. A largura de 8,2 metros para pistas de dois sentidos era suficiente na década de 1950, mas inadequada aos veículos de carga cada vez maiores e aos produtos transportados, muitas vezes largos, excedendo a carroceria”, afirma.
Outro problema era a rampa de entrada – a forte descida para quem transitava no sentido Rio de Janeiro/Belo Horizonte. “Com tudo isso, para ter segurança, o motorista deveria reduzir a velocidade e passar por ali a 60km/h. Mas isso não acontecia por vários motivos. Um deles, comportamental. Era a década de 1960 e as músicas da Jovem Guarda refletiam o crescimento da indústria automobilística. Diziam que era para atravessar a estrada de Santos a 200 por hora, tinha essa questão da aventura do motorista. Outro problema eram os caminhões, que desciam desengrenados e, ao chegar à curva fechada no meio do vale, seus condutores não conseguiam controlar a direção e despencavam ou empurravam outros para o precipício”, afirma o professor Antônio Prata.
Na PRF desde 1994, o porta-voz da corporação, inspetor Aristides Amaral Júnior, afirma que nos últimos anos, antes do fechamento do viaduto, a rotina de acidentes havia diminuído. “Na década de 1990 já era mais má fama do que acidentes graves. Realmente, era um trecho de viaduto em curva que apresentava riscos, exigia cuidados dos motoristas, mas isso os levava a dirigir com mais cautela. Melhorou com a instalação de barreiras eletrônicas na entrada e na saída nos dois sentidos. Com a instalação do novo trecho da BR-040 e do Viaduto Marcio Martins Rocha, a condição de tráfego melhorou muito, pois é duplicado e em linha reta”, afirma Júnior. Já a antiga travessia restou como uma espécie de monumento às vítimas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário