Alexandre de Moraes, que reformou a própria decisão, que havia suspendido o Telegram. Nas duas vezes, afirmou a autoridade do SupremoImagem: Rosinei Coutinho/SCO/STF
21/03/2022 07h14
Na sexta, o ministro Alexandre de Moraes determinou o bloqueio do Telegram em todo o território nacional, listando as múltiplas vezes em que o aplicativo deixou de cumprir decisões judiciais.
A interdição seria efetivada nesta segunda. No sábado, diante de manifestação da empresa, que alegou dificuldades de comunicação, razão por que não teria cumprido os mandamentos da Justiça, o magistrado deu prazo de 24 horas para que zerasse, então, o passivo de desobediências.
Neste domingo, o Telegram cumpriu um a um os itens a que estava obrigado por decisão judicial e fez uma espécie carta-compromisso, anunciando providências para combater as "fake news" (veja post). Mais: definiu o seu representante legal no país. Moraes, então, suspendeu a interdição.
Antes que entre em detalhes, uma consideração inicial: há quem esteja vendo a coisa rigorosamente pelo avesso, entendendo que o ministro recuou porque sua decisão seria ilegal. É um equívoco gigantesco. Tanto ao determinar o bloqueio como ao suspendê-lo, Moraes reafirmou a autoridade do tribunal, que não nasce do arbítrio, mas da Constituição e, sim!, da Lei 12.965, o chamado Marco Civil da Internet. Ainda volto ao ponto. Vamos ver como. Se alguém recuou — no Brasil ao menos —, foi Pavel Durov, o exótico dono do Telegram. Deve ter seus motivos. A eventual proibição do aplicativo por aqui poderia ser, do seu ponto de vista, um péssimo negócio. Não é só no Brasil que o Telegram desafia a lei.
A íntegra da primeira decisão de Moraes está aqui. Ao contrário do que se anda dizendo aqui e ali, o ministro NÃO APELOU PRINCIPALMENTE aos Artigo 12 da Lei 12.965 para suspender o funcionamento do Telegram no país. Ao se referir a tal dispositivo, que traz explicitamente a possibilidade de suspensão do serviço (Inciso IV), o magistrado apenas lembrou o espírito da lei, a saber:
"O ordenamento jurídico brasileiro prevê, portanto, a necessidade de que as empresas que administram serviços de internet no Brasil atendam às decisões judiciais que determinam o fornecimento de dados pessoais ou outras informações que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, circunstância que não tem sido atendida pela empresa Telegram".
Atenção! Logo no primeiro parágrafo da decisão, Moraes evoca os artigos 19 e 21 da Lei 12.965, conforme petição da Polícia Federal. Transcrevo trecho:
"Trata-se de representação da autoridade policial pela autorização de adoção de medidas em face da empresa TELEGRAM, nos termos dos arts. 19 e 21 da Lei 12.965/14, com objetivo de subsidiar a completa apuração dos fatos e circunstâncias investigados nestes autos. Inicialmente, a autoridade policial assevera que: (a) após decisão nestes autos, encaminhou-se ao aplicativo de comunicação TELEGRAM, por vias indicadas em seu sítio de internet, ordem desta SUPREMA CORTE de interrupção de perfis relacionados a ALLAN LOPES DOS SANTOS; (b) diante da ausência de resposta e da necessidade de dar efetividade à decisão judicial em vigência, torna-se necessário apresentar alternativas ao Juízo para deliberações."
Assim, o que fundamenta a petição da Polícia Federal ao Supremo e a posterior decisão do ministro são os Artigos 19 e 21 do chamado Marco Civil da Internet. E o que eles dizem mesmo?
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
O Artigo 21 refere-se à violação de intimidade, não se aplica ao caso, mas ambos evidenciam que as empresas de Internet devem, por óbvio, seguir as regras do ordenamento jurídico brasileiro. Como fica claro acima, a Justiça pode ordenar que um determinado conteúdo seja retirado do ar. E se elas não obedecerem?
Bem, meus caros, qualquer empresa, não importa o que produza ou o serviço que ofereça, que desrespeitar a legislação brasileira está sujeita a ser interditada. Segundo o Inciso XXXV do Artigo 5º da Constituição, "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Isso quer dizer que lei nenhuma pode colocar uma determinada atividade acima das decisões da Justiça.
Em seu primeiro despacho, Moraes fez a lista exaustiva das vezes em que o Telegram simplesmente ignorou decisões do Supremo e do Tribunal Superior Eleitoral. Nem mesmo tinha no país o seu representante legal. E assim tem sido mundo afora.
DESCUMPRIMENTO SISTEMÁTICO
Quatro das 18 páginas da decisão inicial de Moraes são dedicadas a enumerar as vezes em que o Telegram ignorou as decisões da Justiça. Assim que a decisão veio a público, o aplicativo houve por bem se manifestar, pedindo desculpas ao tribunal e solicitando um prazo para, ora vejam!, cumprir as determinações judiciais. No sábado, então, o ministro Moraes deu 24 horas. A empresa fez o que disse que faria (leia post), e o magistrado suspendeu o bloqueio.
Em síntese, Pavel Durov, o chefão do Telegram, tomou as seguintes providências, segundo decisão de Moraes, que liberoui o aplicativo:
- nomeou Alan Campos Elias Thomaz representante legal da empresa no Brasil;
- mandou bloquear postagens e canais, conforme decisões do Supremo;
- anunciou monitoramento dos 100 canais mais populares, que representariam 95% das visualizações do Telegram no país;
- disse que haverá monitoramento da mídia para acompanhar notícias sobre o Telegram;
- garantiu que a empresa vai marcar postagens que sejam consideradas imprecisas;
- afirmou que o aplicativo vai impedir que usuários excluídos por espalhar desinformação usem novos perfis;
- prometeu atualizar os termos de serviço;
- disse que vai buscar formas de refinar a moderação de conteúdo;
- comprometeu-se em promover informações verificadas.
Há um post detalhando as promessas. Se for assim, o Telegram quer deixar de ser vilão para se transformar em mocinho. E tudo foi dito ao Supremo com renovados pedidos de desculpa. A ver. Durov deve ter percebido que o vazio legal no Brasil é menor do que lhe diziam. Se o Marco Civil da Internet prevê — e prevê — que um determinado conteúdo possa ser retirado do ar por decisão judicial, cumpre que se indague o que pode acontecer com a empresa que se negar sistematicamente a cumprir uma ordem da Justiça.
RECURSO DA AGU
Submetendo-se mais uma vez ao ridículo, a Advocacia-Geral da União havia recorrido contra a decisão do Moraes. E preferiu um caminho oblíquo. Apresentou uma petição do âmbito do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5527, cuja relatora é Rosa Weber. Esta ação tem o mesmo conteúdo de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF): a 403, relatada por Edson Fachin. Ambas tratam da constitucionalidade -- ou não -- da quebra de sigilo em aplicativos de mensagens,
Em seus respectivos votos, os relatores afastam qualquer interpretação do Marco Civil da Internet que permita, por meio de ordem judicial, que as empresas deem acesso ao conteúdo de mensagens criptografadas ponta-a-ponta. Para os dois ministros, a lei autoriza apenas o fornecimento de informações não protegidas por sigilo, os chamados metadados, referentes ao usuário e à utilização do aparelho. Eles também consideraram inviável qualquer determinação judicial que possa enfraquecer a proteção criptográfica.
Esse julgamento tem, até agora, apenas os votos dos dois relatores. Foi suspenso em maio de 2020 por pedido de vista: justamente de Alexandre Moraes. Ocorre que o caso em questão, agora, nada tem a ver com criptografia. Não se está pedindo que se quebre o sigilo de comunicação entre duas pessoas para investigar um crime — o que levou juízes no Brasil a ordenar que o WhatsApp fosse tirado do ar. O caso Telegram é coisa bem distinta. A Justiça determinou que conteúdos criminosos fossem retirados do ar e foi solene e reiteradamente ignorada. A petição da AGU perdeu objeto com a última decisão de Moraes.
E o ridículo? Bem, meus caros, deveria ter sido o Telegram a recorrer contra a determinação de Moraes, né? Como fazê-lo, no entanto, se nem representante legal tinham no Brasil? Eis que entra a AGU para, mais uma vez, socorrer os interesses de Bolsonaro, a quem interessa o vale-tudo do Telegram. A coisa ficou especialmente constrangedora porque a própria empresa se encarregou de dizer: "Epa! Desculpe aí, Supremo! A gente realmente fez caca. Vamos nos emendar".
Até o Telegram quer se desgrudar de Bolsonaro.
E se Durov estiver só dando um truque.
Ele já sabe o que virá.
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