Relatos de quem vive o proibicionismo na pele: jovens, periféricos, negros, mães – presos por posse mínima de drogas. Por trás da repressão, uma lei de 2006 usada para enquadrá-los como traficantes, e aumentou população carcerária em 254%
OUTRASMÍDIAS
Publicado 15/06/2021 às 13:49 - Atualizado
por Ponte Jornalismo
Por Gil Luiz Mendes, especial para a Ponte Jornalismo
O oitavo, dos 10 filhos, de Natália Monteiro da Silva já nasceu condenado. Mesmo antes de vir ao mundo, foi colocado atrás das grades pela guerra às drogas. Seus primeiros dias de vida se passaram dentro de uma cela da Colônia Penal Feminina da cidade de Recife, no Brasil. No dia 15 de agosto de 2017, policiais civis foram até a casa da sua mãe e a levaram sob acusação de tráfico e associação para o tráfico de drogas. Natália tinha 31 anos e estava no sétimo mês de gestação.
“Logo após o parto, toda mulher quer receber o carinho dos parentes e eu não tive isso. Não tive nenhum familiar comigo naquele momento. Quem estava ao meu lado logo após o nascimento do meu filho foi um agente penitenciário”, lembra Natália. Ela ao menos escapou de ser algemada no momento do parto, prática que atingia diversas presas e que só foi abolida por uma lei federal sancionada no ano em que Natália foi presa. Ela ganhou a liberdade condicional depois de passar um ano e três meses dentro do sistema prisional. Até hoje, seu processo ainda está em andamento, sem data para um julgamento.
Natália alega que nunca teve envolvimento com o tráfico e que foi presa por morar na mesma casa onde seu ex-companheiro, e pai do filho que nasceu na prisão, escondia os entorpecentes. Para o pesquisador e juiz de execuções penais Luís Carlos Valois, autor de O Direito Penal da Guerra às Drogas, casos como o dela são os mais comuns quando se tratam de prisão de mulheres por crimes de tráfico. “Essa proporção de mulheres presas por crimes de drogas é porque a mulher passa mais tempo em casa. Se fizer uma pesquisa só de processos com invasão de domicílio vai se perceber o grande número de prisões de mulheres em relação a homens. A polícia chega e não encontra o filho ou o marido, que são os donos da droga, quem vai presa é a mulher”, afirma.
As fontes oficiais divergem sobre os números de presos no Brasil, mas todas as análises apontam para a atual lei de drogas, a 11.343, aprovada em 2006, como um dos principais fatores para a aceleração do processo de encarceramento em massa da população brasileira. Desde a aprovação da lei, a população carcerária aumentou em 254%, chegando ao atual número de 755.274 pessoas privadas de liberdade no Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do think tank Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O número de pessoas presas por delitos ligados às drogas aumentou em 156%. Se até 2005 as pessoas presas por crimes ligados às drogas eram 9%, hoje o número chega a 29%.
Mulheres negras, como Natália, foram especialmente afetadas pelo encarceramento em massa impulsionado pela guerra às drogas. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), embora correspondam a 5% do total de prisioneiros, 65% das mulheres presas foram parar atrás das grades com base na lei de drogas de 2006. As pessoas negras, que no Brasil representam 56% da população, compõem 67% dos encarcerados. Antes da atual lei de drogas, os negros eram 58%, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Um aumento de 378% na população carcerária negra, enquanto o número de presos brancos subiu 239,5% no mesmo período.
Embora as leis brasileiras e as Regras de Bangkok, da Organização das Nações Unidas, recomendem que mulheres grávidas e com filhos pequenos recebam prisão domiciliar, é comum que a Justiça brasileira decida manter mães, gestantes e lactantes atrás das grades. Foi o caso de Rosa Maria da Silva. Seu quinto filho tinha apenas um mês quando a mãe foi levada para o mesmo presídio onde estava Natália e o seu bebê. Negra, ainda lactante e presa pela venda de pedras de crack aos 38 anos, ela entrou na cela com a blusa molhada do leite que saia dos seus seios.
Seu filho teve que ir para a cadeia poucos dias depois. Apesar de relatar que o bebê teve amparo médico e condições razoáveis de higiene no período que estiveram na prisão, Rosa afirma que o confinamento deixou sequelas na criança que até hoje, quatro anos depois, ainda reverberam no dia a dia da criança.
“Às vezes os avós dele comentam algo desta época. E ele vem me perguntar se eu estava presa. Me mostra a foto dele bebê e pergunta se ele estava preso comigo. Eu digo que não, mas vez por outra ele escuta isso da avó. Ele vai fazer quatro anos ainda, mas é uma criança muito inteligente e está naquela fase que repete tudo o que ouve”, conta.
Um inferno cheio de boas intenções
Ao aumentar o encarceramento em massa da população pobre e negra, a lei 11.343 virou o contrário do que pretendia ser. Sancionada pelo presidente de centro-esquerda Luiz Inácio Lula da Silva, a nova lei de drogas pretendia ser uma norma progressista, ao eliminar as penas de prisão para os usuários de drogas. A intenção era que o usuário fosse tratado como alguém que precisa ser amparado pelo sistema de saúde público e os traficantes teriam menos recursos para recrutar jovens para entrar para o crime organizado. A nova lei rompia com uma tradição proibicionista que vinha desde os anos 30 e que havia ganhado força na década de 70, que criava punições cada vez mais duras para todos os envolvidos com as drogas, incluindo consumidores, produtores, vendedores.
A primeira lei de drogas do país havia sido assinada em 1921 pelo presidente Epitácio Pessoa, proibindo “a venda de cocaína, ópio, morfina e seus derivados”. Em 1938, o governo do ditador Getúlio Vargas promulgou um decreto que, pela primeira vez, reprimia também o uso de entorpecentes, incluindo a maconha. A posse e o tráfico de entorpecentes passaram a ser tratados como crimes contra a saúde pública a partir de 1940.
Mas o número de pessoas presas por crimes relacionados a drogas aumentou durante a ditadura militar que dominou o Brasil de 1964 a 1985. Entre 1964 e 1974, o número total de encarcerados no Brasil aumentou de 19.771 para 30.683, segundo o Anuário Estatístico do Brasil, publicado pelo IBGE. Neste período, os presos por envolvimento com tráfico ou uso de entorpecentes aumentaram de 517 para 2.135, um crescimento de 312%.
O Brasil entra de fato na guerra às drogas em 1976, com a Lei 6.368, que institui “medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica”. Essa posição se alinhava à política adotada pelos Estados Unidos desde 1971, no governo Nixon, que fez as drogas passarem a ser o inimigo local número um do país. “A política de repressão norte-americana foi exportada para toda a América Latina. No Brasil, o governo militar aproveitou desse momento para alterar a lei colocando o consumidor como criminoso. Antes só os fornecedores de drogas eram colocados como infratores. Isso certamente foi uma influência dos EUA aqui”, explica o historiador Athos Vieira, coordenador do projeto “Drogas Quanto Custa Proibir”, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Candido Mendes.
A partir dos anos 1980, com o crescimento do comércio e popularização da cocaína, aliados ao surgimento dos primeiros grupos de narcotraficantes organizados no país, o governo passa a intensificar ainda mais o caráter repressivo da política de drogas. A Constituição brasileira de 1988, implantada após o fim da ditadura, definiu o tráfico de entorpecentes como “crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia”, ao lado da tortura e do terrorismo.
A lei de drogas de 2006 buscou romper com a escalada punitivista das legislações anteriores ao estabelecer o fim da pena de encarceramento para os usuários de drogas. Na época, a proposta foi considerada progressista demais pela ala mais conservadora do Congresso Nacional. “A nova lei antidroga que o Presidente Lula vai sancionar é muito ruim com relação ao usuário e ao dependente de drogas, porque não há punição nenhuma, absolutamente. Pode-se fumar. É como se houvessem legalizado as drogas no Brasil”, bradava, da tribuna do Senado Federal, o pastor e cantor gospel eleito senador Magno Malta, um dia antes da sanção da lei pelo presidente Lula.
De fato, o artigo 28 da lei prevê que os consumidores de entorpecentes só podem ser punidos com advertência, prestação de serviços à comunidade ou obrigação de comparecer em programas ou cursos educativos. Os traficantes, porém, são enquadrados no artigo 33, com penas que variam de 5 a 15 anos de prisão em regime fechado. Porém, ao não estabelecer critérios claros, como quantidade de drogas, para diferenciar usuários de traficantes, o texto legal deixou margem para interpretações mais rígidas da lei.
Na prática, a diferenciação passou a ser feita por policias, promotores e juízes com base em vieses de raça e classe social. Pesquisadores e ativistas apontam que a polícia e o sistema de justiça criminal passaram a enquadrar usuários de drogas pobres e negros como traficantes, transformando a lei em uma ferramenta de controle da população negra. “Essa lei era para diminuir o número de pessoas encarceradas, mas uma coisa que parecia que seria boa se transformou em algo ruim em razão desse ambiente de guerra às drogas que a gente vive”, define o juiz e pesquisador Luiz Carlos Valois.
Para a advogada e pesquisadora Dina Alves, coordenadora do Departamento de Justiça e Segurança Pública do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), a guerra às drogas sempre perseguiu pessoas pretas e pobres no Brasil, mas a prática se expandiu com a lei de 2006. “A política da repressão atinge essa população há muito tempo. O retrato disso é a tragédia do encarceramento em massa. A nova lei de drogas de 2006 fez com que aumentasse muito o número de pessoas presas pelo crime de tráfico. Isso se dá através de uma interseccionalidade entre raça, classe e gênero que influencia drasticamente no número de presos que temos hoje no Brasil”, afirma.
O ex-presidente Lula, que sancionou a lei de drogas em 2006, nunca se arrependeu publicamente da norma. Procurado, por meio da sua assessoria de imprensa, ele não quis comentar. Nenhum dos presidentes que veio depois dele — Dilma Rousseff, do mesmo partido de Lula, o direitista Michel Temer e o extrema-direitista Jair Bolsonaro — fez menção de modificá-la.
Uma ação que busca modificar a lei de 2006 e descriminalizar totalmente o uso de drogas corre no Supremo Tribunal Federal, a Corte Suprema brasileira, desde 2015, mas o processo está parado. Passados seis anos, apenas três dos 11 ministros do STF votaram na ação, todos favoráveis à descriminalização. Desde 2019, o julgamento está parado e sem data para voltar à pauta do tribunal.
Uma lei Jim Crow brasileira
O advogado Roberto Tardelli, que é branco e por 31 anos atuou como promotor no Ministério Público de São Paulo, reconhece que a aplicação da lei de drogas obedece a critérios racistas. “Existe uma lei e ela tem diversas aplicações, porque ela resulta de uma soma de estereótipos sociais. Se eu for pego com 30 gramas de maconha, ninguém vai pensar que eu estou traficando, porque eu posso dizer que essa maconha é pra mim. Agora, se a mesma situação se der no Capão Redondo [bairro pobre, de maioria negra, na periferia da cidade de São Paulo], com uma pessoa negra, portando a mesma quantidade, ela certamente será autuada por tráfico”, explica.
O viés racista começa nas abordagens feitas pela polícia nas ruas, que originam a maior parte das prisões e atingem desproporcionalmente a população negra. Mesmo entre pessoas pobres, 42% dos homens negros contam que já foram alvo de abordagens abusivas da polícia, porcentagem que cai para 34% entre os homens brancos, segundo pesquisa do Instituto Locomotiva. Sobre isso, o comandante de uma unidade de elite da Polícia Militar de São Paulo já declarou que as abordagens nos bairros pobres, de maioria branca, têm de ser “diferentes” das que são feitas nas periferias negras das cidades.
Morar num bairro pobre, por si só, é aceito como prova, nos tribunais, de que a pessoa pode ser um traficante, e não um usuário de drogas. No estado do Rio de Janeiro, em 75% das condenações pelo Judiciário que somaram os crimes de tráfico e associação para o tráfico, os juízes usaram a justificativa de que o suspeito estava em uma favela, descrita como “local dominado por uma facção criminosa”, segundo uma pesquisa da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.
Os números das apreensões de drogas mostram que a grande maioria das pessoas presas com base na lei de 2006 são meros usuários de drogas ou, no máximo, pequenos traficantes. No Estado de São Paulo, metade das pessoas presas por tráfico de maconha levam até 40 gramas da droga, segundo um estudo da ONG Sou da da Paz. No Rio de Janeiro, 28% dos “traficantes” de cocaína estavam com até 20 gramas da droga, conforme a Defensoria Pública.
Quem é negro e pobre pode ser preso por tráfico de drogas mesmo sem droga nenhuma, como descobriu, em 2019, o vendedor Rogério Xavier Salles, então com 32 anos. Detido por policiais militares quando vendia balas em um semáforo na cidade de Osasco, Salles foi denunciado à Justiça por carregar uma substância que parecia cocaína. Mesmo depois que os exames mostraram que a substância não era droga, o vendedor negro passou 28 dias preso. “Porque sabem que a gente é pobre, que a gente mora em periferia, os policiais veem a gente com outros olhos”, desabafa a mãe de Salles, Maria Inês Xavier, que procurou autoridades e jornalistas para denunciar a injustiça e não descansou até ver o filho livre.
O promotor Rodrigo César Coccaro, que denunciou Salles pelo crime de tráfico de drogas sem drogas, disse que não se arrependia da decisão e reafirmou que sua denúncia estava correta, pelo fato de o réu ter passagens anteriores por tráfico e por ter sido preso em uma cidade onde o tráfico de drogas é um “delito muito frequente”
Os policiais não precisam de outras provas, além da própria palavra, para conseguir validar a prisão de uma pessoa negra e pobre por tráfico de drogas. Três estudos diferentes, conduzidos pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e pelo juiz e pesquisador Luís Carlos Valois apontaram que, em 62% a 74% das condenações por tráfico de drogas, as únicas testemunhas ouvidas em todo o processo foram os policiais responsáveis pela prisão do réu.
Sabendo da facilidade com que sua palavra é aceita como verdade pelos tribunais quando se trata de suspeitos negros e pobres, policiais corruptos levam em suas viaturas porções de droga que usam para “plantar” com pessoas que abordam nas ruas. Se aceitam pagar um suborno, chamado de “arrego”, são liberadas. Caso não queiram ou não possam pagar, são enquadradas no artigo 33 da lei de drogas e respondem por tráfico, podendo encarar penas de até 15 anos. Isso com uma pequena ajuda de promotores e juízes que se acostumaram a aceitar sem contestar as versões policiais.
As polícias registram casos de policiais presos e expulsos da corporação por terem sido pegos com essas porções de drogas destinadas à extorsão, chamadas de “kit flagrantes”. No ano passado, um soldada da Polícia Militar de São Paulo, pego com um “kit flagrante”, admitiu que pretendia “usar a droga em ocorrências”.
Genocídio negro
Criada com o objetivo de proteger a saúde pública, a lei de drogas fez mal para a saúde de muita gente. Foi o caso de Gabriel Prazeres Gomes, que morreu aos 19 anos, em 28 de setembro de 2019, vítima de uma meningite que contraiu no Centro de Detenção Provisória de Osasco, onde estava preso por suspeita de tráfico de drogas. Antes de ser preso, havia acabado de realizar o sonho de comprar uma moto e com ela havia começado a trabalhar como motoboy, lutando para realizar um segundo sonho, o de casar com sua namorada. Não teve tempo.
Segundo sua irmã, Gomes era alvo frequente de abordagens policiais. “Eram sempre os mesmos policiais. O Gabriel era muito brincalhão e não levava as coisas muito a sério e eu acho que isso irritava os policiais, talvez por ele rir na hora errada”, conta. Ela conta que os policiais que abordavam Gomes ameaçavam “forjar” o jovem negro e pobre. Trata-se de um tipo de ameaça que passou a ser muito usada pelos policiais nas periferias após a lei de drogas de 2006: a de enquadrar jovens negros por tráfico “plantando” pequenas quantidades de drogas com eles.
Em 31 de julho daquele ano, segundo a família, os policiais cumpriram a ameaça e levaram Gomes para uma delegacia. Disseram que haviam encontrado 131,8 gramas de drogas com ele. A prova foi aceita por um promotor e um juiz. Alvo de uma prisão preventiva, foi levado ao cárcere, onde morreu em menos de dois meses, antes de ser julgado.
Embora a Constituição brasileira preveja que a prisão cautelar, sem um julgamento, deva ser aplicada apenas em casos excepcionais, na prática esse tipo de prisão se tornou uma regra para jovens pobres e negros. Cerca de 30% das pessoas nos cárceres são presos provisórios que ainda aguardam um julgamento. Gente como Gomes.
A enorme quantidade de presos sem julgamento faz piorar ainda mais a situação das prisões brasileiras, que costumam amontoar duas vezes mais pessoas do que o número de vagas disponível — em alguns estados do norte, como Amazonas e Roraima, a lotação pode ser até 3 ou 4 vezes maior do que o número de vagas. A situação dos cárceres é tão precária que lembra as de um campo de extermínio. Entre 2015 e 2018, morreram em suas celas em média 1.550 pessoas, segundo dados do Conselho Nacional do Ministério Público, a maioria de “causas naturais”, ou seja, doenças causadas pela condições prisionais, que um ministro da Justiça já chamou de “medievais”.
Assim, as mortes dentro das prisões se somam àquelas praticadas pelas polícias nas ruas, que em 79% dos casos atingem somente pessoas negras, para compor o que diversos pesquisadores, como o ator e ativista Abdias Nascimento, falecido em 2011, chamam de genocídio do negro brasileiro.
“Não existe guerra sem inimigo, e o objetivo de qualquer combate é eliminar o inimigo. Só que quando falamos da guerra às drogas esse inimigo foi criado por estereótipos sociais construídos durante os anos. E quem é esse inimigo? É desde sempre aqueles que são diferentes dos que estão no poder. No Brasil são aqueles que estão na periferia”, analisa Roberto Tardelli.
Assim, uma lei que foi pensada para prender menos pessoas tornou-se mais uma lei usada para reprimir a sua população negra, a exemplo de várias outras que o país vem adotando desde que aboliu a escravidão, em 1888.
O Brasil foi o país que teve a maior quantidade de negros escravizado nas Américas. Oficialmente o regime escravocrata durou 338 anos e se tem a estimativa que 4,8 milhões de pessoas foram capturadas na África para serem exploradas durante esse período. Essa população sofreu as mais duras penas e torturas já cometidas no território brasileiro. Essas marcas de punitivismo e repressão estão presentes na sociedade até os dias atuais.
Após a abolição da escravidão no Brasil o que se se viu foi uma massa de negros pobres, sem ocupação e que continuaram perseguidos pelo Estado, mesmo sob a premissa de serem pessoas livres. A prática da capoeira, misto de arte marcial e dança praticada pelos ex-escravizados, foi transformada em crime pelo código penal promulgado em 1890, apenas dois anos depois da assinatura da Lei Áurea, documento que extinguiu o sistema escravista no país, e assim permaneceu até 1936. O mesmo código introduziu o crime de vadiagem, que foi usado até os anos 1980 como uma ferramenta para reprimir e encarcerar negros e pobres que não pudessem comprovar uma ocupação.
Quem manda prender
A transformação da lei de drogas de 2006 em uma ferramenta de dominação racista pode ser explicada, ainda, pelas características do sistema de justiça criminal do Brasil.
A relação dos agentes envolvidos na política de drogas no Brasil difere pouco do sistema escravocrata que formou a caráter do Brasil desde o tempo da colônia. Quem é punido atualmente no Brasil tem basicamente o mesmo perfil daqueles que eram penalizados em séculos passados. Pretos, pobres e marginalizados.
Os que punem também seguem, quase majoritariamente, o mesmo padrão social daqueles que definiam os rumos da vida daqueles que tinham vindo África. Homens, brancos e de famílias tradicionais. 77% dos promotores e procuradores são brancos, segundo um estudo realizado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania. Entre os magistrados, os brancos são 80%, conforme o Conselho Nacional de Justiça.
“A gente pode afirmar que existem pessoas que nascem praticamente com a garantia de um cargo nas mais altas cortes do país”, afirma a advogada e pesquisadora Luciana Zaffalon, diretora executiva do think tank Justa, que analisa o Judiciário brasileiro.
Dados do Justa indicam que, entre os juízes, magistrados que atuam na primeira instância, há 7,4 homens brancos para cada mulher negra. Entre os desembargadores, magistrados de segunda instância, com mais poder de decisão e de definir as políticas do Judiciário, a falta de diversidade é ainda maior. Para cada desembargadora negra, há 37,8 desembargadores brancos.
Na relação de quem julga e de quem é julgado, esses dois grupos vivem realidades completamente opostas e um define substancialmente como será a vida do outro, aponta o ex-promotor Roberto Tardelli. Essas distorções, segundo ele, ficam claras nas medidas punitivistas que são tomadas em relação aos crimes de drogas no país
“Temos hoje uma geração que sempre conviveu com regalias, estudou nos melhores colégios e moraram em condomínios fechados. Muitos deles nem moravam em bairro com pessoas comuns. Essas coisas pequenas do cotidiano, essas diferenças relações interpessoais, que vão moldando a nossa visão de mundo. Eles vivem num mundo onde todos são parecidos entre si, têm nomes duplos, fazem viagens para fora do país. Essas pessoas nunca viram um pobre em boa parte das suas vidas”, diz Tardelli.
De acordo com a plataforma Justa, todos os juízes fazem parte das 0,08% pessoas ricas do país. Um promotor ou juiz recebe mais do que o dobro em relação a juízes e promotores da Alemanha, por exemplo. Um magistrado custa em média aos cofres brasileiros R$ 50,9 mil, segundos dados de 2019 do Conselho Nacional de Justiça, valor 48,7 vezes maior do que um salário mínimo. “É uma opção orçamentária de enriquecer poucas pessoas às custas da garantia de direitos para a grande maioria da população”, afirma Zafallon.
Para completar, parte dos valores usados para remunerar os magistrados, segundo a análise do Justa, entra no orçamento dos estados na forma de créditos adicionais — valores que não estavam previstos no orçamento original, aprovado pelos deputados estaduais, e que dependem unicamente da vontade do governador para serem concedidos. “Os governos transferem, a portas fechadas, dinheiro a mais para as instituições que devem fiscalizar e julgar abusos e omissões do próprio Executivo”, afirma Zafallon.
Segundo a pesquisadora, a relação íntima entre os responsáveis pela aplicação da Justiça com os governadores, responsáveis pelas polícias, ajuda a explicar porque promotores e juízes aceitam com tanta facilidade as versões trazidas por policiais contra jovens negros acusados de tráfico de drogas, mesmo que tenham sido “forjados”. Para ela, a política da justiça se resume em “blindar as elites e criminalizar os pobres”.
O preço da repressão
Toda guerra tem um custo alto. Seja financeiro ou em número de vidas perdidas. Diante dessa situação, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania elaborou o estudo Drogas: Quanto Custa Proibir, que analisa o montante de dinheiro que o Estado gasta para reprimir o uso e o comércio de entorpecentes. Os números são grandiosos e mostram como é caro ao erário público esse embate.
Com dados coletados em São Paulo e Rio de Janeiro, estados com os maiores índices de pessoas presas por drogas no país, o levantamento mostra um custo bilionário empregado por esses governos para tentar conter o avanço das substâncias proibidas em seus territórios. Juntas, as duas administrações públicas gastaram R$ 5,2 bilhões em apenas um ano na aplicação da lei de drogas, levando em conta os gastos com polícias, Ministério Público, Tribunal de Justiça, Defensoria Pública, sistema penitenciário, sistema socioeducativo.
“Analisamos todos os órgãos que fazem parte do sistema de segurança, começando nas polícias, passando pelo Ministério Público e o Judiciário, até chegar no sistema prisional. A partir disso verificamos que em São Paulo, por exemplo, foi gasto R$ 4,2 bilhões, em 2017, e nesse mesmo período o Rio de Janeiro utilizou R$ 1 bilhão dos cofres públicos”, explica o coordenador do estudo, Athos Vieira.
O levantamento faz um comparativo de como esses recursos gastos com a lei de drogas poderiam ser investidos em outras necessidades básicas para a população. No Rio de Janeiro o mesmo valor gasto com a repressão poderia custear 252 mil alunos em escolas do ensino médio ou beneficiar 145 mil famílias, ao longo de um ano, num programa de renda básica equivalente ao auxílio emergencial pago durante a pandemia. Em São Paulo daria para manter em funcionamento dois hospitais estaduais de referência como o Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo ou construir 462 novas escolas.
“No Rio de Janeiro a guerra às drogas tomou uma proporção de guerra civil, mas a gente sabe que em outros lugares do Brasil as drogas funcionam como uma capacidade de fomento econômico. O que o proibicionismo faz é reprimir uma atividade comercial que existe há séculos. Quando o Estado decide não regulamentar esse mercado, ele deixa nas mãos de grupos que estão à margem da lei a administração desse negócio”, analisa Athos.
Estigma
Apesar de ter feito explodir o número de pessoas presas por tráfico de drogas no Brasil, principalmente negras, a lei de drogas não teve qualquer efeito na restrição do uso de substâncias ilícitas pela população.
De acordo com o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas feito em 2012 pela Universidade Federal de São Paulo, 6,8% dos brasileiros já haviam feito uso de maconha pelo menos uma vez na vida. Cinco anos depois, a Fundação Oswaldo Cruz fez um estudo semelhante e observou que a porcentagem de pessoas que fizeram uso da erva era de 7,7%.
Além de não diminuir o consumo, a lei de drogas também arruinou a vida de muitos dos consumidores de drogas que ela pretendia proteger, ao trata-los como uma questão de saúde pública, e não de polícia. Gente como Camila do Vale Rossatto. A polícia foi até o apartamento onde ela estava visitando o seu namorado, no centro da cidade de São Paulo, em 19 de agosto de 2020, após uma denúncia sobre uma briga de casal. Segundo o relato dos policiais, ela se mostrou confusa e aparentava estar sob efeito de drogas. No local, apreenderam 38 pequenos sacos plásticos com metanfetamina e 3 gramas de maconha. Os indícios pareciam indicar que Rossatto tinha problemas com o uso abusivo de drogas, mas a juíza Carla Kaari a enquadrou como traficante, com base na lei de 2006.
Após um mês presa, ela conseguiu liberdade provisória e passou a aguardar, apreensiva, pela conclusão do processo. O impacto da prisão sobre Rossatto foi grande. “Era uma pessoa que não tinha envolvimento com crime, era apenas uma usuária, que acabou entrando nessa por estar envolvida com esse namorado. Depois que saiu da prisão, ela aparentava estar sempre com medo e apreensiva. Ela sempre me perguntava, angustiada, se ela ia ser presa novamente”, relata o seu advogado, Vinícius Bento. Em 20 de maio, ela se matou. Tinha 22 anos.
Criada em nome da preservação da família brasileira, a lei de drogas produziu um processo de encarceramento em massa que produz marcas profundas que vem destruindo incontáveis famílias. Rosa Maria da Silva, de quem falamos no início desta reportagem, conta que, hoje, só tem contato com o filho mais novo que a acompanhou na prisão. Os outros quatro mais velhos a rejeitam por ser uma ex-presidiária. Seu passado atrás das grades também é um dos motivos que a impede de conseguir um emprego na sua área de atuação.
“Já é difícil arrumar emprego para quem não tem nenhum antecedente, e pra gente que tem a ficha suja é pior. Eu sou cozinheira, mas só consigo trabalhos atualmente como faxineira, diarista ou quando arrumo algumas roupas para lavar. Eu tenho que pegar qualquer serviço que aparece. Para não voltar a vender drogas.”
Uma Guerra Viciante é um projeto de jornalismo colaborativo e internacionalista sobre os paradoxos deixados por 50 anos da política de drogas na América Latina, do Centro Latinoamericano de Investigación Periodística (CLIP), Dromómanos, Ponte Jornalismo (Brasil), Cerosetenta (Colômbia), El Faro (El Salvador), El Universal e Quinto Elemento Lab (México), IDL-Reporteros (Peru) e Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP).
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