Jean-Philip Struck
há 16 horashá 16 horas
Decreto do presidente inclui perdão para crimes cometidos há
mais de 30 anos, beneficiando diretamente PMs envolvidos na chacina de 111
presos em 1992. Eles estavam perto de começar a cumprir pena a partir de 2023.
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ANÚNCIO
O último indulto de Natal assinado pelo presidente Jair
Bolsonaro nesta sexta-feira (23/12) benefecia diretamente dezenas de policiais
condenados pelo Massacre do Carandiru, ocorrido em 1992 e que resultou no
assassinato de 111 presos na antiga Casa de Detenção de São Paulo.
O texto presidencial concede perdão a agentes de forças de
seguranças condenados por crimes ocorridos há mais de 30 anos, mesmo que
provisoriamente. Outro trecho prevê que o perdão se aplica a crimes que não
eram "considerados hediondos no momento de sua prática".
Os PMs condenados pelo massacre no presídio paulista se
encaixam diretamente nesse perfil. O massacre completou 30 anos em outubro de
2022. Além disso, em 1992, homicídios não estavam previstos na então redação da
Lei dos Crimes Hediondos – só passaram a ser incluídos em 1994.
O texto do decreto diz especificamente: "Será concedido
indulto natalino também aos agentes públicos que integram os órgãos de
segurança pública de que trata o art. 144 da Constituição e que, no exercício
da sua função ou em decorrência dela, tenham sido condenados, ainda que
provisoriamente, por fato praticado há mais de trinta anos, contados da data de
publicação deste Decreto, e não considerado hediondo no momento de sua
prática".
Dessa forma, o decreto de Bolsonaro beneficia 69 PMs
condenados pelo massacre em uma série de julgamentos entre 2013 e 2014 que
ainda estão vivos. Nenhum deles chegou a cumprir pena pelos homicídios do
Carandiru até hoje, graças a uma série de manobras jurídicas. No entanto, a possibilidade
de recursos foi esgotada em 2022, quando o Superior Tribunal de Justiça e o
Superior Tribunal Federal decidiram pelo
trânsito em julgado.
Antes do indulto concedido pelo presidente, só restava uma
etapa para que os PMs passassem a cumprir pena: uma análise do Tribunal de
Justiça de São Paulo (TJ-SP) para verificar se as penas estão adequadas. A
previsão original é que isso fosse feito em janeiro de 2023, abrindo finalmente
caminho para que os PMs cumprissem pena.
Ao todo, 74 PMs foram condenados a penas que variam de 48 a
624 anos. Cinco deles morreram antes que as penas começassem a ser cumpridas.
Ao jornal Folha de S.Paulo, o procurador Maurício Ribeiro
Lopes, que atua no caso do Carandiru, disse que pretende questionar a
constitucionalidade do indulto. "Quem dirá se é constitucional ou não é o
STF, mas seguramente o MP [Ministério Público] fará [o questionamento]."
Ele ainda afirmou ao jornal que o decreto "é
extremamente casuísta e fere princípio da impessoalidade da lei" e que as
contestações também podem ser feitas por partidos políticos ou a Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB). "Da forma como esse governo tratou questões de
segurança pública e de Justiça, não estou nada surpreso de isso ter
acontecido", finalizou o procurador.
O deputado federal de extrema direita Eduardo Bolsonaro,
filho do presidente, não fez questão de disfarçar que o indulto foi feito sob
medida para os PMs do Carandiru. Em mensagens no Twitter ilustradas com fotos
do antigo presídio, ele celebrou o perdão.
"Hoje foi feito Justiça (sic). Policiais militares que entraram onde nenhuma mãe sequer permitiria que seus filhos entrassem e cumpriram sua missão. (...) Que tenham hoje, estes já senhores, finalmente o sono dos justos e um Feliz Natal tranquilo em família", escreveu Eduardo Bolsonaro.
O massacre
Em 2 de outubro de 1992, um sábado, véspera de eleições
municipais, uma rebelião explodiu após uma briga entre presos no pavilhão nove
da Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Carandiru. O complexo abrigava
7.500 presos, mais que o dobro da capacidade.
"Era um dia especial por causa das eleições. Não
poderíamos permitir uma fuga em massa de mais de 7 mil criminosos", disse
ainda naquele sábado Pedro Franco de Campos, responsável pela pasta da
Segurança Pública do estado.
Duas horas após o início da rebelião, 362 homens de
diferentes tropas da Polícia Militar paulista, sem nenhuma experiência em
presídios, invadiram o pavilhão armados com revólveres, submetralhadoras
alemãs, escopetas, fuzis M-16 e cães. "O ataque foi desfechado com
precisão militar: rápido e letal. A violência da ação não deu chance para
defesa", escreveu o médico Drauzio Varella, que trabalhava na prisão.
Pavilhão por pavilhão, cela por cela, os PMs dispararam
contra os presos. A ação se estendeu por meia hora. Quando as armas silenciaram,
os sobreviventes foram escoltados para fora e agredidos com cassetetes e
mordidas de cachorros em um corredor polonês.
Dentro do pavilhão, 111 presos perderam a vida. Do lado da
polícia, nenhum morto.
O governo estadual evitou num primeiro momento divulgar a escala do massacre. A contagem oficial naquele sábado indicou apenas oito mortos. O total só foi conhecido no domingo, meia hora antes do fim da eleição municipal. O então governador do estado, Luiz Antônio Fleury, foi acusado de segurar a contagem para não prejudicar os candidatos apoiados pelo governo.
Implosão de pavilhaõ do antigo presídio do Carandiru em 2002Implosão de pavilhaõ do antigo presídio do Carandiru em 2002Foto: picture alliance/AP Photo
Impunidade
Passaram-se quase dez anos até o primeiro júri do caso. O
primeiro a ser condenado foi o coronel Ubiratan Guimarães, comandante da
operação. Sua sentença em 2001 chegou a 623 anos de prisão. Entre 2013 e 2014,
foi a vez do grosso da tropa. Cinco diferentes júris resultaram na condenação
de mais de 70 PMs. Somadas, as penas passaram de 21 mil anos de prisão.
Mas nenhum deles chegou a passar um dia sequer na prisão até
o momento por crimes relacionados ao Carandiru. Ubiratan foi o primeiro a se
livrar. Em 2006, no julgamento de um recurso da sua defesa, o Tribunal de
Justiça de São Paulo entendeu que ele havia apenas "cumprido seu
dever" e decidiu pela absolvição.
Em setembro de 2016, o Tribunal de Justiça de São Paulo
adicionou mais um elemento nessa saga de impunidade e morosidade: anulou todos
os cinco júris dos 73 PMs condenados após recurso da defesa.
Em seu voto que anulou os júris, o relator do recurso, Ivan
Sartori, que já foi presidente do TJ-SP, chegou a afirmar que "não houve
massacre". "Houve sim uma contenção necessária à imposição da ordem e
da disciplina, tratou-se de legítima defesa", disse.
Suas conclusões contrastaram com os elementos que apontavam
para um massacre. Um deles foi exemplificado no segundo julgamento do caso, que
abordou 52 das 78 mortes que ocorreram do terceiro pavimento do pavilhão nove
do Carandiru.
O Ministério Público mostrou que 90% desses 52 presos
levaram três tiros ou mais – 47 foram baleados na cabeça ou no pescoço. Laudos
periciais também apontaram que não foram encontradas marcas de projéteis nas
posições em que os PMs ocuparam no pavilhão, afastando a hipótese de um
"confronto" ou disparos que partiram dos presos.
O MP também apontou que a conduta dos PMs não era exatamente
nova, indicando que 24 dos 25 réus desse segundo júri já haviam matado 300
pessoas em ocorrências de resistência seguida de morte (sem relação com o
Carandiru) desde o início da carreira de cada um até o ano 2000.
O recordista de casos era o tenente-coronel Carlos Alberto
dos Santos, com 33 mortes. À época da decisão do tribunal de São Paulo, em sua
conta no Facebook, Sartori respondeu aos críticos da sua decisão. "Outro
infeliz, cooptado pelos pseudodefensores dos direitos humanos", disse a um
usuário.
Em abril de 2018, o STJ mandou o TJ-SP julgar novamente o caso. Em 2021, no entanto, o STJ voltou a restabelecer as condenações dos júris originais. Em agosto de 2022, foi a vez de o STF negar seguimento aos recursos extraordinários, efetivamente determinando o trânsito em julgado das condenações. A possibilidade de um indulto era um dos últimos mecanismos que podiam ser usados pelos PMs para evitar a prisão.
Júri do Carandiru em 2013.Júri do Carandiru em 2013. Três décadas depois da chacina, nenhum PM cumpriu pena pelo massacreFoto: Marcelo Camargo/ABr
Carreiras intocadas
Após deixar o cargo de governador, no final de 1994, Fleury
continuou ativo politicamente. Em 2013, durante um dos julgamentos do caso,
disse que a entrada da PM no pavilhão nove foi "legítima e
necessária". Em 1998, foi eleito deputado federal. Ele morreu em novembro
de 2022, sem nunca ter sido responsabilizado.
O coronel Ubiratan também seguiu na política. Em 2002, foi
eleito deputado estadual em São Paulo. Seu número na urna era 11190, uma
referência macabra aos mortos no Carandiru. Em 2006, foi encontrado morto em
casa enquanto tentava a reeleição – desta vez usava o número 14111.
O secretário de Segurança Pedro Franco de Campos deixou o
cargo dias após o massacre e se tornou diretor de uma faculdade. Michel Temer,
que depois se tornou presidente da República, assumiu o lugar. Ele também nunca
foi responsabilizado criminalmente pelo massacre.
Entre os policiais que executaram as ordens, quase todos
permaneceram na PM nos anos seguintes. Durante o primeiro júri do caso em 2013,
que envolveu 26 PMs, oito ainda estavam na ativa. Vários foram promovidos nos
anos seguintes ao massacre. Dois participantes chegaram a chefiar a Rota, a
temida tropa de elite da PM paulista, nos anos 2000: Salvador Modesto Madia,
condenado no segundo júri do Carandiru por 52 homicídios; e Nivaldo César
Restivo, acusado de tomar parte nas agressões aos sobreviventes após o
massacre.
Apenas um PM que tomou parte na ação chegou a cumprir pena, mas não por crimes relacionados ao
Carandiru. Cinco meses após o massacre, Cirineu Letang, soldado que tomou parte
na ação que resultou na morte de 73 presos no terceiro pavimento do pavilhão
nove, cometeu o primeiro de uma série de assassinatos em série de travestis em São
Paulo.
Foi preso pouco depois e cumpriu pena até 2011. Solto,
voltou a matar 71 dias depois. Letang, ou o "Matador de Travestis",
como é conhecido na crônica policial, cumpre pena em semiaberto desde 2019..
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