sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Exército não interferiu na apuração de votos no dia da eleição...


04.out.2022 - É falso que integrantes do Exército, alertados por hackers russos, teriam entrado na sala de totalização dos votos no TSE durante apuraçãoImagem: Projeto Comprova

Projeto Comprova

07/10/2022 17h01



É falso que integrantes do Exército, alertados por hackers russos, teriam entrado na sala de totalização dos votos no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante a apuração do resultado do primeiro turno das eleições, no domingo (2), e impedido uma suposta fraude para eleger o candidato do PT à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva. O conteúdo foi fabricado sem nenhuma evidência comprovada e já desmentido pelo tribunal, pelo Ministério da Defesa e pela Embaixada da Rússia no Brasil.

Conteúdo investigado: Vídeo de três minutos alegando que integrantes do Exército brasileiro, alertados por hackers russos, teriam entrado na sala de totalização dos votos no TSE, durante a apuração do primeiro turno das eleições, no domingo (2), e impedido uma suposta fraude. O esquema envolveria descontar gradativamente um ponto percentual dos votos conferidos ao presidente Jair Bolsonaro (PL) e acrescentar meio ponto para o ex-presidente Lula (PT), a partir do momento em que 12% das urnas já tivessem sido apuradas.

Onde foi publicado: TikTok e Instagram.

Conclusão do Comprova: É falso que integrantes do Exército, alertados por hackers russos, teriam entrado na sala de totalização dos votos no TSE, durante a apuração do primeiro turno das eleições e impedido uma suposta fraude. O conteúdo foi fabricado, ou seja, não se baseia em nenhuma evidência.

A assessoria de imprensa do tribunal desmentiu a peça de desinformação ao garantir que o Exército não esteve na sede do tribunal no dia do primeiro turno. O Ministério da Defesa, órgão ao qual estão vinculadas as Forças Armadas, e a Embaixada da Rússia no Brasil também negaram a história aqui verificada. A plataforma TikTok retirou o vídeo do ar por conter "desinformação danosa".

A chamada "sala secreta", onde ocorre a totalização dos votos, na verdade, não é a mesma onde servidores do TSE monitoram a contagem, tendo, inclusive, a participação de entidades fiscalizadoras. O processo de totalização ocorre automaticamente, sem interferência de nenhum dos presentes, por um supercomputador.

 

Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma falsidade.

Alcance da publicação: Até o final desta terça-feira (4), a publicação no TikTok contava com 227,1 mil curtidas, 10,3 mil comentários e 144 mil compartilhamentos. O vídeo passou a ficar indisponível entre a noite de terça e o início da tarde desta quarta-feira (5).

O que diz o autor da publicação: Conseguimos contactar o autor da publicação, Sérgio Tavares, pelo Whatsapp. Ele confirmou a autoria da publicação e disse que sua fonte é "fidedigna", e nos informou que lhe pediria permissão para revelá-la; depois, optou por "não prestar mais detalhes".

Como verificamos: Buscamos no Google por artigos que contivessem, ao mesmo tempo, as expressões-chave "fraude", "primeiro turno", "hackers russos" e "forças armadas", ou "exército" ou "militares". Também fizemos uma pesquisa à parte por "sala secreta" e "TSE" para apurar especificamente sobre o local onde os votos são totalizados, na sede do tribunal. Obtivemos, como resposta, um artigo da agência de checagem de fatos Boatos.org desmentindo a peça de desinformação, assim como matérias de veículos de imprensa, como CNN Brasil e UOL, usados nesta verificação.

Ainda consultamos, na internet, sobre a apuração realizada no dia da eleição para averiguar a dinâmica da contagem de votos. A pesquisa retornou reportagens do G1 e do Valor que, entre outras informações, indicavam o motivo para a mudança de posição dos candidatos durante a apuração, conforme o avanço da contagem em diferentes regiões do país.

Entramos em contato com o TSE, o Ministério da Defesa, o Exército e a Embaixada da Rússia no Brasil, as partes citadas pelo conteúdo, e com o TikTok, rede social onde o conteúdo verificado foi publicado.

TSE, Ministério da Defesa e Embaixada da Rússia no Brasil desmentem história

Os órgãos citados no vídeo negam a história alegada. Em nota enviada ao Comprova, a assessoria de imprensa do TSE desmentiu a peça de desinformação e assegurou que o Exército não esteve na sede do tribunal em 2 de outubro, dia do primeiro turno.

O Exército informou que o pedido deveria ser direcionado ao Ministério da Defesa. Em contato com o Comprova, por telefone, a assessoria do Ministério da Defesa afirmou que o conteúdo é falso. A Embaixada da Rússia no Brasil disse, apenas, que "não comenta informações fictícias e falsificações (fakes)".

Apuração dos votos

A apuração dos votos no domingo, 2 de outubro, foi transmitida em tempo real por diversos veículos, na televisão e internet, e os primeiros dados divulgados apontavam para uma vantagem de Lula, logo superada por Bolsonaro. O presidente ficou à frente da apuração por mais de duas horas, enquanto a contagem dos votos avançava nas regiões Sul e Centro-Oeste, onde Bolsonaro tem a preferência do eleitorado.

 

À medida que a contagem avançava em outros pontos do país, a diferença de Lula para Bolsonaro foi diminuindo até que, por volta de 20 horas, com 70% das urnas apuradas, o ex-presidente virou e não deixou mais a liderança até a conclusão da apuração. O mapa de votação demonstra, portanto, que as variações nos índices dos candidatos têm relação com as regiões em que se concentraram a apuração dos votos, e não com a suposta fraude falsamente alegada no vídeo aqui investigado.

Sala secreta é conhecida e não é o mesmo local onde fica a equipe de totalização

O conteúdo também alega que existe uma "sala secreta", onde ocorreria a totalização dos votos, dentro da sede do TSE, em Brasília. A expressão, que sugere falta de transparência no processo eleitoral, é comumente usada entre aqueles que atacam a credibilidade da Justiça Eleitoral, dentre eles o próprio presidente da República, Jair Bolsonaro (PL). Entretanto, é incorreto afirmar que a existência ou a localidade dessa sala não seja oficialmente revelada.

 

O que existe são duas "salas-cofres" no TSE. Em uma, há um supercomputador que totaliza os votos das eleições automaticamente - ou seja, sem interferência de nenhuma pessoa presente - e a partir dos dados coletados nas próprias urnas eletrônicas e impressos nos boletins de urna. Na outra, fica o código-fonte das urnas, que é a linguagem de programação do software delas, após ser lacrado.

 

Ambas as salas têm acesso restrito, sendo monitoradas 24 horas e protegidas por cinco portas codificadas, como reportou a CNN Brasil. A existência e a localidade delas são de conhecimento público: elas ficam nas dependências da Secretaria de Tecnologia da Informação do TSE, na sede do tribunal, em Brasília.

 

A equipe de servidores do TSE que acompanha a totalização dos votos, composta por técnicos da própria Justiça Eleitoral, não fica em nenhuma dessas salas. Eles trabalham em um espaço que é aberto, até mesmo no dia da eleição, a agentes fiscalizadores, como o Ministério Público e representantes dos partidos políticos.

 

Em visita no dia 28 de setembro guiada pelo presidente do tribunal, ministro Alexandre de Moraes, e acompanhada pela imprensa, o próprio Valdemar Costa Neto, que preside o PL, sigla de Bolsonaro, disse que a sala "é aberta".

 

Vídeo ficou indisponível no TikTok

O TikTok tornou o vídeo indisponível entre terça e quarta-feira (5). O Comprova não conseguiu determinar o momento exato da suspensão. Procurada, a assessoria de imprensa do TikTok no Brasil informou que a plataforma de vídeos "trabalha com uma combinação de tecnologia e de pessoas para identificar e remover conteúdos que violam nossas Diretrizes da Comunidade". Sobre o conteúdo verificado, o TikTok disse que o vídeo "foi removido por desinformação danosa".

 

Por que investigamos: O Comprova investiga conteúdos suspeitos que viralizaram nas redes sociais sobre a pandemia de covid-19, políticas públicas do governo federal e eleições presidenciais. O vídeo aqui investigado cita os dois presidenciáveis que estão na disputa do segundo turno, tentando induzir as pessoas a acreditar em uma suposta fraude para favorecer um candidato em detrimento de outro. A desinformação, como a deste vídeo, tenta tirar a credibilidade do processo eleitoral, o que é uma afronta à democracia porque retira o direito das pessoas de fazerem as suas escolhas baseadas em conteúdos verdadeiros.

 

Outras checagens sobre o tema: O Fato ou Fake, do G1, e a agência de checagem Boatos.org também desmentiram o conteúdo aqui verificado. O período de campanha para o segundo turno das eleições já começou com desinformação. O Comprova mostrou, por exemplo, que é mentira que Barreiras, na Bahia, registrou número de votos em Lula superior à população da cidade e que é falso que boletim de urna encontrado em Curitiba não tenha sido computado no resultado da eleição.

 

No fim de semana da votação, também circularam muitas peças de desinformação. O Comprova revelou ser falso que Ciro Gomes declarou apoio a Bolsonaro, que site noticiou aumento do patrocínio de Neymar após o jogador manifestar apoio ao presidente e, ainda, que eleitores de Lula teriam dia diferente para votação.

Este conteúdo foi investigado por Metrópoles, GZH, CNN Brasil, A Gazeta e Crusoé. A investigação foi verificada por Correio do Estado, Piauí, Rádio Band News e Plural. A checagem foi publicada no site do Projeto Comprova em 6 de outubro de 2022.

O Comprova é um projeto integrado por 40 veículos de imprensa brasileiros que descobre, investiga e explica informações suspeitas sobre políticas públicas, eleições presidenciais e a pandemia de covid-19 compartilhadas nas redes sociais ou por aplicativos de mensagens. Envie sua sugestão de verificação pelo WhatsApp no número 11 97045 4984.

                                                                           


Os corpos preservados em pântanos que podem revelar mistério de sacrifícios humanos na Europa

 

 Corpos da Idade do Ferro em bom estado de conservação foram encontrados em toda a Europa, incluindo os restos do Homem de Oldcroghan (foto), na Irlanda

Martha Henriques – @Martha_Rosamund - BBC Future

Atenção: esta reportagem contém detalhes que podem ser sensíveis para alguns leitores.

Em maio de 1983, Andrew Mould encontrou um objeto sólido arredondado, enterrado na turfa em um pântano chamado Lindow Moss em Cheshire, no noroeste da Inglaterra. O objeto lembrava uma antiga bola de futebol feita de couro, mas um olhar mais atento revelou que se tratava de algo muito mais assustador.

"Nós limpamos tudo e sabíamos que era um crânio", segundo Mould. No seu interior, havia até uma substância amarelada que ele soube depois que se tratava dos restos do cérebro.

Encontrar restos humanos no pântano não é totalmente uma surpresa. Há séculos existem relatos de partes de corpos vindas à superfície em pântanos similares a Lindow Moss em todo o norte da Europa.

O corte de turfa era o negócio familiar de Mould. Muitos dos seus parentes trabalhavam no pântano e ele viajava para Lindow Moss desde que era criança para ver seu pai cortar a turfa.

Mould já havia lido sobre esses casos e ele próprio havia encontrado "pedaços" de corpos durante o seu trabalho, mas este caso era diferente. Ele então fez o que a maioria das pessoas faria e informou a polícia.

Havia já mais de 20 anos que a polícia de Cheshire suspeitava que um morador local, Peter Reyn-Bardt, teria assassinado sua esposa Malika de Fernandez, mas o corpo dela nunca havia sido encontrado. Encontrar um corpo, ou parte dele, vindo à superfície no pântano próximo poderia finalmente encerrar o caso.

E, quando a polícia de Cheshire contou a Reyn-Bardt que o crânio de uma mulher havia sido desenterrado em Lindow Moss, ele confessou ter matado sua esposa. "Foi há tanto tempo que eu achei que nunca seria descoberto", disse ele aos investigadores.

O que Reyn-Bardt não sabia é que o crânio não era da sua esposa morta. Na verdade, ele pertenceu a uma mulher que havia vivido cerca de 1.600 anos antes. Por isso, enquanto a polícia encerrava um caso, os arqueólogos abriam outro, muito mais misterioso.

Nas profundezas aquosas ácidas do pântano, com baixo teor de oxigênio, bactérias e outros micro-organismos não conseguem decompor tecidos orgânicos. Por isso, restos biológicos permanecem efetivamente em suspensão por milhares de anos.

No caso da Mulher de Lindow, como ela ficou conhecida, o pântano chegou a preservar até um globo ocular, além do seu cérebro.

Existem muitos outros como ela. Em todo o norte da Europa, o mesmo processo que transforma musgos em turfa conserva restos humanos na forma de corpos do pântano.

Essas pessoas vêm sendo enterradas em pântanos da Irlanda até a Alemanha desde o ano 2000 a.C. - embora tenham sido encontrados esqueletos sem tecidos moles que foram datados até 8500 a.C.

Os arqueólogos suspeitam que haja algo de incomum em muitos dos corpos dos pântanos, além da sua extraordinária preservação.

Ser enterrado naquele período da história não era comum. Os enterros formais eram raros na Europa durante a Idade do Ferro. Os mortos muitas vezes eram cremados, recebiam funerais a céu aberto ou uma série de práticas diversas e criativas.

Muitos dos corpos do pântano eram de jovens adultos, adolescentes e crianças, aparentemente em forma e saudáveis. Alguns estavam nus, exceto por algum pedaço de corda, chapéu ou casaco bem preservado. Às vezes, as roupas eram enterradas separadamente dos corpos em locais próximos no pântano.

Mas, acima de tudo, muitos dos corpos haviam sofrido mortes extremamente violentas. E, como os métodos de exame forense dos corpos do pântano avançaram rapidamente nos últimos anos, estamos começando a descobrir os mistérios sobre esses corpos e quem eles eram, na vida e na morte.

Depois da Mulher de Lindow, outra descoberta feita ao acaso no mesmo pedaço de turfa ajudou a reformular o estudo de corpos do pântano na Europa. A descoberta foi feita por alguém que já é nosso conhecido - novamente, Andrew Mould.

No verão seguinte à descoberta da Mulher de Lindow, Mould estava trabalhando na esteira da máquina de moer turfa quando um torrão sólido escuro caiu aos seus pés.

"Pensamos inicialmente que fosse um pedaço de madeira do pântano", relembra Mould. Mas, quando ele pegou o torrão, sentiu o que parecia ser o couro de uma bolsa.

Ele mostrou para um colega. "Foi aí que limpamos um pouco e vimos as unhas dos dedos dos pés."

Nos dias que se seguiram, uma cabeça inteira e o dorso foram cuidadosamente escavados (mesmo que, desta vez, a polícia de Cheshire não tenha resolvido nenhum outro caso pendente). O Museu Britânico concluiu que o corpo era de um homem na casa de 20 anos de idade, com cerca de 1,73 m e 64 kg, que havia vivido perto do século 1° d.C.

"O espetacular a respeito dele é que ele quase foi morto por três vezes", afirma Miranda Aldhouse-Green, professora emérita da Faculdade de História, Arqueologia e Religião da Universidade de Cardiff, no Reino Unido, e autora do livro Bog Bodies Uncovered ("Corpos do pântano descobertos", em tradução livre).

"Ele foi morto de forma prolongada e de uma maneira muito específica, por alguém que conhecia a anatomia humana", explica ela. "Ele foi atingido na cabeça com força suficiente para atordoá-lo, mas não matá-lo. Ele foi então estrangulado e, ao mesmo tempo, teve sua garganta cortada."

Por que um assassinato tão brutal? O excesso de violência usado para executar o Homem de Lindow indica algo muito mais incomum que um assassinato "normal", segundo Aldhouse-Green.

Lugares sagrados

Para entender o destino dos corpos do pântano, é preciso primeiro compreender o pântano na Idade do Ferro e na Europa do Império Romano.

"Nós consideramos os pântanos como espaços vazios", segundo Melanie Giles, professora sênior de arqueologia da Universidade de Manchester, no Reino Unido, e autora de Bog Bodies: Face to Face with the Past ("Corpos do pântano: cara a cara com o passado", em tradução livre). "Não é assim que as pessoas da Idade do Ferro os viam."

"Eles retiravam combustível do pântano, cortando turfa e retirando minério de ferro", explica ela. "Eles produziam instrumentos e armas como caldeirões e espadas. Eles retiravam o musgo e teciam artigos extraordinários com ele. Eles caçavam as aves que viviam ali. Os pântanos eram lugares ricos e produtivos para as pessoas da Idade do Ferro."

E existe o fato de que o pântano é uma região de fronteira, entre a terra e a água.

"Acho que os pântanos também são muito especiais porque eles são repletos de miasmas", afirma Aldhouse-Green. "Eles têm vapores que saem deles e, às vezes, entram em combustão espontânea. Eles podem ter odores fortes. Eles parecem terra, mas não são terra. Eles podem ter sido compreendidos como sendo portais para o outro mundo e portais para os deuses."

Até hoje, os pântanos elevados podem ser hipnotizantes, segundo Ole Nielsen, diretor do Museu Silkeborg em Hovedgården, na Dinamarca. Para ele, "realmente não é necessário fantasiar muito para imaginar que existem mais forças atuando do que você pode ver na realidade."

Giles afirma que análises detalhadas das vizinhanças do local onde foi encontrado o Homem de Lindow demonstraram que, muito provavelmente, ele estava vivo quando adentrou pela última vez naquele ambiente de passagem.

Usando dados do Sistema de Informações Geográficas (GIS, na sigla em inglês) para mapear o pântano, os pesquisadores concluíram que o Homem de Lindow foi enterrado na sua parte mais profunda.

Conduzir uma pessoa morta ou atordoada até aquele local teria sido extremamente difícil naquele terreno traiçoeiro. "Como é muito perigoso chegar até aquele ponto, provavelmente ele estava vivo enquanto era transportado", segundo Giles.

Os detalhes das suas lesões fatais apontam nessa direção. "O assassino era grande conhecedor da anatomia humana e sabia como manter aquela pessoa pairando entre a vida e a morte por muito tempo", explica Aldhouse-Green. "Quando ele foi empurrado com o rosto para baixo contra o pântano, ele ainda estava respirando, pois havia água nos seus pulmões."

Última refeição

Outros sinais disso vêm do estômago do Homem de Lindow. Análises meticulosas da sua última refeição revelam um prato muito simples à base de cevada, talvez um pouco torrado demais.

"A última coisa que ele comeu antes de morrer foi um alimento realmente muito simples", diz Sophia Adams, curadora do Período da Idade do Ferro Europeia e da Conquista Romana do Museu Britânico. "Ele comeu o que chamamos hoje de pão na chapa."

A falecida acadêmica celta Anne Ross, que realizou importantes trabalhos iniciais com o Homem de Lindow, argumentava que esse pão na chapa, feito de cevada e parcialmente queimado, revela algo sobre o seu destino.

Entre as classes sacerdotais britânicas daquela era, o pão na chapa era usado em uma cerimônia muito similar ao jogo dos palitos. As pessoas retiravam pedaços de pão na chapa de um saco e quem tirasse o pedaço queimado e torrado era escolhido como bode expiatório.

E o pão na chapa do Homem de Lindow também continha traços de outra planta denunciadora: o visco. Ross argumenta que isso indica relação com os antigos druidas, que eram conhecidos por realizar rituais de coleta de visco.

Aldhouse-Green destaca que o visco era conhecido na Antiguidade como planta medicinal para distúrbios nervosos e "pode ter sido administrado ao homem de Lindow para acalmá-lo e deixá-lo mais submisso frente à sua morte terrível".

Outros corpos do pântano também contam últimas refeições incomuns. Um corpo dinamarquês conhecido como Homem de Grauballe é o de um agricultor da Idade do Ferro que viveu em cerca de 390 a.C., no centro da Dinamarca.

Sua última refeição incluiu mais de 60 tipos diferentes de vegetais, amassados em um mingau intragável de cereais, ervas com sabor amargo e mais de 13 espécies de grama.

"Você tem muitas sementes e plantas de uma área bastante ampla reunidas nessa refeição, o que indica muito conhecimento daquele território e sugere que era um ritual representado no sacrifício", afirma Aldhouse-Green. "Mas você pode interpretar esta última refeição de uma infinidade de formas. Pode também ter sido uma forma de humilhação."

O Homem de Grauballe também teve uma substância psicoativa acrescentada à sua última refeição - mas, neste caso, a intenção pode ter sido qualquer uma, menos de acalmá-lo.

Traços de toxinas alcaloides no intestino revelaram que sua última refeição incluiu o esporão-do-centeio, um fungo que cresce nas espigas de cereais como centeio e cevada. Em doses altas, o envenenamento com esse fungo causa alucinações e efeitos terríveis, conhecidos como Fogo de Santo Antônio. Eles incluem parada circulatória, sensação de queima e perda das extremidades por gangrena.

Mas, nos níveis encontrados no trato digestivo do homem de Grauballe, o efeito teria sido mais suave.

"Ele pode ter causado um comportamento muito estranho logo após a ingestão", afirma Aldhouse-Green. "O fungo teria feito com que ele fizesse movimentos desordenados, sentisse muito calor e gritasse. Ele estaria à beira de um fenômeno psicótico extremo e, possivelmente, isso era parte das preliminares rumo ao sacrifício."

Na Idade do Ferro, os pântanos elevados eram repletos de ricos recursos, desde turfa para queima como combustível até minério de ferro para fazer caldeirões, escudos e armas
Na Idade do Ferro, os pântanos elevados eram repletos de ricos recursos, desde turfa para queima como combustível até minério de ferro para fazer caldeirões, escudos e armas

Características distintas

Entre os corpos descobertos nos pântanos, existe um alto percentual de pessoas com características físicas diferentes que podem ter chamado a atenção na sua comunidade, segundo Miranda Aldhouse-Green.

A Menina de Yde, por exemplo, que viveu 2 mil anos atrás e morreu no pântano de Stijfveen, na Holanda, tinha curvatura pronunciada da espinha, que deve ter causado dores crônicas e provavelmente um andar cambaleante.

Outro corpo do pântano holandês da mesma época, a Mulher de Zweeloo, tinha uma forma de nanismo. E, no Reino Unido, o terceiro corpo antigo encontrado em Lindow Moss (conhecido como Lindow 3º) tinha um vestígio de um segundo polegar na mão direita.

"Existe a possibilidade de que as deficiências físicas não fossem exatamente comemoradas, mas, sim, marcadas como algo especial e poderoso, possivelmente associado a ser tocado ou abençoado pela divindade", afirma Aldhouse-Green.

Mas ela salienta que não podemos ter certeza de como as diferenças físicas eram percebidas na Antiguidade, e essas teorias são apenas especulativas.

Ética na exibição

Os corpos dos pântanos da Europa têm sido frequentemente exibidos em museus após sua escavação e preservação cuidadosa.

No entanto, surgiram controvérsias sobre a exibição pública desses corpos. Uma exposição itinerante em Ottawa, no Canadá, enfrentou reações negativas por exibir os restos humanos.

Melanie Giles, da Universidade de Manchester, argumenta que a exibição criteriosa dos restos humanos pode ajudar a criar emoções íntimas e laços sociais entre os corpos dos pântanos e as pessoas que os observam.

Ritual da morte

Talvez o rosto mais bem preservado de todo o mundo antigo seja o do Homem de Tollund, um corpo do pântano encontrado na Dinamarca em maio de 1950. Atualmente, ele repousa em posição fetal no Museu Silkeborg.

Como ocorre com muitos desses corpos, os ácidos do pântano transformaram a cor da sua pele em um tom preto-azulado. Seus pelos e cabelos ficaram com cor laranja brilhante, embora ele esteja usando um chapéu de pele de carneiro que cubra a maior parte.

Todas as linhas finas e quase todos os poros da pele são visíveis. Suas pálpebras enrugadas estão fechadas, dando a ilusão de um sono pacífico.

"Você consegue realmente conhecer essa pessoa", afirma Ole Nielsen. "O rosto é a parte do corpo que detém a maior expressão do corpo humano. E é realmente fascinante conhecer um homem da Idade do Ferro, com mais de 2 mil anos de idade, que parece poder despertar a qualquer momento."

Além do seu chapéu de pele de carneiro, o Homem de Tollund foi enterrado vestindo apenas um cinto de tecido na cintura e uma corda em volta do pescoço.

"Se ele estivesse vestido com alguma roupa de lã, ela teria sido preservada, sem dúvida", segundo Nielsen. Os ácidos do pântano preservam colágeno e queratina, que estão presentes em materiais como a lã. "Os seus cabelos ainda estão ali, suas unhas estão ali."

Também não há marcas de roupas na superfície da pele do Homem de Tollund.

"Nós realmente examinamos seu corpo com muito cuidado, usando microscópios. Ainda existem muitas folhas de musgo que podem ser observadas no corpo, mas nada que indique que houvesse alguma outra coisa sobre ele. Por isso, provavelmente ele foi morto como nós o vemos. É realmente muito inusitado vê-lo nu com um chapéu", explica Nielsen.

No seu conjunto, as condições do homem de Tollund indicam um ritual da morte. "Para o sacrifício, ele foi barbeado e colocado no pântano com a corda do enforcamento", destaca Nielsen.

Ele acredita que deixar a corda com o corpo seja simbólico, já que até um objeto simples como uma corda tinha valor e podia ser usado novamente.

"Ela provavelmente foi deixada como um sinal", afirma Nielsen. "Sua função era ser colocado no pântano porque tinha aquele propósito. Se ele foi voluntário ou escolhido ao acaso, nós não sabemos. Mas ele não parece tão insatisfeito."

Presentes para os deuses

A ideia de seguir voluntariamente para uma morte tão tenebrosa é difícil de entender para uma mente do século 21, mas pode não ter sido tão bizarra para as pessoas que viviam na Idade do Ferro.

"Precisamos pensar em um mundo em que os deuses estão em toda parte. Tudo o que você fizer é associado aos deuses", afirma Aldhouse-Green. Por isso, manter os deuses felizes pode ser questão de vida e morte não só para os indivíduos, mas para comunidades inteiras.

"Se você aborrecesse os deuses, eles dariam uma colheita fraca, uma praga, as safras seriam perdidas e assim por diante. E você precisava ter os deuses do seu lado", explica Miranda Aldhouse-Green.

Melanie Giles concorda. "Você está lidando com entidades que influenciam a sua vida, deuses ou espíritos, existe algo sobrenatural ali e se pode ter acesso pelo pântano", afirma ela.

Giles acrescenta que pode ter havido um elemento circular para a oferenda de pessoas aos deuses pelo pântano. "Como as pessoas tiravam muito dos pântanos, elas parecem ter sido compelidas a devolver alguma coisa." Às vezes, eram caldeirões, às vezes havia oferendas de alimentos como manteiga do pântano.

"Se você ofertar uma pessoa, uma vida - talvez fosse o melhor tipo de oferenda que você poderia fazer", explica Giles.

Embora existam evidências de que o Homem de Lindow, o Homem de Tollund, o Homem de Grauballe e outros fossem sacrifícios humanos, Giles ressalta que não devemos considerar que todos os corpos dos pântanos fossem oferendas. No caso de alguns corpos, como o da Mulher de Lindow, simplesmente não temos informações suficientes para formar um quadro convincente de como foi a sua morte.

"Existem alguns corpos que não exibem sinais de violência e essas pessoas podem ter simplesmente afundado", ressalta ela. "São locais perigosos. As pessoas morrem no pântano - elas morrem de exposição, morrem tentando cruzar o pântano, perdem seus calçados ou calculam mal onde estão andando. Algumas delas podem ter sido mortes acidentais."

Outros, segundo ela, podem ter sido simples assassinatos. Talvez o pântano deserto às vezes fosse apenas um local conveniente para atos abomináveis. E pode também ter havido vítimas de suicídio entre os mortos, talvez colocados ali em uma época em que essas mortes eram tratadas com medo e não com empatia.

"Os pântanos podem ter sido considerados o local certo para colocar um corpo perigoso - alguém que morreu misteriosamente ou de forma não natural", afirma Giles.

"Parte disso tinha a ver com as declarações da igreja, de que não queria essas pessoas nos seus cemitérios. E parte disso porque o pântano é um local poderoso, além da visão humana, onde os mortos podem ser guardados", conclui ela.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-63135507

https://br.noticias.yahoo.com/os-corpos-preservados-em-p%C3%A2ntanos-123508974.html

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