Ao longo dos últimos anos, o Brasil percebeu uma queda de cobertura vacinal do calendário básico de imunização. No ano passado, nenhuma das vacinas básicas teve meta alcançada pela primeira vez. Especialistas apontam que há vários motivos para isso. Um deles é a disseminação de informações falsas pelo movimento antivacina —e que vem ganhando força no país.
Uma prova disso é que 75% das pessoas afirmaram na última pesquisa Datafolha, de outubro, que queriam se vacinar contra a covid-19. Ou seja, um em cada quatro brasileiros não sabe se vai ou não quer tomar a imunização. Em agosto, o percentual que apontou que queria tomar vacina era de 89%.
Por meio de canais na internet, vídeos usam argumentos que colocam dúvida desde a segurança das vacinas, até questionamentos sobre outros "métodos naturais" que evitariam doenças.
Uma pesquisa divulgada na segunda-feira (26) mostra que canais no YouTube ajudam a veicular essas informações falsas. O estudo foi feito por pesquisadores da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e da Universidade da Califórnia Berkeley, nos Estados Unidos, publicado na revista Frontiers in Communication.
No trabalho, eles localizaram 158 vídeos sobre vacinas com mais de 10 mil visualizações, interações e conexão com outros vídeos da rede. A pesquisa foi feita entre fevereiro e março, ou seja, antes das discussões em torno da vacina da covid-19.
Oito dos 20 canais que disseminam essas informações falsas têm o selo de conta verificada pelo YouTube e pertencem a companhias ou a promotores de serviços de saúde alternativa.
No material veiculado, três argumentos se sobressaem: que as vacinas contêm ingredientes perigosos (presente em 53% da amostra), de defesa da liberdade de escolha (48%), de promoção de serviços de saúde alternativa (em 42%).
Influência negativa
Segundo Dayane Machado, doutoranda no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp e uma das autoras do estudo, não existem pesquisas específicas que relacionem a causalidade entre a circulação de desinformação e a queda na cobertura vacinal no país.
"O que temos são pesquisas indicando que a exposição excessiva a desinformação e a teorias da conspiração variadas podem influenciar na tomada de decisão das pessoas, inclusive sobre se vacinar ou adotar um calendário vacinal alternativo", explica.
A doutoranda explica que é preciso diferenciar o movimento antivacinação e a hesitação vacinal. "Imagine que existe uma régua longa. Numa ponta, há aquelas pessoas que defendem abertamente as vacinas e que não têm problema com elas. Na outra ponta é que a gente posiciona os movimentos antivacinação. Entre essas duas pontas ficam várias posições que a gente chama de hesitação vacinal. Pessoas hesitantes a vacinas podem ser aquelas que recusam algumas vacinas, mas que tomam outras; pessoas que adiam o calendário vacinal; e até pessoas que obedecem ao calendário, mas que não se sentem seguras", explica.
Machado alega ainda que só é considerado movimento antivacinação quando uma pessoa cria e espalha desinformações sobre vacinas com alguma motivação.
Dessa forma, antivacinação é quem não só busca estratégias para fazer a desinformação ir mais longe, como quem fabrica desinformação como um método para deixar as pessoas desconfiadas ou com medo das vacinas. Principalmente no movimento americano, nós temos grandes nomes que vivem desse 'ativismo'. Ganham cachê para dar palestra, fazem eventos, alimentam 'fã-clubes', vendem livros, cursos...
Risco coletivo
Mas deixar de se vacinar ou de vacinar seus filhos não tem efeito solitário como muita gente pensa. "Vacina não é uma decisão individual que você pode tomar e que não vai ter consequências para a sociedade. Vacina é um ato de saúde coletiva", explica Natália Pasternak, doutora em microbiologia e presidente do Instituto Questão de Ciência.
"Quando você deixa de se vacinar, deixa de gerar imunidade de rebanho, que é o que protege as pessoas vulneráveis. Quando você tem uma boa parte da população vacinada, a doença para de circular, e daí aquelas pessoas que por algum motivo não podem se vacinar —ou porque são imunocomprometidas ou porque são bebês muito pequenos— ficam protegidas. É assim que a doença não tem como chegar nas pessoas vulneráveis", completa.
Para Pasternak, há no Brasil um crescimento preocupante desse desse sentimento antivacina. "Ele vem de um movimento que é muito influenciado pelo movimento natural, de curas naturais, de uma vida livre de química —como se isso fosse possível. É um apelo de que tudo que é natural é melhor, e como vacinas não são naturais, são ruins. Isso é misturado com um outro apelo desse movimento de que, se você tiver uma vida saudável, uma alimentação saudável, você não precisa de vacinas, o seu sistema imune dá conta", explica.
Para ela, a situação se tornou ainda mais grave. "Durante a pandemia isso piora muito quando a gente tem essa desinformação feita diretamente pelo presidente da República", completa.
Doenças de volta
Guido Levi, diretor da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), afirma que debater a importância e segurança das vacinas é algo completamente fora de propósito nos dias atuais.
"Elas são nossa maior estratégia de saúde pública. As vacinas aumentaram em 30 anos a expectativa de vida da população nos últimos dois séculos", diz, citando erradicação de doenças como a varíola e poliomielite.
Entretanto, ele diz que profissionais da área têm notado um "crescimento muito grande" na desinformação e alerta que isso já tem reflexos percebidos na sociedade, como foi a volta do sarampo.
"Já foi feita análise em vários países: se você entrar na internet e buscar vai ter muito mais site contra que favoráveis com informações técnicas, científicas adequadas", alega, defendendo uma mobilização nacional.
"Por isso é muito importante que nós, profissionais, façamos um trabalho extenuante, 24 horas por dia, dando informações com dados científicos claros e fontes seguras sobre eficácia, importância e segurança das vacinas. A maior parte dessas fake news são muito facilmente refutáveis com dados científicos", completa.
Ele também atribui a desinformação e a consequente queda da cobertura vacinal ao próprio sucesso das imunizações. "Um dos fatores mais importantes foi o desaparecimento das doenças, que faz pessoas não darem a devida importância para a eficácia das vacinas. Você pega médicos mais jovens, eles nunca viram um caso de pólio, de sarampo congênito. No passado víamos essas doenças. Na Cruz Vermelha em São Paulo, as enfermarias eram lotadas de sarampo; todo mundo conhecia alguma pessoa com pólio", diz.
Levi também comenta a pesquisa do Datafolha em capitais que mostrou que entre 15% e 20% das pessoas, de acordo com a cidade, não pretendem se vacinar contra a covid-19. Se isso se confirmar, diz o diretor de SBIm, será um problema sério para o controle da epidemia.
"Para covid-19 precisamos de uma vacinação em níveis muito elevados para conseguir a imunidade, senão não vamos conseguir nos livrar", alerta, mas fazendo uma aposta otimista. "Opinião minha: quando a vacina estiver disponível, não vai ter 20% que não tomem. Com certeza vai haver uma mudança nesse aspecto."
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