Mulher que sofria constantes ataques racistas no ambiente de trabalho é processada após denunciar o caso. Os colegas brancos que promoviam as humilhações pediram indenizações de R$ 20 mil e R$ 8 mil
A justiça paulista considerou improcedente uma ação movida por dois homens brancos contra uma mulher negra, que denunciou ter sido vítima de injúria racial no ambiente de trabalho. Ana Thereza da Silva foi processada por colegas de trabalho após registrar um boletim de ocorrência contra eles há cinco anos. A decisão de anular um dos pedidos de danos morais ocorreu nesta semana e foi da juíza Fabiana Kumai, da Vara do Juizado Especial Cível do Butantã (SP).
Em março de 2016, Ana Thereza, que é funcionária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, prestou queixa na 1ª Delegacia de Defesa da Mulher após ter sido chamada de “invejosa, petulante, frustrada, intrometida, agressiva, negra raivosa” pelos colegas brancos. Ela também foi chamada de “doutora” em tom pejorativo e levou testemunhas para prestarem depoimento a seu favor.
O boletim de ocorrência se transformou em um inquérito policial e o Ministério Público entendeu que não haviam provas suficientes para denunciar criminalmente os dois acusados, o que gerou o arquivamento do inquérito. Os autores das ofensas se sentiram constrangidos por terem sido classificados como racistas e ambos entraram com duas ações indenizatórias por danos morais, no valor de R$ 20 mil, valor posteriormente reduzido pelo Tribunal de Justiça para R$ 8 mil.
Segundo o advogado Hédio Silva, a juíza entendeu que Ana Thereza se sentiu ofendida, portanto, tem o direito de buscar proteção do Poder Judiciário sem ser punida por isso. A defesa de Ana explica que “a sentença também restabelece o princípio da segurança jurídica e ratifica o direito de negros reclamarem de racismo sem serem punidos caso não consigam a condenação criminal de seus algozes”.
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Hédio avalia ainda que é possível que os acusados recorram à decisão e diz que o próximo passo para livrar Ana de pagar a indenização de R$ 8 mil é recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Racismo no ambiente de trabalho
“Eu, que fui ‘boia-fria’ até os 21 anos e sonhava com roupas sociais de escritório, ganhei o apelido irônico e jocoso de ‘doutora’ por usar saltos e vestidos. Essas atitudes se deram porque decidiram que eu não pertencia ao grupo. Sabemos como o racismo institucional funciona”, desabafa Ana Thereza.
A vítima mantinha um bom relacionamento com os colegas de trabalho até perceber que um grupo recém contratado, que Ana deveria orientar sobre os procedimentos de recursos humanos, começou a desdenhar de sua presença e a ignorar os protocolos que ela passava, com a recusa de aceitar atendimento e consultoria prestados por ela.
Segundo ela, os ataques passaram a ser mais frequentes, o que afetou sua saúde física e mental. Até o cabelo da profissional foi alvo de chacotas, com o argumento de que ele parecia uma “juba”.
“De repente comecei a ter quedas de pressão e sensações de desmaios sem entender que já estava em um processo de crises de ansiedade. Eu fui me encolhendo e já não confiava ou conversava com as pessoas do setor, sempre tentando ignorar os deboches e ataques gratuitos”, lembra a vítima.
Ana Thereza relata que entrou em contato com seus superiores e foi informada de que a coordenação tomaria todas as providências cabíveis. Durante essa espera, Ana lembra que precisava fechar uma folha de pagamento e um dos procedimentos nessa etapa é exigir atestados médicos para abonar faltas injustificadas dos funcionários. Segundo ela, uma das pessoas que a agredia verbalmente ficou com raiva em razão da solicitação do documento e a ofendeu novamente.
“A pessoa começou a gritar e me ofender dizendo que meu lugar era na portaria, não no RH, repetidas vezes. Todos diziam que iriam me ‘colocar no meu lugar’, pois eu não pertencia àquele grupo”, recorda.
Um dos argumentos utilizados pelos agressores durante o processo de denúncia, ainda segundo a vítima, foi o de que ela decidiu falar sobre o caso para conseguir uma promoção de cargo.
“Usaram isso para justificar minha postura e me colocar no estereótipo de negra raivosa e invejosa. O que mais doeu foi aguardar uma solução das coordenadoras e estar em uma sala sendo tratada como criminosa. Tudo o que eu falava era distorcido, diziam que eu tinha causado aquilo e me tiraram do setor sem nenhuma justificativa ou possibilidade de defesa”, detalha.
O estereótipo da ‘mulher negra raivosa’
Para a doutoranda e pesquisadora de discursos em torno de mulheres negras Mônica Santana, o estereótipo da “mulher negra raivosa” é cultural e está fixado nas estruturas de poder da sociedade.
A pesquisadora avalia que o racismo nesse caso decorre de uma constância de injustiças que define esse estereótipo como inadequado, como se não fosse permitido um comportamento de defesa que garanta igualdade para essas mulheres.
“Isso nos leva muitas vezes a termos a necessidade de erguer a voz, de denunciar e reclamar das inúmeras injustiças às quais a mulher negra sofre. É necessário performar esse lugar de raiva, pois a mulher negra está constantemente dentro de circunstâncias que causam raiva”, avalia a pesquisadora.
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Segundo Monica, a partir de tudo isso o discurso da mulher negra é deslegitimado e ela passa a ser taxada como “indignada” por romper com o ciclo de subserviência. A pesquisadora destaca, por fim, que esse tipo de controle sobre o comportamento da mulher negra “é cruel e ocorre quando se luta por direitos”.
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Mulher chamada de ‘negra raivosa’ no trabalho é processada após denunciar racismo
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