Como ‘CPF cancelado’ virou o novo ‘bandido bom é bandido morto’
Marcelo Roubicek26 de abr de 2021(atualizado 28/06/2021 às
16h17)
Bolsonaro comemorou a captura e morte de Lázaro Barbosa
usando expressão. O 'Nexo' resgata uso do termo pelo presidente e seu entorno e
como se deu a sua popularização na última década
FOTO: ALAN SANTOS/PR - 23.ABR.2021
JAIR BOLSONARO E SIKÊRA JÚNIOR (AO CENTRO) SEGURAM CARTAZ COM 'CPF CANCELADO'. AO LADO DO PRESIDENTE, OS MINISTROS DO TURISMO, GILSON MACHADO, E DA EDUCAÇÃO, MILTON RIBEIRO
O presidente Jair Bolsonaro comentou a morte de Lázaro
Barbosa, nesta segunda-feira (28), com um tuíte com a expressão “CPF
CANCELADO”. Suspeito de ter assassinado quatro pessoas de uma família em
Ceilândia (DF), Lázaro foi morto por policiais durante um cerco na cidade de
Águas Lindas (GO). O criminoso de 32 anos fugia das autoridades há mais de 20
dias.
A expressão "CPF cancelado" é uma forma de se
referir à morte de uma pessoa, e é comumente utilizada em casos de execuções
feitas por policiais. O termo dialoga com a cultura por trás da gíria “bandido
bom é bandido morto”, reforçada por Bolsonaro em diversos momentos de sua
carreira política e elemento importante da onda de extrema direita que elegeu o
atual presidente e outros nomes em 2018.
Segundo especialistas, essa é uma cultura que abre brecha para abusos e ilegalidades, e até mesmo para execuções policiais – sendo que não há pena de morte no Brasil e tampouco previsão de punição sem determinação judicial. Casos em que a morte acontece por legítima defesa têm previsão legal própria.
Bolsonaro prosseguiu no Twitter: "O Brasil agradece! Menos um para amedrontar as famílias de bem". O presidente, que deve buscar a reeleição em 2022 e busca adesão eleitoral das polícias, também parabenizou a Polícia Militar de Goiás por dar "fim ao terror" causado por Lázaro.
Esta não é a primeira vez que Bolsonaro usa a expressão. Em
abril de 2021, o presidente posou para fotos segurando um cartaz com a mensagem
“CPF cancelado” em uma imagem publicada nos canais oficiais do Palácio do
Planalto. Junto ao presidente, apareceram os ministros Milton Ribeiro, da
Educação, e Gilson Machado, do Turismo, além do apresentador Sikêra Júnior e
membros da equipe de seu programa de TV. O registro foi feito após entrevista
do presidente ao programa Alerta Especial – apresentado por Sikêra Júnior – da
TV A Crítica, do Amazonas.
O que significa a expressão
A expressão “CPF cancelado” é uma forma de referir à morte,
e é comumente utilizada em casos de execuções cometidas por policiais com arma
de fogo.
Em coluna publicada no jornal Folha de S.Paulo em abril de
2019, o escritor Sérgio Rodrigues afirmou que o “CPF cancelado” não é apenas um
eufemismo para a morte, como outros tantos termos da língua portuguesa. O autor
destaca que a expressão carrega um tom sarcástico, ao desumanizar as vítimas –
reduzindo-as ao número do CPF – e ao mesmo tempo comemorar as mortes.
Rodrigues também afirma que a expressão é empregada
normalmente como uma tática de identificação e demarcação de inimigos. Não à
toa, o “CPF cancelado” é normalmente associado à figura do “bandido”.
A ideia de “CPF cancelado”, portanto, dialoga com a cultura
por trás da gíria “bandido bom é bandido morto”. O Brasil é um país com alta
letalidade policial. Também é um país em que a ideia de que “bandido bom é
bandido morto” ainda é difundida por parte da população, incluindo Bolsonaro.
Silvia Ramos, da Rede de Observatórios da Segurança Pública,
analisou o impacto da expressão “bandido bom é bandido morto” na violência
policial em entrevista ao Nexo de 2017: “Mesmo que o policial saiba que está
fazendo algo ilegal, como executar um criminoso, ele acha que aquilo não é
ilegitimo nem imoral. Ele sabe que não se pode executar um criminoso quando
está rendido, ou fazer uma emboscada para matar alguém numa área de periferia
do Brasil. A questão hoje do crime e da segurança é esta: quem está sendo
morto? Fossem jovens de classe média alta de áreas abastadas, a polícia mudaria
em semanas. Quando alguém fala ‘bandido bom é bandido morto’, está falando que
jovem, negro, pobre, de periferia morto não é problema meu.”
As origens e a difusão do ‘CPF cancelado’
A expressão “CPF cancelado” foi popularizada pelo
apresentador Sikêra Júnior, que comanda programa policialesco que começou em
rede estadual amazonense e passou a ter transmissão nacional na RedeTV! em
2019.
Em um dos quadros do programa, Sikêra Júnior anuncia – e
celebra – a morte de suspeitos pela polícia. No quadro, são usados cartazes
iguais aos que Bolsonaro segurou em 23 de abril de 2021 – réplicas ampliadas do
documento CPF (Cadastro de Pessoas Físicas) com uma tarja vermelha que diz, em
letras garrafais, “cancelado”.
Antes de Jair Bolsonaro, o senador Flávio Bolsonaro
(Republicanos-RJ) e o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filhos do
presidente, já haviam posado com cartazes desse tipo. Os dois participaram do
programa de Sikêra Júnior em setembro de 2020.
Na ocasião, Flávio deixou de comparecer a uma acareação
(espécie de depoimento prestado ao Ministério Público) no processo que
investigava o vazamento de informações da Operação Furna da Onça – que deu
origem ao caso das rachadinhas na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro –
para participar do programa televisivo.
FOTO: REPRODUÇÃO/TV A CRÍTICA - 21.SET.2020
EDUARDO BOLSONARO (À
DIR.) E FLÁVIO BOLSONARO (À ESQ. DE EDUARDO) SEGURAM CARTAZES DE 'CPF
CANCELADO' JUNTO A SIKÊRA JÚNIOR (CENTRO) E MEMBROS DE SUA EQUIPE
Apesar da popularização por Sikêra Júnior, a expressão “CPF
cancelado” não foi criada pelo apresentador. De acordo com Sérgio Rodrigues, a
origem é incerta, mas a fonte provável são círculos policiais.
O termo ganhou aderência nas bases de extrema direita no
final da década de 2010. Nas redes sociais, é comum que comentários de notícias
sobre a morte de suspeitos por policiais contenham a expressão. Em veículos de
mídia ligados à direita – como os próprios programas policialescos na
televisão, que frequentemente trazem mensagens de desrespeito aos direitos
humanos – também é possível encontrar a expressão.
Em 20 de agosto de 2019, “CPF cancelado” foi uma das
palavras-chave mais usadas no Twitter. Naquele dia, um homem manteve 37 pessoas
reféns em um ônibus na ponte Rio-Niterói, no Rio de Janeiro. Ele foi morto por
um atirador da Polícia Militar depois de três horas de negociação.
A morte do sequestrador foi comemorada por autoridades como
o Bolsonaro e o então governador do Rio, Wilson Witzel. Flávio Bolsonaro fez
uma postagem com a legenda “CPF CANCELADO. O resgate da autoridade no Brasil
está acontecendo”.
Em 26 de abril, questionado por uma jornalista sobre a foto
com o cartaz quando o Brasil se aproximava das 400 mil mortes pela covid-19, o
presidente respondeu: “Você não tem o que perguntar não? Deixa de ser idiota,
menina!”
Bolsonaro e o descaso com a morte na pandemia
A proximidade de Bolsonaro com o discurso do “bandido bom é
bandido morto” não é nova. Ele costumava usar a expressão em sua carreira como
deputado. Em 2018, o tema da segurança pública foi um dos principais motes de
sua campanha presidencial.
Nessa área, seu governo é marcado pela implementação de
políticas para facilitar o porte de armas no país e pela tentativa de ampliar o
chamado excludente de ilicitude, a fim de evitar que policiais não respondam
por mortes em serviço. Trata-se de um dispositivo que muitos especialistas em
segurança pública comparam a uma espécie de “licença para matar”.
Mas as principais críticas à foto de Bolsonaro com o cartaz
de “CPF cancelado” em abril de 2021 diziam respeito ao fato de ser mais um
episódio de descaso do presidente com a morte de centenas de milhares de
brasileiros em meio à pandemia do novo coronavírus.
Em 20 de abril de 2020, Bolsonaro disse “Não sou coveiro,
tá?”, sobre o avanço da covid-19 no país. Oito dias depois, o presidente
afirmou: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”.
Em novembro, Bolsonaro disse que o Brasil precisava “deixar
de ser um país de maricas” e se queixou que “tudo agora é pandemia”. Em março
de 2021, já em meio ao colapso hospitalar no país, o presidente imitou uma pessoa
com falta de ar em uma de suas transmissões em redes sociais.
Em junho de 2021, o governo federal está pressionado por
suspeitas de corrupção envolvendo o contrato da vacina Covaxin, que se somam às
respostas inadequadas dadas pelo governo na pandemia. Desde o início da crise
sanitária, em março de 2020, Bolsonaro atacou medidas de isolamento social,
defendeu remédios que não funcionam contra a covid-19 e desestimulou a
vacinação. Também minimizou e desdenhou a gravidade da pandemia, aglomerou pessoas
em eventos oficiais pelo Brasil, questionou sem base científica o uso de
máscaras e até incentivou a invasão de hospitais sob a falsa alegação de que
eles estariam vazios. As ações e omissões da gestão federal na pandemia são
investigadas pela CPI da Covid no Senado.
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2021/04/26/Como-%E2%80%98CPF-cancelado%E2%80%99-virou-o-novo-%E2%80%98bandido-bom-%C3%A9-bandido-morto%E2%80%99
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