Em entrevista exclusiva ao Metrópoles, ex-ministro diz que o país está pagando a conta do descaso do governo com imunizantes
atualizado 26/02/2021 8:46
São Paulo – Um ano após a confirmação do primeiro caso de Covid-19 no país, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta afirma que tinha uma expectativa diferente para 2021 quando estava à frente do Ministério da Saúde. Segundo ele, em fevereiro do ano passado, o país se preparava para enfrentar a tragédia que vinha pela frente. No entanto, conforme o tempo foi passando, o governo federal, especialmente na figura do presidente Jair Bolsonaro, foi colocando empecilhos no combate à pandemia.
Um desses obstáculos, na avaliação do ex-ministro, está cobrando a conta agora: a falta de vacina. “Esse erro foi cometido em agosto e setembro, quando fecharam as negociações com a Pfizer, Moderna, Johnson. Não quiseram. (…) É um erro muito primário. Como o governo fechou as portas com esses laboratórios de primeira linha, está avançando para terreno perigoso, que é comprar vacina que não tem fase 3”, alerta, em entrevista exclusiva ao Metrópoles.
Mandetta segue: “O povo quer uma vacina e não tem. Então, o governo começa a mudar regra, intervir na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), e aí você fica em um cenário que não sabe mais em quem confiar. Tira a credibilidade do sistema e da própria agência. Estão na xepa, estão procurando qualquer coisa, o que estiver disponível”.
Segundo ele, o Brasil seria uma grande vitrine para os laboratórios porque tem rede para aplicar as doses em velocidade muito boa, maior que Estados Unidos e França.
Humildade
Ao Metrópoles, o ex-ministro fez um panorama no ano de pandemia, criticou a interferência do presidente na gestão do Ministério da Saúde e comentou sobre a estratégia de comunicação bolsonarista, que, na sua avaliação, se assemelha à nazista, em que “uma mentira é repetida mil vezes até virar verdade”.
Mandetta também considerou que faltou humildade ao general Eduardo Pazuello ao aceitar o cargo de ministro. “Esse é um erro deles [dos militares, poderiam] dizer: ‘isso não é a nossa praia, não vamos aceitar’.”
Filiado ao DEM e constantemente na lista de cotados para concorrer à Presidência em 2022, o médico deixou o governo em abril do ano passado após discordar do presidente em relação à adoção de medidas de isolamento social.
Leia os principais trechos da entrevista:
Um ano atrás, o senhor previa que estaríamos novamente no pico da pandemia?
Não imaginava. A gente estava em um caminho de organização do SUS (Sistema Único de Saúde), da atenção primária, do atendimento básico, com contatos internacionais todos organizados, participando de conversas sobre desenvolvimento de vacinas. Com certeza, a gente teria avançado muito mais. Acho que o ministério se perdeu, e o resultado é muito ruim.
Qual foi o principal erro na sua avaliação?
Costumo dividir em eixos. O primeiro era prevenção com distanciamento, máscara e álcool em gel. Quando o presidente boicota a prevenção, você perde um dos pilares. Esse é um erro capital.
O segundo eixo é o da atenção, do atendimento às pessoas. Nesse quesito, o governo veio com a cloroquina, como se isso resolvesse o problema. Eles tumultuaram e fizeram com que essa área virasse uma questão política e, por isso, colhemos péssimos resultados.
No eixo testagem, eles largaram os kits no almoxarifado, não tivemos testagem.
A gente desenhava o eixo da saída através de tratamento — um novo remédio que levaria muito tempo para ser desenvolvido — ou da vacina. O país abriu mão das negociações de imunizantes em agosto e setembro. Os laboratórios tinham muito interesse em atuar no Brasil porque o sistema de vacinação brasileiro é muito respeitado. Nós seríamos uma grande vitrine, porque a gente tem a rede para aplicar essas vacinas em velocidade muito boa, maior que Estados Unidos e França.
Estamos pagando por esse erro agora, sem contar os erros secundários como desabilitar leitos de UTI, em momento em que você sabia que vinha uma segunda onda. Há ainda um problema de comunicação do governo federal, o SUS está completamente fragmentado, não tem mais unidade, cada cidade faz o que quer, perdeu-se o setor como um todo. A população está totalmente sem bússola.
Os erros são todos eles, não dá para apontar qual foi o maior. Cada erro desses é responsável ou por aumentar ou perpetuar o tempo de sofrimento que a gente está vendo.
É possível recuperar a unidade do SUS?
Só vamos recuperar o SUS quando tiver uma equipe técnica no Ministério da Saúde que tenha credibilidade para recompor o pacto federativo. O Sistema Único de Saúde tem uma reunião mensal, chamada tripartite, onde se faz a pactuação. Quem chama essas reuniões é o Ministério da Saúde e quem faz a pauta são os três entes.
Quando o ministro abre mão e passa ele a ser o sistema, a dizer que o secretário estadual é major e o municipal é tenente, ele desmancha o pacto. A saúde não é um setor de mando, é um setor de liderança, de fazer as coisas junto. Isso é muito difícil para a cabeça de todos esses militares que estão dentro de um setor de mando e não dialoga com o sistema.
A gestão militar tem dificultado o diálogo?
Não adianta esperar que um militar vai trabalhar como um sanitarista, um cara do SUS, de olhar médico. Eles sabem trabalhar com o olhar que eles foram treinados. Se colocarem nós da saúde para comandar a força militar, vai ser uma tragédia porque ninguém vai obedecer. Vai ser muito ruim porque não sabemos como comanda um quartel. Se me pedir para pilotar um Boing com 400 pessoas dentro, eu vou ter a humildade de falar: “Olha, não sou a pessoa mais indicada, não posso, tenho muita responsabilidade. Vou derrubar esse Boing, vai morrer todo mundo”.
O erro dos militares foi não dizer: “Isso não é a nossa praia, não vamos aceitar. A gente pode colaborar”. O argumento da logística é tão pequeno e eles ainda perderam o maior trunfo que tinham. O presidente está perdido. O ministro da Economia, Paulo Guedes, entende tão pouco de gente que ele propôs no meio da pandemia desvincular as receitas da saúde — o que seria um tiro de morte. Se o intuito deles é acabar com a construção coletiva, como o presidente gosta, estão no caminho certo.
O governo já tentou privatizar a atenção primária, depois voltaram e falaram que não é bem assim. Agora vem falar de desvinculação de receita da União, tirar dinheiro da saúde e educação no meio da pandemia, é chocante. É o desprezo total. É como falar: “E, daí?”. Acho que o “e, daí” é o que mais resume.
Episódios de interferência no ministério levaram você e o ex-ministro Nelson Teich a deixar o cargo. Como o senhor avalia o recuo da compra de vacinas no fim do ano passado após pressão do presidente?
O erro das vacinas foi cometido em agosto e setembro, quando fecharam as negociações com a Pfizer, Moderna, Johnson. Não quiseram. Acharam que a vacina era uma simples corrida entre o Instituto Butantan, com o governador de São Paulo, João Doria, e ele [Bolsonaro], com a Fiocruz. Quem chegasse primeiro, no caso, Bolsonaro, falaria que a minha vacina é melhor que a sua.
Esqueceram que para dar duas doses de vacina para uma população como a brasileira é preciso de mais de 400 milhões de imunizantes. É preciso de muita vacina e ninguém tinha de pronta entrega. É um erro muito primário.
Fecharam as portas com esses laboratórios de primeira linha e estão avançando para terreno perigoso, comprar vacina que não tem fase três. Comprar uma vacina que as agências ainda não autorizaram. O povo quer uma vacina e não tem. Então, o governo começa a mudar regra, intervir na Anvisa, e aí você fica em um cenário que você não sabe mais em quem confiar. Tira a credibilidade do sistema e da própria agência. Estão na xepa, estão procurando qualquer coisa, o que estiver disponível.
Na sua análise, qual objetivo desse comportamento?
O primeiro objetivo foi fazer a divisão entre economia e saúde. O presidente plantou esse falso dilema e isso ecoou para uma parte da sociedade. Os empresários estão legitimamente arrancando os cabelos porque a crise é muito profunda.
Depois, o governo optou por uma linha política em relação à vacina. Na corrida de quem chega primeiro: “Nós temos uma vacina boa da Inglaterra e o Dória têm a ruim da China”.
Todas essas decisões foram políticas, recheadas de desprezo a qualquer tipo de aconselhamento técnico, ao ponto de tirar os técnicos para não ter aconselhamento e nem o peso na consciência. É uma sequência de argumentos sem fundamento, mas que trabalhados na internet com algoritmo, é possível potencializar. As pessoas que já foram capturadas por essa estratégia de internet viram presa fácil e se tornam repetidoras. É uma coisa meio [Joseph] Goebbels, (ministro da Propaganda nazista de Adolf Hitler), meio nazista, de repetir a mentira um trilhão de vezes até se tornar uma verdade.
O senhor consegue pontuar algum acerto do país no último ano?
O positivo está mais na ponta do sistema. São os médicos, enfermeiros e fisioterapeutas da linha de frente do Brasil. Nunca vi eles quebrarem a mão, como a gente fala no nosso jargão. A resistência desses profissionais brasileiros é realmente digna de nota. Eles morreram mais. O Brasil é o país onde mais morreu gente da saúde, eles perderam muitos familiares, sofreram preconceito.
Mas do ponto de vista da tomada de decisão e gestão, naqueles eixos principais a gente viu falhas capitais em todos. Adotaram a cloroquina na prevenção e quando viram que não alterou a taxa de letalidade e que nenhum país bancou por falta de comprovação, eles recuaram. Quando começaram a ser questionados por órgãos de controle, eles voltaram atrás a ponto de o ministro dizer que nunca falou em tratamento precoce, e o presidente apagar todas as imagens dele com cloroquina. Além da barbeiragem absurda em Manaus. Tiveram todos os alertas e informações, mas a falta de gente do ramo deu esse resultado.
O senhor está na lista de cotados para concorrer à Presidência em 2022. Qual seu futuro?
Eu vou discutir muito o Brasil e vamos apontando caminhos, não só saúde, mas na educação também. Quero andar o Brasil. Eu disse no Democratas: “Se a gente não souber interpretar e escutar para saber que tipo de nação que a gente quer, não podemos apoiar nome de A, B ou C”. Começam a entender e acho que o partido vai buscar esse caminho de fazer chegar nas pessoas, dialogar, falar e deixar a questão de nomes mais para frente. Fazer uma peregrinação no Brasil e deixar com as forças convergentes com as ideias e não com nome, acho que pode ser um bom caminho.
Mas seu partido tem dado sinais de que pode apoiar o presidente Jair Bolsonaro…
Não vejo por esse caminho. Posso ser o candidato ou podemos apoiar [o ex-ministro] Ciro [Gomes] ou Doria. Essa fase agora é de muita especulação. O partido vai fazer uma discussão com presença forte em universidades e no comércio. Terminamos a década de 2020 com o fim do binômio PT e Bolsonaro; temos uma crise absurda, que vai ter repercussão nas próximas duas, três décadas; é preciso pensar como a gente vai se comportar como cidadão para diminuir o tamanho do dano. Quando essa discussão estiver madura, quando as pessoas verbalizarem o tipo de governo, escola e saúde que elas querem, quando isso tomar mais corpo, acredito que essa pulverização vai diminuindo no espaço político que está ali no centro, do pessoal moderado, com massa crítica para pensar. Aí penso que começa a decantar o nome.
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