Franceli Stefani
Falas preconceituosas e discriminatórias ditas por estudantes da rede particular de ensino de Porto Alegre fizeram o Ministério Público (MP) da capital abrir investigação para apurar os atos, que aconteceram em duas instituições distintas. Por meio de uma live, estudantes do Colégio Israelita ofenderam aqueles que prestaram apoio ao presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Já no Colégio Farroupilha, uma aluna bolsista comemorou o resultado eleitoral do domingo em um grupo de WhatsApp com colegas. Em troca, recebeu críticas, ofensas e, inclusive, salientaram que ela perderia sua bolsa e precisaria deixar a instituição.
No TikTok, ao menos três adolescentes brancos que estudam no Israelita, uma das escolas mais conceituadas da capital gaúcha, fizeram uma live com falas gordofóbicas, xenofóbicas contra nordestinos, professores de escolas públicas e pessoas em situação de vulnerabilidade. No centro dos ataques, os eleitores de Lula. Não há como precisar quando a transmissão foi feita. Em nota, o colégio se solidariza com as pessoas que "foram e se sentiram ofendidas". O conteúdo viralizou durante a semana, no entanto a direção da escola afirmou que só tomou conhecimento após o perfil da instituição ser marcado nos vídeos.
No centro do vídeo está uma menina loira, articulada e com um sorriso debochado; ao lado dela, uma adolescente de cabelos castanhos e, do outro lado, um garoto. "O Bolsonaro [Jair, candidato à reeleição, derrotado no domingo, dia 30] trabalha para os patrões e quem é que paga os trabalhadores, não é o patrão?", questiona a garota que está no canto esquerdo. A loira rapidamente responde, dando risada: "Ele [Bolsonaro] gera empregos, ele dá para vocês empregos, para vocês terem a oportunidade de ser a gente".
Ao dizer que se informa apenas com "o que quer se informar", a menina prossegue e trata da situação das crianças do Nordeste -região do país onde Lula venceu nos nove estados. Ao ler um comentário de que havia água no Nordeste antes da gestão do presidente Bolsonaro, a mesma responde, em tom debochado que "não parecia", pelo "desespero daquelas crianças correndo atrás da mangueira" e acrescenta que se tratava de "água podre, com vírus".
Durante a transmissão, logo após xingarem de forma explícita os nordestinos, o trio é alertado sobre o conteúdo. "Vão mostrar para quem? Para a professora que faz greve a cada duas semanas no colégio público deles? Pelo amor de Deus", fala a loira. Ela continua e tece xingamentos aos pobres, com uso de palavras de baixo calão. "Nem vem reclamar depois que for demitida, tá bom? Não vem reclamar depois que meu pai te demitir."
O auxílio emergencial também entra na pauta. A garota diz que o benefício de R$ 600 criado pelo governo federal para garantir renda mínima aos brasileiros em situação de vulnerabilidade durante a pandemia de Covid-19, daria para comprar um sorvete de uma marca que custa cerca de R$ 45 (400 gramas) e um papel higiênico folha dupla. O adolescente afirma que R$ 600 não é nada, o que equivale ao valor gasto em uma festa. Ao receber um comentário, a adolescente ao centro dispara "tomara que tu não coma picanha, e sim uma saladinha, um tomatinho, alguma coisa" e prossegue dizendo que iria verificar "se ela responde meus xingamentos falando que ela é uma obesa".
Diante da situação exposta, a promotora Regional da Educação de Porto Alegre, Ana Cristina Ferrareze, expediu ofício solicitando que as instituições de ensino informem, em 48 horas, se têm conhecimento dos fatos, bem como acerca das eventuais providências adotadas, de acordo com o regimento vigente e as regras de convivência e conduta escolar, bem como a identificação dos adolescentes em tese envolvidos. "Temos certeza de que atitudes como essas, que são graves, que nos chocam, devem ser punidas. As condutas dos adolescentes precisam ser responsabilizadas também pela área do ato infracional, bem como investigadas as condutas dos pais ou responsáveis."
Universa ainda não conseguiu contato com a família dos alunos que aparecem nos vídeos. Em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente, os envolvidos não são identificados pela reportagem.
"As falas abomináveis são fartas de 'consciência"
Sandro da Rosa, doutor em teologia pelas Faculdades EST de São Leopoldo e PhD pela Université Laval do Canadá, lamenta que as falas tenham sido produzidas em um contexto estudantil, "na medida em que temos a escola como emancipadora do ser humano". "O discurso apresentado é tão enviesado que em dado momento um(a) espectador(a), demonstrando adesão ideológica às falas, adverte: 'Cuidado que a petezada vai tirar tudo de contexto'", aponta.
Na sua visão, as falas podem denotar falta de 'consciência social' por parte de uma classe economicamente dominante que pouco se importa com a pobreza. "No entanto, é estarrecedor perceber que as falas estão cheias de realidades. É verdade que para alguns R$ 600 não são 'nada', já para mais de 30 milhões de brasileiros e brasileiras, R$ 600 delimitam a fronteira entre a alimentação mínima e a fome." "Há muita consciência da realidade e, o principal —e pior—, consciência de que uns devem servir e outros devem ser servidos. As falas abomináveis são fartas de 'consciência'. Faltam a eles o social, a empatia, a história das etnias."
Os discursos, como analisa, são permeados de ódio, preconceito, discriminação, desdenho aos pobres, uma soberba estarrecedora, e conscientes, sim, de xenofobia. "Em dado momento, uma delas chega a dizer: 'Só não venham dizer que isso é xenofobia'. Por que ela disse isso? Porque sabe que é."
O Núcleo de Estudos Judaicos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul manifestou profundo repúdio ao episódio no Colégio Israelita: "Precisamos de letramento social, racial e de classe diante da complexidade do contexto bárbaro do Brasil. Para isso, a comunidade judaica necessita ampliar e fortalecer o diálogo com movimentos sociais populares e grupos minorizados. É um trabalho ético desfascistizar a sociedade".
Confira as notas na íntegra:
Nota do Colégio Israelita Brasileiro:
"O Colégio Israelita Brasileiro traz a público seu firme repúdio a manifestações com teor discriminatório e preconceituoso praticadas por alunos desta instituição. Nos solidarizamos com todas as pessoas que foram e se sentiram ofendidas.
Estas ações em nada refletem nossos princípios filosóficos e nossa prática pedagógica. Nenhuma escola é uma ilha. Estamos inseridos em uma sociedade que se encontra em parte contaminada por dinâmicas disfuncionais. Mas vamos agir.
O discurso de ódio não será tolerado. Dentro da legislação e dos nossos regulamentos, serão aplicadas as penalidades cabíveis. No entanto, muito mais do que punir, sabemos que nosso papel é educar e formar seres humanos capazes de colaborar para a evolução da sociedade.
O CIB, ciente da gravidade do momento que estamos atravessando, compromete-se a usar da melhor maneira as ferramentas que possui para por em prática um programa ativo de resgate das boas relações e da ética. Estas ferramentas são nossos valores, nossa capacidade educadora, nossa crença na tolerância e na convivência entre diferentes.
Estamos atentos. Estamos mobilizados. Em conjunto com nossa comunidade escolar, temos certeza que faremos nossa parte para superar esta situação e que aprenderemos rodos com ela."
Nota do Núcleo de Estudos Judaicos da UFRGS:
"Manifestamos profundo repúdio ao episódio de racismo, classismo, elitismo e xenofobia por alunas e alunos do Colégio Israelita de Porto Alegre. Somos judeus antifascistas, democratas, frutos da educação judaica e dos seus valores de justiça social e acreditamos ser imprescindível que haja uma profunda reforma nas organizações judaicas do RS, que não podem permanecer omissas diante de manifestações de cunho fascista.
A educação judaica tem como fundamentos a Memória e a História. O impedimento da regressão à barbárie, o "Nunca Mais" pretendido no ensino do Holocausto - tão fundamental na Educação - se torna uma tarefa complexa, pois não podemos reduzir o Nazismo ao que ocorreu entre 1941 e 1945. Tomar Auschwitz apenas como um campo de extermínio não permite inseri-lo na História, apenas reforça o congelamento dessa memória no tempo e no espaço - o que nega a possibilidade de relação entre o passado e o presente.
A sacralização da memória de um trauma não permite a interlocução histórica do evento e sua discussão. Portanto, apoiamos uma educação comprometida com o imperativo do "Nunca Mais", cujo foco esteja nas origens de um movimento que desembocou no genocídio organizado. Guetos e campos de concentração foram o resultado de um fenômeno maior, iniciado muito antes de tijolos e arames farpados.
Precisamos de letramento social, racial e de classe diante da complexidade do contexto bárbaro do Brasil. Para isso, a comunidade judaica necessita ampliar e fortalecer o diálogo com movimentos sociais populares e grupos minorizados. É um trabalho ético desfascistizar a sociedade.
Estaremos atentos aos desdobramentos do caso e esperamos que consequências cabíveis mediante a situação sejam colocadas aos envolvidos.
Ao mesmo tempo, reiteramos que traumas coletivos não são uma escola de Direitos Humanos. O compromisso com a Memória é de todos. Dito isso, é fundamental refutarmos práticas e discursos antissemitas como resposta ao caso, lembrando os perigos da generalização e dos estereótipos, alinhados exatamente ao conteúdo do vídeo."
Nota do Colégio Farroupilha:
"O Colégio Farroupilha repudia discursos ou ações que disseminem qualquer tipo de intolerância, violência ou discriminação e espera a mesma postura de todos que fazem parte da comunidade escolar. A conduta inaceitável de alguns estudantes não representa os valores da instituição e, por isso, houve a imediata aplicação das penalidades previstas no Código de Conduta e Convivência da escola.
Lamentamos que o atual momento de tensionamento vivenciado pela sociedade reflita no ambiente escolar. Nessa perspectiva, nos comprometemos a trabalhar fortemente para que a boa convivência, o respeito às diferenças e a ética sigam priorizados em nossa prática pedagógica."
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