quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Interpretação equivocada de artigo 142 inflama bolsonaristas que mantêm atos

 Constituição não prevê base legal para intervenção militar, como sugerem os apoiadores do presidente e derrotado nas eleições, Jair Bolsonaro (PL)

Por Simon Nascimento*Publicado em 1 de novembro de 2022 | 19h56 - Atualizado em 2 de novembro de 2022 | 16h16

Mensagens de grupos bolsonaristas no Telegram defendem golpe das Forças Armadas, renúncia de Lula e afastamento do atual presidente — Foto: Reprodução/Telegram

Aguardado por toda a população, o primeiro pronunciamento do presidente e candidato derrotado nas eleições do último domingo (30), Jair Bolsonaro (PL), não arrefeceu a onda de atos contrários aos resultados das urnas que ocorrem em todo o Brasil. Ao contrário disso, a interpretação dos bolsonaristas que ocupam ruas e rodovias é que, ao dizer que as manifestações são “fruto de indignação” e “bem-vindas” quando pacíficas, Bolsonaro sinalizou para a manutenção dos protestos. 

Em todo o Brasil, nos pontos onde há concentração de apoiadores de Bolsonaro, os pedidos são para intervenção militar no país e para impedir a posse do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em grupos bolsonaristas no Telegram, onde as mobilizações estão sendo organizadas, há discursos que atrelam a possibilidade de uma tomada de poder pelas Forças Armadas após a permanência, por mais de 72 horas, das mobilizações nas ruas. 

Neste período, conforme os relatos distribuídos no aplicativo, poderia ser reconhecido um estado de caos social e levar a uma suposta ativação do artigo 142 da Constituição Federal. 

Mas, segundo o especialista em direito constitucional e professor da UFMG Emílio Peluso, há uma interpretação falsa e enviesada da lei pelos bolsonaristas. Ele explicou que não há previsão, na Constituição, do suposto prazo citado nos grupos. No caso da suposta intervenção militar, o professor explicou que não cabe às instituições, como o Exército, adotar a medida. 

“A ideia de que o artigo 142 da Constituição indicaria que no prazo de 72 horas de eventual permanência das pessoas nas ruas e não reconhecimento do resultado eleitoral pelo presidente Bolsonaro redundaria em intervenção militar é uma excrescência. O que o artigo 142 estipula não tem nada a ver, seja com esse prazo ou com qualquer ideia de intervenção militar constitucional. Essa é uma distorção do que está disposto no próprio dispositivo, que está inserido, na verdade, em um capítulo que trata da defesa do estado e de instituições democráticas”, detalhou o professor.

Peluso ainda citou que a divulgação do falso prazo de 72 horas pode ser um subterfúgio para dar um sentimento de resistência e manutenção dos atos. “O artigo 142 institui uma autoridade civil em relação às Forças Armadas, que são instituições subordinadas aos poderes de Estado e, mais especificamente, ao próprio presidente da República. Dessa maneira, o artigo 15 da Lei Complementar 97/1999 regulamenta o artigo, mas isso não significa que o presidente tem arbítrio ou amplos poderes para empregar as Forças Armadas em qualquer sentido que seja contrário ao Estado Democrático de Direito”, complementou o professor. 

Reações nas ruas 

Apesar das impossibilidades legais, o discurso também está presente na boca de apoiadores de Bolsonaro que ocupam as ruas e rodovias da Grande BH. “O Bolsonaro acabou de fazer um posicionamento e nos deixou esperançosos do que está por vir. Não falou nada que pudesse nos fazer desistir. O que estamos vendo nas ruas, nas redes sociais e nos grupos é uma grande mobilização para que a gente possa impedir que o mal prossiga na ideia nefasta de poder”, declarou Júlio Lins, um dos integrantes dos movimentos que ocorreram na BR-381 em Betim.

Os atos na rodovia tiveram uma divisão entre os frequentadores e serão reposicionados a partir desta quarta-feira para regiões militares em Belo Horizonte. “O nosso lema é lotar as ruas e fazer com que o Exército nos veja e intervenha”, acrescentou. O sentimento contrário ao resultado apontado pelas urnas eletrônicas, e endossado por mais de 90 países, foi também notado com o caminhoneiro Jackson Almeida, um dos líderes dos atos bolsonaristas na BR-381, em Ipatinga. 

Por lá, os caminhões começaram a ocupar a rodovia logo após a confirmação da derrota de Bolsonaro pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e não há indicativo de recuo. “Vamos esperar mais uns dias. O presidente falou que a manifestação pacífica é bem vinda e isso estamos fazendo desde o primeiro dia. Vamos ficar o tempo que precisar”, disse o homem também ao se referir a uma suposta intervenção militar. 

No Telegram, alguns apoiadores, por sua vez, já assumem abandonar Bolsonaro. “Não estamos lutando pela reeleição de JB, estamos lutando contra o comunismo”, diz uma mensagem compartilhada em um grupo com bolsonaristas de BH. Em outro posicionamento, o foco, segundo um apoiador, não é mais "defender Bolsonaro". "A questão agora é rejeitar Lula. Esta é a ideia correta a ser defendida", diz.

“O que temos que pedir é que Lula renuncie de imediato, Bolsonaro seja afastado e as Forças Armadas assumam o controle do país e promovam novas eleições", complementa a mensagem. 

Futuro dos atos 

Na MG-010, na região Norte de Belo Horizonte, manifestantes bolsonaristas prometem não arrefecer com os atos. Aldenir Cunha, porta-voz do movimento na localidade, destacou após a fala de Bolsonaro que o grupo analisou como um pedido para que permaneçam ocupando as estradas. “Somos uma nação e vamos continuar nas ruas. O que foi dito pelo nosso presidente é que o poder emana do povo e nós, a direita, vamos quebrar o sistema”.

Entretanto, para o professor Emílio Peluso, da UFMG, as mobilizações não devem ser mantidas por muito tempo, com as decisões do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF) determinando às Polícias Militar dos Estados e à Polícia Rodoviária Federal (PRF) a desobstrução imediata de rodovias. “Há esse cenário construído pelo presidente ao titubear em fazer o reconhecimento da vitória eleitoral do presidente eleito justamente para tentar manter um pouco mais essa situação de caos”, indicou o docente. 

Na avaliação dele, o arrefecimento do movimento dependerá, diretamente, de uma força das polícias em terminar com os bloqueios em rodovias, que já impactam o abastecimento em diversas regiões do país. “Até agora não houve posição ostensiva por parte da PRF. Parecem estar propensos às aventuras golpistas do presidente e de seus apoiadores, enquanto a gente não tem empresários ou outras entidades da sociedade civil apoiando uma tentativa de golpe”, relatou o professor que defende prisão e investigação aos organizadores, financiadores e frequentadores dos atos. 

“Eventual defesa dessa tese, eventual manutenção de qualquer contraposição em relação ao resultado eleitoral, seja por bloqueio de vias estaduais, federais ou o que seja, é na verdade, ou pode constituir, crime contra o Estado Democrático de Direito previsto no conjunto de dispositivos que foi recentemente inserido no Código Penal, depois de revogada a Lei de Segurança Nacional do período ditatorial em 2021. E o que visam esses dispositivos é proteger justamente o processo eleitoral, justamente o Estado Democrático de Direito contra aqueles que, de forma infundada, defendem leitura golpista de que o resultado eleitoral pode ser contestado por outros meios que não sejam os legais”, arrematou Emílio. 

(*Com colaboração de Alice Brito)

https://www.otempo.com.br/economia/interpretacao-equivocada-de-artigo-142-inflama-bolsonaristas-que-mantem-atos-1.2760075

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