Sem territórios demarcados pela União, mais de 12 mil indígenas ficaram de fora do grupo prioritário de vacinação
- Documento que institui estratégia de vacinação definiu que apenas povos em terras indígenas têm prioridade
- Articulação dos Povos Indígenas diz que exclusão revela omissão do Estado e racismo
- Lideranças temem novos surtos da doença e mortes nas aldeias
A comunidade indígena Potiguara do Catu ocupa há séculos as margens do rio Catu, entre os municípios de Canguaretama e Goianinha, no Rio Grande do Norte. No território ainda não demarcado, onde vivem 226 famílias, quase mil pessoas, foram confirmados 19 casos de Covid-19 desde o começo da pandemia. Um precisou de internação. Mas ninguém da aldeia foi imunizado. Por não terem territórios demarcados, nenhum indígena do Rio Grande do Norte e do Piauí foi vacinado até agora, embora os povos tradicionais estejam entre os grupos prioritários.
Acontece que o plano nacional de vacinação define como grupo prioritário “indígenas vivendo em terras indígenas (ou seja, demarcadas pela Funai) com 18 anos ou mais atendidos pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena”. Ainda de acordo com o texto, a vacinação “deve ser realizada em conformidade com a organização dos Distritos Sanitários Especiais Indígena (Dsei) nos diferentes municípios.”
No entanto, o Rio Grande do Norte, por exemplo, não possui um Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) próprio. Em 2015, por recomendação do Ministério Público, o estado passou a ser atendido pelo Dsei Potiguara, que responde povos indígenas na Paraíba. Mas, por problemas de logística e de recursos, o estado foi desligado em 2019 da unidade. No Piauí, também não há Dsei.
Aproximadamente 12 mil indígenas no Rio Grande do Norte e no Piauí estão sem perspectiva de vacinação. Somente no Rio Grande do Norte há 16 aldeias onde vivem 6.385 indígenas “à beira de um massacre”, como alertou o ofício enviado pela Articulação dos Povos Indígenas do estado à Funai, no primeiro dia deste ano. O documento destaca que essas populações estão sendo “duplamente punidas pelo Estado, por não terem suas terras demarcadas e por ficarem de fora da prioridade na vacinação contra a Covid-19”.
“É como se nós não existíssemos para o governo federal”, desabafa Luiz Katu, cacique da Aldeia Potiguara de Catu, onde foi registrada a maior quantidade de casos de Covid-19 entre as aldeias do Rio Grande do Norte. Por meio de sua assessoria de imprensa, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde, informou que o envio de doses suficientes para atender as populações indígenas nos dois estados está previsto para a primeira semana de março. Mas a imunização seguirá dentro do calendário do plano nacional de vacinação, ou seja, sem dar prioridade a esses grupos
“Temos muitos idosos na aldeia e, sem uma perspectiva de vacinação logo, nosso medo é um novo recorde de casos”, diz o cacique Luiz Katu. Para ele, o fato do território ainda não ter sido demarcado não impede o governo federal de calcular a quantidade de doses necessárias para contemplar todas as comunidades indígenas, porque há contagens locais. Ele diz que, em 2015, a Sesai recebeu um censo da população Potiguara do Catu.
A indígena Tapuia Francisca Bezerra, cacique da aldeia Lagoa de Tapará, localizada em Natal, critica o governo federal e afirma ser “absurda” a regra de vacinar apenas os povos aldeados. “A gente não precisa desse reconhecimento do presidente. A gente precisa que eles respeitem que nós estamos aqui. Estamos aqui: vivos, fortes, mostrando nossa história”, diz a liderança.
A aldeia de Francisca é composta por cerca de 200 famílias. No ano passado, a comunidade registrou, segundo a liderança, ao menos uma dezena de casos de Covid-19. A liderança teme que, até a imunização, os casos voltem a crescer. Nesta semana, foram registrados cinco testes positivos para o coronavírus entre os Tapuia. “Nosso direito à vacina está sendo negado. Precisamos de muito apoio e muita força para que possamos conseguir que todos os povos indígenas do Rio Grande do Norte sejam vacinados.”
Segundo a assessoria de imprensa da secretaria de Saúde do estado, os indígenas estão incluídos no plano estadual e a pasta fez “um pedido formal ao Ministério da Saúde”, pedindo a inclusão de 285 indígenas do estado na fase prioritária, mas ainda não obteve resposta.
Piauí tem indígena, sim
Além do Rio Grande do Norte, o Piauí, também no Nordeste, é o único outro estado brasileiro sem nenhuma terra indígena demarcada. Assim, de acordo com o critério estabelecido no Plano Nacional de Imunização (PNI), nenhum indígena está sendo vacinado na fase prioritária.
No plano de distribuição da primeira leva da vacina CoronaVac, feito pelo Ministério da Saúde, constam 21 doses destinadas a indígenas no Piauí. Mas essas vacinas, na verdade, foram para imunização de indígenas do estado vizinho, o Maranhão. Pela proximidade territorial, parte dos povos originários maranhenses recebe atendimento em uma unidade da Casa de Saúde Indígena (Casai) em Teresina, ligado ao Dsei do Maranhão.
De acordo com a assessoria de comunicação da Secretaria Estadual de Saúde do Piauí (Sesapi), a pasta incluiu em seu plano de vacinação “1.302 indígenas não aldeados que vivem de acordo com a cultura étnica e pertencem a um grupo vulnerável exposto à contaminação pelo novo coronavírus, aumentando os impactos causados pela doença no Piauí”. O critério de demarcação de terras do Ministério de Saúde, porém, fez com que o estado não recebesse doses para imunizar essa população na fase prioritária. “Eu encaminhei um relatório técnico para o Ministério da Saúde, no dia 8 de fevereiro, com o decreto estadual [que reconhece povos indígenas locais]. Ainda não tive resposta”, explica a coordenadora de imunização da Sesapi, Kássia Barros.
O cacique Henrique Manoel do Nascimento, representante da microrregional da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) no Piauí, disse que a organização solicitou pouco mais de 1.300 doses para iniciar a imunização dos indígenas acima de 18 anos do estado. “A gente está sem vacina e sem expectativa de vacina”, afirma Nascimento, liderança da Aldeia Nazaré, na cidade de Lagoa de São Francisco, a 190 km da capital Teresina.
Para o cacique, a falta de reconhecimento de territórios indígenas pela Funai faz com que a população originária do estado fique em situação de vulnerabilidade em vários aspectos. “Nós não temos educação indígena no Piauí, não temos saúde indígena porque para a criação do DSEI tem que ter território demarcado”, aponta. Seu território, habitado por cerca de 130 famílias dos povos indígenas Tabajara e Tapuio-Itamaraty, teve três casos de Covid-19.
Como a Sesai não atua no Piauí e o estado não está sob a abrangência de nenhum Dsei, também não há dados oficiais sobre a contaminação de indígenas piauienses pela Covid-19. Um boletim da Apoinme de 31 de agosto, falava em 197 casos confirmados no estado. Não houve atualizações desde então.
Segundo levantamento do Comitê Nacional pela Vida e Memória dos Povos Indígenas, dois indígenas morreram por conta da Covid-19 no Piauí. Uma delas, uma refugiada venezuelana da etnia Warao, faleceu em julho. Os cerca de 130 refugiados de seu povo, o mais atingido pelo coronavírus no estado, estão alocados na capital Teresina. Em julho do ano passado, de acordo com um boletim da Apoinme em parceria com a Universidade Federal do Piauí (UFPI), quase 80 venezuelanos já tinham contraído a doença.
Mesmo a nível estadual, o reconhecimento formal da presença de povos indígenas no Piauí é recente. Em agosto de 2020, o governador Wellington Dias (PT) sancionou a Lei 7.389, que reconheceu seis etnias: Tabajara, Tapuia, Guajajara, Guegue, Cariri e Gamela. De acordo com o Censo 2010 do IBGE, havia quase três mil indígenas no estado, espalhados por 36 municípios. O número, já defasado, é metade do que constatou a equipe do projeto “O Piauí tem índio sim”, que fala em seis mil.
Entre julho e setembro, a Secretaria de Saúde do Piauí, por meio da equipe do projeto “O Piauí tem índio sim”, testou 2.856 indígenas para a Covid-19 (teste sorológico), com 11 casos positivos.
Mais vulneráveis ao vírus
A maior vulnerabilidade de povos originários da América do Sul na pandemia é reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que apontou para a taxa de mortalidade superior a de outras populações. No Brasil, dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) mostram mais de 48 mil casos confirmados entre 161 povos indígenas, com 95 mortes.
Além do adoecimento, há outros impactos. O Ministério Público Federal (MPF) apontou para o risco do genocídio indígena na pandemia, pelo risco extra que também é trazido pela vulnerabilidade dos territórios, sujeito a invasões.
Segundo o cacique Henrique Manoel, da Apoinme no Piauí, o impacto econômico também foi grande, principalmente após o fim do auxílio emergencial. “O pessoal ficou sem trabalhar, os preços subiram tudo. A gente está sendo cobrado que está tendo fome em algumas aldeias. A nossa esperança é que [o auxílio emergencial] seja renovado agora essa proposta nova de sair mais 200 reais”, diz.
Durante a pandemia, grupos indígenas que viviam da agricultura familiar no Rio Grande do Norte perderam renda com fechamento de feiras de rua e mercados. O agricultor Liano Soares, 24 anos, vive com os pais idosos no território Potiguara de Catu. Ele teve Covid-19 em abril do ano passado. Como a casa da família é pequena, na época não conseguiu cumprir o isolamento total e temia pela contaminação dos pais idosos. “Nossa comunidade devia ser vacinada logo porque são pessoas de baixa renda, que vivem próximas umas das outras”, defende
A família de Liano está conseguindo se manter graças à aposentadoria dos pais e às vendas pontuais das mangabas que ele coleta, porque o comércio de hortaliças está parado. “Ações de etnoturismo na aldeia, que trazem ganhos para cozinheiras, produtores de artesanato e guias para trilhas na mata também foram suspensas. Muitas famílias passam por necessidades”, diz o cacique Luiz Katu.
Modelo da Ditadura
Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas (Apib) no Nordeste reforça que os territórios não demarcados da região “não são escolha dos indígenas, mas fruto da omissão do Estado”. Ele afirma que excluir essas populações do grupo prioritário de imunização é um ato de “omissão e de negação de acesso a políticas públicas que revela o racismo estrutural e institucional nas estatais brasileiras.”
“O Nordeste é a segunda região com maior população indígena do Brasil, atrás do Norte, mas a última em termos de demarcação”, afirma. No Brasil há 724 territórios indígenas com processo de demarcação iniciado, mas desde que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) assumiu nenhuma terra indígena foi declarada e/ou homologada.
Dinaman diz que o governo Bolsonaro está tentando reeditar um modelo da Ditadura Militar, onde as populações indígenas foram categorizadas entre integradas e isoladas. “Ao excluir os indígenas de terras não demarcadas da prioridade de vacinação, a política estatal difunde essa ideologia da Ditadura, inclusive com a Resolução 4/2021 da Funai, que limitou a autodeclaração indígena”.
“A realidade dos povos indígenas do Nordeste é calamitante em vários sentidos. O que pedimos é que o governo brasileiro garanta a vacinação independente da situação territorial”, argumenta o coordenador da Apib. A Funai não respondeu os questionamentos da reportagem até a publicação.
Refugiados desprotegidos
A 70 km das terras do povo Catu, em um abrigo localizado na Avenida Antônio Basílio, no bairro de Lagoa Nova, em Natal, cerca de 20 famílias indígenas do povo Warao, entre crianças, jovens e idosos, vivem em uma alojamento provisório desde junho do ano passado. Eles são refugiados da Venezuela e estão no Brasil há dois anos, desde a crise política e econômica no país vizinho, que intensificou uma onda migratória por Boa Vista, Roraima, em 2019.
“Já tem um pouco mais de um ano que estamos em Natal. Chegamos aqui no mês de dezembro. A gente estava alugando casa. Mas a gente não tem emprego, vivemos de doação. Com a quarentena, tivemos dificuldades para pagar aluguel. E foi aí que conseguimos esse espaço”, conta Aníbal Pérez, liderança dos Warao.
Em situação de refúgio, os indígenas também não foram contabilizados pela regra do governo federal para imunização prioritária. Pérez diz não ter recebido orientação sobre o calendário de vacinação. Mesmo vivendo agrupados em uma estrutura improvisada onde antes seria construída uma escola, não houve casos de Covid-19 entre as famílias Warao. Mas, enquanto não recebem informações, eles têm medo da pandemia se intensificar.
“Também somos seres humanos, somos pessoas. E a gente precisa ser vacinado. Temos idosos, maioria crianças… E somos indígenas também, eu acho que a gente deveria estar nesse grupo prioritário”, defende Pérez.
Thales Dantas, presidente do Comitê Estadual Intersetorial de Atenção aos Refugiados, Apátridas e Migrantes (Ceram) do Rio Grande do Norte, afirma que o governo estadual pretende garantir imunização dos indígenas refugiados a partir de uma articulação com os municípios de Natal e Mossoró, cidades que abrigam Warao. “A gente teve uma reunião com representação da Funai, da Secretaria de Saúde Pública, da Secretaria de Direitos Humanos, em diálogo com os municípios para garantir a imunização e fazer essa orientação para incluir nos planos municipais. Eles [Warao] estão em uma situação bem peculiar em relação aos demais povos indígenas porque eles estão nos centros urbanos, estão em abrigos que são administrados pelo município.”
Dantas afirma que os governos municipais e do estado reconhecem os povos indígenas da região, mas que o número de doses enviados ao grupo prioritário foi definido pelas regras do governo federal.
“Para a gente, eles são indígenas. Para o governo federal, eles ainda estão em processo de reconhecimento, o que acaba afetando bastante a criação de políticas públicas que envolvem a União diretamente”, afirma o presidente do Ceram-RN.
Nenhum comentário:
Postar um comentário