André Bernardo
- Do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil
O frei franciscano David Raimundo dos Santos tinha 24 anos quando sofreu um dos mais duros golpes de sua vida. Ele estava em um seminário no interior de São Paulo quando, no dia 13 de maio de 1976, alguns noviços, descendentes de italianos e alemães, convidaram os poucos colegas negros e pardos da turma para um suposto almoço em confraternização pelo Dia da Abolição da Escravatura. Logo, frei David descobriu que a aparente gentileza escondia uma brincadeira de péssimo gosto: no centro do refeitório, havia uma mesa decorada com as palavras: “Navio negreiro”.
Visivelmente aborrecido, frei David se recusou a participar do trote, mas foi praticamente forçado por alguns companheiros de batina.
Naquele mesmo dia, frei David arrumou as malas, mas foi convencido por um sacerdote a ficar. Mais do que isso: foi encorajado, dali em diante, a transformar aquela ofensa em bandeira de luta por um mundo melhor. “Quando aqueles seminaristas mexeram comigo e meus companheiros, e praticaram aquilo que chamamos de ‘racismo recreativo’, não tinham a intenção de nos ofender ou humilhar. Não havia, naquela época, a clareza que temos hoje de que essas gozações são, na verdade, humilhações”, avalia o diretor da ONG Educafro, que defende a política de cotas para estudantes negros e carentes.
“Hoje, o racismo é muito mais cruel. Os seminários precisam despertar seus seminaristas negros para a negritude e encorajá-los a beber na fonte da história do povo negro. Uma história de muita luta, dor e sofrimento”.
No caso dele, o preconceito partiu de outros seminaristas. Mas, às vezes, parte dos próprios fiéis. Foi o que aconteceu na Paróquia Santo Antônio, em Adamantina, a 578 km de São Paulo (SP). Desde que assumiu a igreja matriz, em 2012, o padre Wilson Luís Ramos alegou ter sido vítima de discriminação por parte de alguns fiéis. Houve quem dissesse que “deveriam trocar o galo de bronze do alto da igreja por um urubu”.
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Depois de um ano e dez meses na paróquia, o sacerdote foi transferido para o Santuário Nossa Senhora de Fátima, em Dracena, onde assumiu como pároco e reitor. Procurado pela reportagem, o padre Wilson não quis dar entrevista.
Outro caso de preconceito racial foi registrado na Paróquia Nossa Senhora do Bom Conselho, em Serra Preta, a 150 km de Salvador (BA). A vítima da vez foi o Padre Gilmar Assis. No dia 3 de junho de 2017, ele disse ter tomado um susto ao ouvir um áudio no WhatsApp com ofensas e ameaças, como “negão”, “burro” e “animal”.
Em nota, a Arquidiocese de Feira de Santana, que abrange a Paróquia Nossa Senhora do Bom Conselho, declarou que repudia “manifestações de ódio”, afirmou que não compactua com atitudes que “ferem a dignidade humana” e prestou solidariedade a todos aqueles que “sofrem qualquer tipo de preconceito e discriminação”.
“A Igreja Católica não é somente o padre e o bispo. É o povo de Deus também. Infelizmente, a mentalidade da ‘Casa Grande’ ainda está presente em nosso povo”, lamenta Dom Zanoni Demettino Castro, arcebispo de Feira de Santana (BA) e bispo da Pastoral Afro-Brasileira, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). “A construção da paz passa pelo direito à igualdade racial. Por essa razão, não podemos admitir preconceito ou discriminação”.
Para o sociólogo Osvaldo José da Silva, doutorando em Ciências Sociais e membro do Observatório do Racismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC–SP), não chega a surpreender o fato de algumas comunidades cristãs ainda se apoiarem no racismo institucional. Segundo ele, seus membros estão contaminados pela ignorância racial.
“O mal do racismo está impregnado em todas as instituições brasileiras. E, em muitas pessoas, é muito mais comum do se imagina”, alerta o sociólogo. “Casos de preconceito racial contra padres, freiras e religiosos negros podem parecer isolados ou pontuais. Mas, fazem parte de um senso comum equivocado de que os negros são inferiores aos brancos.”
'Dentro da igreja, mas longe de Deus'
Uma recente demonstração de intolerância racial veio de Alfenas, a 335 km de Belo Horizonte (MG). Em setembro, o padre Riva Rodrigues de Paula, de 42 anos, assumiu como vigário da Paróquia São José e Nossa Senhora das Dores. Logo, a secretaria paroquial começou a receber os primeiros telefonemas pedindo que a matriz avisasse com antecedência quando “o padre preto fosse celebrar a Santa Missa”.
Na Semana da Consciência Negra, padre Riva chegava para rezar uma missa às sete da manhã quando, já dentro da igreja, foi abordado por um casal que o teria chamado de “preto fedido”. Diante da ofensa, a diocese de Guaxupé (MG) soltou uma nota de repúdio que foi lida nas oito paróquias de Alfenas no domingo, dia 22: “São inaceitáveis atos de racismo em qualquer esfera da sociedade, principalmente em âmbito religioso, cujo lugar é propagar o respeito, o amor e o diálogo”.
O vigário paroquial não quis registrar boletim de ocorrência. Em vez disso, preferiu conscientizar a comunidade do pecado gravíssimo que é o racismo. Mas, caso volte a sofrer injúria racial, durante uma missa, casamento ou batizado, o padre Riva foi aconselhado pelo bispo de Guaxupé (MG), d. José Lanza Neto, a interromper a cerimônia, chamar a polícia e fazer a denúncia.
“Quis mostrar que, dentro do ambiente religioso, também há racismo. Não dá mais para aceitar esse tipo de atitude. Amanhã, se tiver um papa negro à frente da Igreja, vamos deixar de ser católicos?”, indagou o sacerdote, durante uma homilia no domingo, dia 22. “Tenho pena dessas pessoas e rezo muito por elas porque precisam de conversão. Estão dentro da igreja, mas longe de Deus.”
No Instituto Acolher, onde trabalha há 16 anos no atendimento psicoterapêutico a padres, religiosos e seminaristas, o psicólogo Eduardo Galindo diz já ter atendido a algumas vítimas de preconceito racial. Em muitas paróquias, os fiéis são tão rígidos e conservadores que, muitas vezes, não toleram quando os padres tentam promover mudanças na rotina paroquial. Em alguns casos, organizam abaixo-assinados ou fazem piadas nas redes sociais. Em outros, mais extremos, reagem de maneira hostil aos sacerdotes.
“As feridas do racismo causam profundo sofrimento mental. Sem tratamento, podem levar o padre a sofrer de estresse, depressão, ansiedade e até alcoolismo”, adverte Eduardo.
Sagrada Família negra
Se, em Alfenas, o padre Riva preferiu não registrar boletim de ocorrência, no Rio, a invasão de uma igreja no dia da Consciência Negra virou caso de polícia.
Membros de uma associação católica conservadora tentaram impedir a celebração de uma missa em homenagem ao Dia da Consciência Negra de 2019 na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, na Glória, zona sul do Rio. Durante a cerimônia, que contou com músicas, danças e instrumentos de origem afro, cerca de 20 manifestantes começaram a rezar em voz alta o terço em latim. Terminada a celebração, trocaram ofensas e agressões com paroquianos. O caso foi investigado pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), que indiciou cinco homens por intolerância religiosa e alguns por racismo.
No último ano, a Arquidiocese do Rio cancelou, por medida de segurança, a tradicional missa em homenagem ao Dia da Consciência Negra da Paróquia do Sagrado Coração de Jesus, realizada há 16 anos. Um vídeo postado nas redes sociais por integrantes da associação conclamava os leigos católicos a se reunirem do lado de fora da igreja para rezar em desagravo ao que chamou de “sacrilégio” e “profanação”.
A missa em homenagem ao Dia da Consciência Negra foi cancelada, mas o tradicional presépio da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, com temas seculares e controversos, como corrupção e desmatamento, não.
Uma representação do nascimento de Jesus na gruta de Belém foi inaugurada no último 7 de dezembro, com a benção do arcebispo do Rio, d. Orani Tempesta. O presépio traz uma Sagrada Família negra e anjos segurando uma faixa com os dizeres: “Diga não ao racismo”. A obra, composta por 16 peças em tamanho natural, foi criada pelo padre Wanderson Guedes, que é artista plástico.
“De uns anos para cá, os temas do presépio se tornaram, por assim dizer, mais seculares e menos religiosos. O racismo é um tema atual. Um tema que, infelizmente, não está superado no Brasil. Não faz sentido um país tão miscigenado como o nosso ser racista. Até pouco tempo atrás, o preconceito racial era velado. Hoje, não. As pessoas perderam o pudor de dizerem que são racistas”, lamenta o pároco Wanderson.
'Ouvi o clamor deste povo!'
Autor de Questões Raciais na Igreja Católica (Appris, 2019), o historiador Ronaldo Pimentel Baptista lembra que, em 1988, o ano do Centenário da Abolição da Escravidão, a CNBB dedicou a Campanha da Fraternidade ao tema: “A Fraternidade e o Negro”. O lema original, “Negro: Um Clamor de Justiça”, no entanto, fora substituído por “Ouvi o Clamor Deste Povo”.
No Rio, o cardeal Dom Eugênio Sales manteve o tema, mas adotou um lema diferente do da CNBB: “Várias Raças, Um Só Povo”. “Já é passada a hora de não só a CNBB, mas, a Igreja Católica propor não só uma campanha temporária, mas uma ação permanente que extrapole o âmbito religioso no combate efetivo ao racismo no mundo.”
Na opinião do historiador Baptista, a Igreja pode e deve empreender mais esforços para combater o racismo e reduzir a exclusão social do negro no Brasil. Entre outras iniciativas, cita a adoção de uma prática reflexiva constante sobre o racismo e a discriminação, principalmente em seu próprio interior. E a possibilidade de ascensão de negros aos seus mais altos cargos hierárquicos.
Atualmente, apenas 37 dos 483 cardeais, bispos e arcebispos brasileiros são negros. Esse número corresponde a 7,6% do total. “Essas medidas poderiam, de certa forma, contribuir na luta contra o racismo, uma chaga aberta que permanece sangrando em nossa sociedade e dilacerando os negros, os mais pobres entre os pobres.”
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