"Sofremos muito durante toda a infância e na escola foi muito difícil, com agressões e preconceito. Desde meus três anos eu assoprava uma planta dente de leão e pedia ao papai do céu que me transformasse em uma menina"
Sofia e Mayla
Me chamo Mayla Phoebe Rezende e minha irmã gêmea, Sofia Albuquerck Ferreira. Temos 19 anos, nascemos em Araxá, porém fomos criadas em Tapira, também em Minas Gerais. Sou técnica em enfermagem e atualmente curso medicina em Buenos Aires, enquanto ela estuda engenharia civil.
Sempre fizemos tudo juntas e realizamos recentemente o nosso grande sonho: fazer a cirurgia de redesignação sexual e nos tornamos as primeiras gêmeas trans a realizarem essa cirurgia no mundo.
Nos sentimos privilegiadas por esse marco e queremos que isso chame atenção para que a cirurgia se torne mais acessível no sistema público e na rede privada. Tem muitas trans que desistem porque a fila de espera é muito grande pelo SUS e há somente uma clínica privada que realiza o procedimento no Brasil, em Blumenau (SC). Queremos que o nosso caso leve mais informações às pessoas sobre esse procedimento.
Nascemos com o sexo biológico masculino, mas a gente sempre se sentiu mulher. Desde pequenas, quando soubemos que se tratava de um órgão do sexo masculino, não queríamos tê-lo em nosso corpo. Quando eu o via, sentia que não era meu.
Sofremos muito por causa da nossa escolha. Na escola, foi muito difícil. Uma vez a professora disse que precisaríamos usar o banheiro masculino porque não éramos mulheres. Isso foi no primeiro ano do ensino médio. Fiquei três meses sem ir para escola depois disso. Era uma situação muito difícil de lidar, inclusive sofria agressões: alguns colegas arremessavam cadernos na minha cabeça.
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Fico até emocionada quando me lembro disso hoje porque passei por muita coisa ruim nesse sentido. Desde meus três anos eu assoprava uma planta dente de leão e pedia ao papai do céu que me transformasse em uma menina.
Nossos pais sempre nos apoiaram nestes momentos, quando chegávamos chorando em casa. Nos abraçavam e diziam que estava ‘tudo bem’, enquanto minha avó fazia pão de queijo com refrigerante para depois nos dar carinho.
“Aos 10 anos, descobrimos na internet que dava para trocar de sexo”
Sempre tivemos vontade de tirar o órgão masculino da gente, mas quando éramos criança ainda não sabíamos que existia essa possibilidade da cirurgia. Até que um dia, minha irmã gêmea comentou pela primeira vez sobre isso, aos 10 anos, quando voltávamos da igreja.
A Sofia descobriu pela internet. Desde então, passamos a pesquisar cada vez mais sobre o procedimento. Sempre fomos espertinhas com informática e limpávamos as pesquisas do histórico do navegador do computador do nosso pai, porque no início tínhamos receio de contar sobre essa vontade em casa.
O medo dos nossos pais era de como a sociedade iria nos tratar. Se a mulher já luta tanto para alcançar seus objetivos, imagine uma mulher trans. É muito mais difícil, ainda mais em um país tão transfóbico como o Brasil.
Eles sempre souberam que éramos meninas. Não sei se tinham conhecimento da existência da cirurgia. Quando nós contamos, aos 10 anos, não me recordo muito bem o momento em si, acabaram descobrindo toda a burocracia para o processo. Eles acabaram pesquisando juntos com a gente e auxiliaram no início do acompanhamento médico a partir dos 15 anos, com o tratamento hormonal. Corremos juntos atrás de tudo.
“Nosso avô que cresceu na roça ofereceu vender sua casa para pagar a cirurgia”
Meu avô materno, que hoje tem 69 anos, foi o último a saber da nossa orientação sexual e do nosso desejo de mudar de sexo, mas quando soube, a primeira coisa que pensou foi em vender a casa que servia como uma renda extra na aposentadoria. A intenção era pagar a nossa cirurgia, já que nossos pais não tinham condições financeiras para isso.
Havia certo receio da minha avó em contar para o vovô sobre a nossa vontade e orientação de gênero. Certo dia, a esperei sair de casa e conversei com ele. Foi um momento muito emocionante. Chorei e recebi um abraço. Isso foi aos 11 anos.
Falei: Vô, sabe que eu e Sofia não somos meninos e que a cirurgia pelo SUS vai demorar muito? Ele olhou para mim e disse: ‘Meu desejo é que façam essa cirurgia, se for o que realmente vocês queiram’.
Foi uma surpresa. Não sabíamos como seria a reação dele porque ele foi criado na roça, trabalhando desde cedo, o que acabaria o tornando, em tese, uma pessoa com a mente mais fechada. No fim das contas, ele é muito cabeça aberta e não precisávamos ter ficado com receio de nada. E o mais incrível é que ele não é nosso avô de sangue, mas está casado com a minha avó desde que minha mãe tinha dez anos.
Meu avô disse que ficaria tão satisfeito depois da nossa cirurgia. E agora ele me liga todo dia e fala que está tão feliz, que pretende fazer um churrasco para celebrar a vitória —já pediu até para eu perguntar ao médico se posso comer carne para a gente comemorar juntos. Meus avós são tudo pra mim.
Meu objetivo agora é me formar em medicina e comprar outra casa aos meus avós como maneira de retribuir o gesto que tiveram com a gente.
“Tivemos acompanhamento médico por 4 anos até o grande dia”
Para realizar o procedimento, foi uma batalha desde os 15 anos, com tratamento e acompanhamento de profissionais. A gente nem sabia que precisava tomar hormônios, por exemplo. Sempre nos sentimos mulher dentro da nossa mente. Soubemos da necessidade e passamos a usar e não sofremos nenhum efeito colateral que prejudicasse a nossa saúde.
Fizemos o acompanhamento completo com endocrinologista, urologista, psicólogo e psiquiatra desde os 15 anos. Nunca fizemos cirurgia no rosto ou tivemos pelos na face. Já tínhamos seios por causa do tratamento, mas colocamos silicone e agora fizemos a redesignação sexual.
Toda a trans precisa de acompanhamento por pelo menos dois anos. Aconselho toda mulher trans a passar por todo esse processo. Não é nem para ter certeza se quer realmente fazer cirurgia, mas para aceitar mais seu corpo. Já fiquei três meses sem ir para escola por causa de bullyng e hoje me amo, amo meu corpo e cada pedacinho dele.
“Tivemos medo de ser apedrejadas quando divulgaram nossa história”
Não tivemos muito medo de dar errado algo errado na cirurgia antes dela acontece. E nem tive muita ansiedade porque a faculdade me sobrecarregou e até acabei esquecendo um pouco do procedimento.
Antes de ser sedada no hospital, eu ficava ainda sem acreditar que o sonho estava se realizando. Quando acordei, não acreditei. É uma coisa que ainda está caindo a ficha. Não sinto mais aquele desconforto ao deitar ou sentar. É algo maravilhoso.
Depois da alta do hospital, parecia que ainda vivíamos um sonho. Agora me sinto muito realizada e completa. Meu primeiro banho foi mágico depois da alta. Chorei e pedi um abraço para a Claudete, a enfermeira que cuidou de mim nesse pós-operatório, porque fiquei bastante emocionada.
Mesmo ainda com o inchaço, o resultado ficou perfeito, não podia estar melhor. Até superou as minhas expectativas.
Mas também chorei muito quando o nosso nome vazou após a cirurgia. Tinha medo de ser apedrejada. Não imaginava que receberia tanto carinho do mundo inteiro e principalmente da minha cidade. Minhas primas choraram de felicidade porque sabiam das nossas angústias e do sofrimento.
Agora são 14 dias de repouso direto, podendo fazer algumas atividades depois dos 30 e 45 dias. A nossa vida voltará ao normal mesmo após três meses. Enquanto isso, estamos recebendo total apoio da família, amigos e profissionais que estão com a gente.
“Queremos ser mães e ajudar outras trans”
Eu e Sofia pretendemos ter as nossas próprias famílias, queremos ser mães, adotar nossos filhos. E também buscamos ser ótimas profissionais, porque nossa orientação sexual não define o nosso caráter e nem o nosso potencial.
Pretendo também ajudar outras pessoas com casos semelhantes ao nosso, pois a cirurgia me ajudou a me sentir 100% eu. Imagina o preconceito que a gente sofre todo dia, a cada momento. Tenho um santinho e oro para Deus pedindo força. Se não fosse ele, não estaria onde estou hoje. As pessoas precisam de alguém para buscar refúgio.
E também queremos ajudar as pessoas trans a lutarem pelos seus sonhos e a não desistirem deles. Eu e Sofia sofremos tanto que já tentamos até suicídio, mas tivemos o apoio incrível da nossa família. Isso mostra que os pais precisam amar os filhos da maneira como são. Não é preciso aprisioná-los dentro de um corpo ideal, porque o abalo psicológico só vai levá-los para baixo, já que o principal apoio vem da família. Espero que um dia eu possa viver num mundo melhor, mas talvez nem esteja viva quando o mundo estiver com a mente mais aberta.
*Mayla Phoebe Rezende, 19 anos, técnica em enfermagem e estudante de medicina,
Universa
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