sábado, 20 de março de 2021

O inominável, O Brasil de ladeira abaixo

Bolsonaro vê queda de popularidade à medida que as mortes disparam e o País vira o epicentro global da pandemia. Pressionado pelo Centrão, trocou o ministro da Saúde, mas perde a sustentação política e as condições de governabilidade





Até recentemente, Bolsonaro era o favorito para as próximas eleições. Podia se dar ao luxo de animar os bolsonaristas radicais com suas frases estapafúrdias sem medir as consequências, contando que teria um lugar garantido no segundo turno e, dali, a uma reeleição segura. Tudo mudou. O agravamento da pandemia fez despencar os índices de popularidade, mostrando que apenas a aceleração na vacinação poderá evitar que a tragédia na Saúde fique associada diretamente a ele.

Segundo o Datafolha, 56% dos brasileiros já consideram que o presidente é incapaz de liderar o País e 54%, que sua atuação na pandemia foi ruim ou péssima — um recorde. O Centrão, que Bolsonaro levou à direção do Congresso com farta distribuição de emendas e cargos, já sente o cheiro de queimado e tenta assumir o controle do governo, do Orçamento à gestão da Saúde. Empresários estão decepcionados com a intervenção na Petrobras e com a PEC Emergencial, que significaram na prática o enterro melancólico da agenda reformista. Por fim, a volta de Lula ao cenário já provoca um rearranjo das forças políticas que, seja qual for a configuração final, desfavorece o presidente. Bolsonaro está cada vez mais ameaçado e sem sustentação política.

MAIOR COLAPSO DA HISTÓRIA Pacientes são atendidos em um hospital de campanha instalado num ginásio de esportes em Santo André, São Paulo, em 4/3 (Crédito:Andre Penner)

O Brasil assiste diariamente a recordes de óbitos, e o presidente continua a reboque da crise. Na última semana, 21% das mortes por coronavírus no mundo ocorreram no Brasil, segundo a OMS. O Brasil virou o epicentro global da Covid. Lidera o número de novas contaminações, na contramão do mundo. De 196 nações da ONU, 108 já barram a entrada de brasileiros. O País vive o maior colapso sanitário e hospitalar da história, segundo a Fiocruz. Mesmo assim, o presidente apoiou caravanas contra o lockdown no domingo, 14, em São Paulo, Rio, Brasília e outras cidades. Manifestantes voltaram a pedir a intervenção militar e defenderam remédios sem comprovação científica. “Logicamente eu fiquei feliz, o Brasil todo gostou, mostra que o povo está vivo”, declarou Bolsonaro sobre os atos. Nesse dia, o Brasil ultrapassou 278 mil óbitos. Ao invés de projetar a força do presidente, cada vez menor, essas manifestações funcionaram como um mecanismo de proteção. Estamparam que o presidente está cada vez mais isolado com sua claque. A demissão de Eduardo Pazuello, que foi exigida pelo Centrão e tinha o objetivo de circunscrever o problema ao general, apenas deixou claro que a política bolsonarista na Saúde não vai mudar. A única transformação prevista é a aceleração da vacinação, mas a falta de imunizantes — por culpa exclusiva de Bolsonaro — não resolverá o problema de imagem do governo. Diante da resistência do Executivo em assumir suas responsabilidades, os gestores regionais e os outros Poderes tentam tomar as rédeas da situação. Os governadores e prefeitos aceleraram as medidas de isolamento e procuram comprar vacinas, driblando a inação federal. Reagem porque estão lidando com a tragédia em seus próprios estados — e a maioria já à beira do colapso.

SEM LEITOS E SEM VACINA Manifestante protesta no Ministério da Saúde contra a falta de leitos no País, em 16/3 (Crédito:Ueslei Marcelino)

Em Brasília, os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira, exigiram a saída de Pazuello para evitar a instalação da CPI da Covid no Congresso. Lira tentou emplacar a cardiologista Ludhmila Hajjar no seu cargo. “Se você fizer lockdown no Nordeste vai me foder e perco a eleição”, disse Bolsonaro a ela. Mas a negociação fracassou. Isso irritou Lira e causou o seu primeiro embate frontal com o presidente. O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, também dirigente do Centrão, foi sondado para o posto. Recusou. A nomeação do médico Marcelo Queiroga, um bolsonarista, não deve aliviar a pressão. Ao contrário, o movimento pela criação da CPI pode até crescer. Um deputado influente do Centrão disse à ISTOÉ que a relação do presidente com o Legislativo neste momento é preocupante. “Os partidos do Centrão tendem a abandonar completamente o governo a depender do desempenho do novo ministro e de como estará a economia”, afirmou. “Não teremos paciência com o novo ministro”, fulminou o vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos. O presidente da Casa tenta mesmo se desvincular de Bolsonaro. Ao dirigir-se ao embaixador da China, Lira disse que “o governo brasileiro não é só o Executivo, mas também é composto pelo Legislativo e o Judiciário”. A iniciativa expõe ainda mais o fiasco do Executivo em tomar as rédeas do combate à pandemia.

CONTENÇÃO DE DANOS Bolsonaro e Luiz Eduardo Ramos, Fernando Azevedo, Eduardo Pazuello e Braga Netto no Hotel de Trânsito do Exército, no sábado (13): estratégia para troca na Saúde (Crédito:Divulgação)

A crise tem deixado Bolsonaro cada vez mais nervoso. “Esses caras que querem me derrubar, o que fariam em meu lugar? Comprar vacina? Onde tem para vender?”, disse na quinta, 18. Sua estratégia tem sido atacar as medidas de restrição, única forma efetiva para diminuir as mortes, e responsabilizar os governadores. Era o que pretendia fazer em um pronunciamento na TV, que cancelou três vezes. Foi dissuadido por auxiliares próximos, que temiam agravar ainda mais a crise. Um raro sinal de bom senso, pois a mera expectativa do pronunciamento já tinha despertado panelaços. “Um pronunciamento na TV exporia ainda mais suas fragilidades A melhor comunicação para ele é inundar as redes com memes e filmes, que repercutem basicamente entre seus eleitores”, diz o cientista político Rubens Figueiredo. A conversão à defesa da vacinação não mudou a estratégia de insuflar a base radical. Cada vez mais encurralado, o presidente aposta na polarização, ao invés de buscar consensos. E a crise não é apenas na saúde. “Há um ano o presidente apanhava igualmente por causa da Covid e da economia. Hoje, ele continua apanhando da Covid, mas o que mais pesa é a economia. Quando o auxílio emergencial vier, vai mostrar o quadro real da popularidade”, diz Murilo Hidalgo, diretor do Instituto Paraná de Pesquisas. Para os grandes empresários, já ficou claro que sem a imunização a retomada não virá. Com a inflação em alta e a economia paralisada (deve mesmo cair no segundo trimestre), o País pode entrar no pior cenário, de estagflação. Por conta disso, o Banco Central foi forçado a iniciar um novo ciclo de alta das taxas básicas de juros, depois de seis anos. O presidente é o responsável por esse quadro, ao gerar a instabilidade que pressiona o dólar e coloca os investidores em alerta.

A imagem do presidente é cada vez mais afetada também pelas rachadinhas e pelo desmonte no combate à corrupção

Depois de transformar o Brasil em pária pela negligência ambiental, Bolsonaro conseguiu dobrar o desastre com a pandemia. Sem apoio do ex-aliado americano, Donald Trump, e com a sustentação doméstica declinando, Bolsonaro fica sem discurso, refém do seu sectarismo. E ele adquire formas ainda mais baixas. Em uma live, no dia 12, num momento especialmente abjeto, chegou a ler a suposta carta de um suicida para atacar as medidas de restrição. Não foi a primeira indignidade dessa ordem. Já tinha comemorado a morte de um suicida em São Paulo durante a fase de testes da Coronavac. “Lockdown é uma afronta. Gera suicídio. Poderemos ter invasão a supermercado, fogo em ônibus e piquetes. O pessoal vai morrer de fome, de depressão”, disse na trasmissão, traindo seu desejo de que os governadores enfrentem insurreições ao buscarem desesperadamente salvar vidas. Seu objetivo é autoritário, como nunca escondeu. Comparou as medidas de restrição à decretação do “estado de sítio”, uma comparação desonesta e capciosa, que distorce o sentido da Constituição. Afirmou que cabe a ele “garantir a nossa liberdade”. É mais uma impostura. Ao se colocar como assegurador da democracia insinua que pode praticar o oposto: suprimi-la. É o seu desejo. A intimidação de cientistas e adversários, a mordaça aos pesquisadores de institutos — o último atingido foi o ICMBio, no dia 12 — e o uso da Lei de Segurança Nacional para calar desafetos mostram uma escalada alarmante. O youtuber Felipe Neto está ameaçado de punição com base nesse instrumento, um resquício da ditadura, por ter chamado o presidente de “genocida” — ação felizmente suspensa por uma liminar. Os governadores de São Paulo e Espírito Santo tiveram suas casas, ou de familiares, ameaçadas por militantes bolsonaristas. O prédio de um jornal em Olímpia (SP) foi incendiado por extremistas contrários a medidas restritivas. “Meu Exército não vai para a rua obrigar o povo a ficar em casa”, disse o presidente, confundindo as Forças Armadas com uma milícia privada. Deixando patente pela enésima vez que o bolonarismo tenta politizar os quartéis, apoiadores se concentraram em frente ao 12º Batalhão de Infantaria do Exército, em Belo Horizonte, no dia 14, quando agrediram um repórter fotográfico.

RADICAL Manifestante defende Bolsonaro e a reabertura do comércio em Curitiba (Crédito:Eduardo Matysiak)

Os militares continuam enredados pelo plano autocrático do presidente. Um vice-almirante disse à ISTOÉ que ele e parte do Alto Comando foram contra a indicação de Pazuello pois queriam evitar que um eventual fiasco da gestão respingasse na imagem das Forças Armadas. Previsão cumprida. A ação desastrosa de Bolsonaro associou os militares à sua inépcia e incompetência na pandemia. Foi com alívio, portanto, que os oficiais receberam a exoneração de Pazuello. Mas em seguida ficaram preocupados com a intenção de Bolsonaro de abrigá-lo no Planalto, blindando-o juridicamente contra seus processos. General da ativa, Pazuello não quer passar para a reserva. Isso é um problema para a cúpula do Exército. Dar-lhe uma nova função de comando na corporação é como deixar um político controlar diretamente os quartéis. Como previu certeiramente o general Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo, “o presidente está tentando empurrar as Forças Armadas para a correnteza da política”.

A imagem do presidente também é cada vez mais afetada pelos escândalos das rachadinhas de seu clã e pelo desmonte no combate à corrupção. A OCDE, o clube dos países ricos que Bolsonaro sonhou integrar, criou um grupo para monitorar as ações do Brasil por causa dos retrocessos que se acumulam desde 2019. É a primeira vez que isso acontece na organização. O fim da Lava Jato deixou patente para a comunidade internacional que o governo não tem compromisso real com o fim do crime de colarinho branco e Bolsonaro agiu para enterrar a única iniciativa bem-sucedida na área em décadas. “O desejo de encerrar a operação o mais rapidamente possível foi surpreendente”, disse Drago Kos, o responsável pela área na OCDE. Seu espanto é justificável. A reviravolta não só prejudica a entrada na entidade como sinaliza aos investidores que o País não consegue modernizar suas instituições.

Como a troca de nomes no Ministério da Saúde comprovou, o presidente não tem preparo para adotar uma mudança de rumo político nem para gerir um governo de coalizão, como seus novos aliados do Centrão já advertem. Seu combustível político é o fanatismo e o populismo. Promover ataques a gestores e estimular motins são práticas conhecidas que o fascismo usou no passado para atrair bases ressentidas e subverter a ordem. Que o País tenha de lidar com essa ameaça acrescenta um tom mais sombrio a um momento já dramático de emergência na Saúde.
Colaboraram Ricardo Chapola e Eudes Lima


REAÇÕES

O inominável - ISTOÉ Independente

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